PICICA: Pausa para homenagear um dos maiores poetas da língua portuguesa - Carlos Drummond de Andrade - na data dos 100 anos do seu nascimento.
Carlos Drummond de Andrade [31 de outubro de 1902 — 17 de agosto de 1987]
-
A bruxa
A Emil Farhat
Nesta cidade do Rio,de dois milhões de habitantes,estou sozinho no quarto,estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?Ainda há pouco um ruídoanunciou vida ao meu lado.Certo não é vida humana,mas é vida. E sinto a bruxapresa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!E nem precisava tanto...Precisava de um amigo,desses calados, distantes,que lêem verso de Horáciomas secretamente influemna vida, no amor, na carne.Estou só, não tenho amigo,e a essa hora tardiacomo procurar amigo?
E nem precisava tanto.Precisava de mulherque entrasse neste minuto,recebesse este carinho,salvasse do aniquilamentoum minuto e um carinho loucosque tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,quantas mulheres prováveisinterrogam-se no espelhomedindo o tempo perdidoaté que venha a manhãtrazer leite, jornal e clama.Porém a essa hora vaziacomo descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!Tenho tanta palavra meiga,conheço vozes de bichos,sei os beijos mais violentos,viajei, briguei, aprendi.Estou cercado de olhos,de mãos, afetos, procuras.Mas se tento comunicar-meo que há é apenas a noitee uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!Essa presença agitadaquerendo romper a noitenão é simplesmente a bruxa.É antes a confidênciaexalando-se de um homem.
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond
Fonte: Memória Viva
Nenhum comentário:
Postar um comentário