outubro 07, 2011

Pastorais Socias criticam a internação compulsória de usuários de drogas e condenam a violência como metódo terapêutico: "internar é estigmatizar"

PICICA: No Amazonas, a Pastoral da Juventude abraçou a causa do movimento socioambiental Encontro das Águas. No Brasil, as Pastorais Sociais abraçaram a causa do movimento antimanicomial, contrário à internação compulsória de usuários de drogas em clínicas de segregação. Sobre esta última, leia o documento oficial da CNBB e sua posição sobre a atual Política Nacional de Combate ao Álcool e outras Drogas.
Marcha dos Excluídos - Manaus-AM, 2011 - Foto: Valéria Machado

Contribuições para o debate sobre a Política Nacional de Combate ao Álcool e outras Drogas


A política nacional antidrogas preconizada pelo governo convocou a sociedade para uma reflexão que traz ao debate, entre outros temas, a garantia da cidadania e da não segregação do seu povo. Tais garantias constitucionais colocam o Brasil entre os países democráticos que asseguram uma ordem ético-política reconhecida e legitimada por todos seus cidadãos e por outros países do mundo. 


A CNBB, por intermédio de diversas Pastorais Sociais, que atuam historicamente, junto ao lado de populações que vivem em situação de extrema miséria e vulnerabilidade, vem trazer algumas reflexões. Essa contribuição é feita no desejo de ajudar, sobretudo a partir do entendimento de que o pressuposto primeiro de uma política de atenção ao usuário de álcool e outras drogas deve se pautar no respeito à pessoa humana, à sua liberdade e, conseqüente, no direito à equidade e universalidade. 


Além disso, a política deve reconhecer o protagonismo histórico que se dá na encarnação da vida experimentada em sociedade, nos vínculos estabelecidos pela relação do eu com o outro, na não segregação dos habitantes da cidade e do campo em gozo dos direitos e deveres civis e políticos de um Estado. 


Ressaltamos o papel do Estado enquanto “cuidador” das pessoas, que não vem fazendo o caminho utilizado no que tange a essa questão, conforme ressalta Zaluar, 2003: “Ao Estado compete assegurar os direitos sociais, políticos, civis e os de quarta geração (os ecológicos) dos cidadãos. Mas o estado, no caso do uso das drogas ilícitas, tem apresentado sua outra feição: a de repressor das atividades condenadas criminalmente.” Além disso, a relação do homem com a droga não é fruto da modernidade, mas, ao contrário, é fato presente em todos os tempos históricos e nas diferentes culturas humanas, recebendo, em cada tempo e lugar um sentido e valor, não necessariamente associado a práticas marginais ou criminosas. O sentido de experiência marginal é o elemento novo desta histórica relação. 


Não obstante as implicações relativas ao tráfico, que, indubitavelmente merecem outro debate e atenção diferenciada do Estado, levanta-se aqui a preocupação em torno do uso das drogas e, nesse sentido consideramos:


1.      A importância de evitar reducionismos considerando sempre o caráter multifacetado do fenômeno. A droga, entre outros tantos usos, como um dos objetos e formas de acesso ao prazer; a droga como condutora de diferentes comportamentos, nem todos considerados de dependência; a droga como objeto de trabalho e modo de inserção produtiva, especialmente, para crianças, adolescentes e adultos pobres quando se inserem no mundo do tráfico.  Essa característica multifacetada aponta para outras questões sociais importantes e todos esses fatores devem ser considerados, na perspectiva de uma política pública;


2.      O vínculo com álcool e outras drogas pelas pessoas em situação de vulnerabilidade social, sobretudo aquelas que vivem nas ruas, não caracteriza, sempre e necessariamente, uma relação de dependência, sendo muitas vezes identificada como um modo de estabelecimento de laços e sociabilidade para fazer frente ao abandono; fruto da precariedade dos laços sociais, da desigualdade e exclusão, da falta de oportunidades e condições para a construção de uma vida digna;


3.      A importância da intersetorialidade das políticas de assistência social, educação, esporte, cultura, direitos humanos, trabalho e moradia para atuarem de forma conjunta com o SUS, possibilitando assim a superação da vulnerabilidade e a redução da demanda por drogas;

4.      A defesa dos direitos humanos dos usuários de álcool e outras drogas e das populações vulneráveis e, sobretudo, as que fazem uso da rua, se sobreponha e faça oposição às propostas de internação compulsória e involuntária;

5.      A necessidade de serviços que possam responder pelas demandas de suporte e proteção social, criando espaços de convívio, sociabilidade e moradia transitória para os usuários em tratamento nos serviços substitutivos e por estes encaminhados e dentro do território de referência e vida do usuário; não esquecendo, entretanto, que o investimento público deve ser, prioritariamente, destinado à criação e ampliação da rede de serviços substitutivos.


6.      A ausência de cuidados e a exclusão social que atingem de forma histórica e contínua as pessoas que consomem álcool e outras drogas apontam para a necessidade do fortalecimento e criação de serviços que promovem e garantem o direito de cada cidadão à saúde. Para tanto a Saúde, desde a sua atenção básica até o atendimento às necessidades específicas, passa pelas Maternidades, pelos Hospitais Gerais, e seus leitos de atenção integral, pelos Serviços de Urgência (SAMU), pelos Centros de Convivência, Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS – AD), pelos Consultórios de Rua e práticas da Redução de Danos, todos estes que devem ser oferecidos de maneira contínua e eficaz. Não objetivando o lucro financeiro das Instituições que administram a gestão em saúde, mas objetivando a própria saúde dos cidadãos;


7.      O princípio da humanização, o respeito ao território comunitário e a não segregação são condições fundamentais à saúde e fundamentais aos atendimentos. Os tratamentos devem pautar-se pelo acolhimento, estabelecendo-se os vínculos, potencializando os fatores positivos na atenção com o objetivo da construção de projetos.  Sabe-se que cotidianamente crianças e adolescentes, no Brasil, são vítimas de violência, não têm seus direitos fundamentais concretizados em políticas públicas efetivas e parece que não estão sendo prioridade absoluta na agenda dos municípios, estados e governo federal.

8.      A criação de um conjunto articulado de redes de cuidados sociais e comunitários como estratégia na mobilização para a busca de ações práticas na superação dos riscos. A integração dos diversos serviços e políticas públicas na promoção para o acesso ao trabalho, lazer, exercício de direitos civis. O fortalecimento de laços comunitários e familiares visando a autonomia e a dignidade das pessoas enquanto superam seus problemas. Propostas universalizantes e normatizadoras que não se traduzem em resultados concretos imediatos, mas que são processos necessários, urgentes e insubstituíveis. 


Acionar políticas emergenciais como esta de internar involuntariamente implica em atualizar modelos de intervenção amplamente criticados por profissionais, por pesquisadores na área de ciências humanas e sociais e pelos movimentos sociais, como o da Luta Antimanicomial. Desde a década de 40, no século XX, há denúncias da ineficácia da segregação em asilos e em equipamentos sociais de fechamento que acabavam funcionando como espaços de reclusão da miséria e da produção de estigmas e violência.


O correlato da internação era a tutela dos corpos aprisionados e não o cuidado integral e a garantia de cidadania. Por isto, questionamos este tipo de ação de encaminhamento de crianças, adolescentes e adultos usuários de crack de maneira compulsória às instituições de isolamento sob a rubrica de tratamento.


Nesse sentido, sobretudo por acreditarmos que a luta pela efetivação da democracia real, pela participação efetiva de todos e superação das desigualdades deve ser a nossa meta, é que defendemos que esse processo não pode excluir os que fazem uso de álcool e outras drogas, mas ao contrário, deve alcançá-los. Para tanto é necessário criar políticas que recusem a segregação, a exclusão e as práticas higienistas como solução para o sofrimento humano. É receoso e equivocado tratar os que vivem nas ruas pela perspectiva da segurança pública, pois isso é autorizar, mais uma vez, a violência como método terapêutico. O que nos parece absurdo e ineficaz.


Propomos também a construção deste processo na reflexão junto ao sujeito, buscando alternativas de vida alicerçadas no protagonismo e no estabelecimento de novos comportamentos, novas atitudes e referências seguras, rompendo o ciclo do isolamento e adoecimento que as internações compulsórias provocam.


Por fim, propomos que se articule junto à Presidente um Comitê Interinstitucional com a participação dos Ministérios afins, representantes da sociedade civil organizada, incluindo os sujeitos envolvidos nesta questão para que se estabeleça um debate amplo e que responda aos princípios preconizados nos direitos humanos e na Carta Magna da República.

Belo Horizonte, 05 de agosto de 2011

Pastoral Carcerária                                                              
Pastoral do Menor Nacional
Pastoral da Mulher Marginalizada                              
Pastoral Nacional do Povo da Rua
Pastoral da Saúde                                                                  
Pastoral da Sobriedade
Pe. Ari Antonio dos Reis - Assessor das Pastorais Sociais da CNBB

 

Dom Guilherme Antonio Werlang-
Presidente da Comissão para a Caridade, da Justiça e da Paz da CNBB

Referências Bibliográficas - Zaluar, Alba. O xadrez da droga no Brasil. In: Outro Olhar: Revista de Debates, Ano III, Nº 3. Belo Horizonte: Segrac Editora. Outubro de 2003.
Posicionamento do Conselho Federal de Psicologia frente à internação compulsória de crianças e adolescentes usuários de crack – Agosto de 2011

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