PICICA: "Atrás do conceito de cidadão existe, desde a sua origem, um preconceito, que estigmatiza o homem do campo como pessoa inconsciente, ingênua, dependente da cidade, esta ilusão do ser e do bem-estar e ideal de progresso. Em verdade, todos os que optam pela cidade, ou seja, todo o cidadão se torna, ipso facto, cúmplice de algumas iniqüidades como os grandes projetos e a depredação do ambiente natural. Ele vive deles. São a sua distração e a sua aparência de vida."
POR QUE CIDADANIA E NÃO PAGANIA?
Ao longo de 49 anos de convivência e apoio aos povos indígenas e agricultores, vi e senti a felicidade aflorar com mais freqüência nas aldeias interioranas do que nas cidades e metrópoles e tenho me perguntado com freqüência: por que cidadão e não pagão? Por que esta ânsia de transformar toda a gente em cidadão?
Cidadão é o homem da cidade e pagão o homem do pago, do campo. É provável que o conceito “pagão” no seu conteúdo atual se tenha originado do conflito cidadão-cristão e se popularizou no Estado Romano opressor como preconceito contra os cristãos para quem a terra era refúgio da autonomia, de um modo de vida fraterno, enraizado na terra e sobre a consciência das pessoas, sugerido como programa de vida por Jesus de Nazaré. Da distribuição fraterna dos bens produzidos na terra se alimentavam e a terra era o seu abrigo nas perseguições e para as celebrações. Durante 313 anos a utopia da fraternidade lhes foi garantida pelo pago, pela terra. Da terra tiravam ainda o sustento e nela se escondiam para articular o seu plano de vida.
Quando as lideranças da Igreja se converteram ao projeto imperial, tornando-se cidadãos do Império, o preconceito “pagão” passou a estigmatizar os que resistiam ao novo modelo, insistindo no modo estruturado na terra e na partilha, especialmente contra os cristão do campo, os pagãos.
Um grande escândalo da Igreja Católica, ao longo da sua História, foi a exclusão sistemática das pequenas comunidades interioranas da celebração autônoma da Eucaristia simplesmente por estarem longe das metrópoles. São elas que produzem a matéria prima da partilha, da eucaristia.
Atrás do conceito de cidadão existe, desde a sua origem, um preconceito, que estigmatiza o homem do campo como pessoa inconsciente, ingênua, dependente da cidade, esta ilusão do ser e do bem-estar e ideal de progresso. Em verdade, todos os que optam pela cidade, ou seja, todo o cidadão se torna, ipso facto, cúmplice de algumas iniqüidades como os grandes projetos e a depredação do ambiente natural. Ele vive deles. São a sua distração e a sua aparência de vida.
O cidadão acumula inviabilidade sobre inviabilidade, enleando-se, enleando-se sem condições de saída. Toda a cidade é uma construção sem futuro algum. Ou seja, o seu futuro é a metrópole, uma inviabilidade levada ao absurdo.
O preconceito do Estado contra o homem do campo faz parte de sua essência, porque o Estado se estrutura essencialmente sobre a cidade que sempre foi antagônica à terra. Cobrir a terra faz parte dos objetivos do cidadão.
O projeto cidadão vive, sempre viveu e sempre viverá montado na mentira, obrigando as pessoas a engolirem venenos. Fala em proteção ao meio ambiente, mas fomenta grandes hidrelétricas, fábricas de plásticos e de armas, cria e financia o agronegócio impondo-o como se fosse agricultura. A listagem das mentiras que todo o cidadão consome diariamente é interminável.
Toda a dependência, toda a falta de autonomia, toda a regra escrita, toda a burocracia, toda a necessidade de dinheiro e de poder, toda a evidência do poder em grandes construções, em sólidos templos e palácios não leva ao bem-viver.
Baseados sobre serviços voluntários, sobre a força da vida, da cultura ou da criatividade das pessoas e principalmente do investimento na autonomia e na realização plena de vocações, de vidas, as utopias e os projetos de vida plena se estruturaram sempre sobre o pago, o campo, o chão, a terra. A partir da terra-mãe contestaram o poder e o dinheiro. Assim tem sido a vivencia dos povos indígenas, Canudos, a República Comunista dos Guaranis... e por isso sempre foram odiadas pelo Estado.
No dia 31 de julho deste ano, um grupo de pessoas, com as mãos cheias de sementes e mudas se concentraram na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, onde iniciaram o replantio de árvores que há 50 anos povoavam aquela área. Foram reprimidos pela Polícia do Senado Federal, ato que simboliza o tratamento do Estado. Nenhum Estado tolera a autonomia plantada sobre a terra e a partilha. Com mudas e sementes nas mãos aqueles “pagãos” talvez iniciaram em Brasília a revolução pela qual o planeta mais anseia.
Na fragilidade das utopias e das comunidades interioranas reside o vigor da vida e o futuro do Planeta, a esperança de uma transformação verdadeira.
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