outubro 28, 2011

"Nelson Rodrigues enfrenta Zé Trindade no octógono Teatral", por Jair Alves


PICICA: "Quem leva o teatro e todas as artes brasileiras a sério não pode deixar passar essa oportunidade, pois a União, o MINC, e a Fundação Nacional das Artes (FUNARTE) investiram pesado nesta produção. Estão sendo gastos ao todo nesta programação composta por algumas sessões de teatro, além de outras atividades, 300 mil reais (o que não é muito, se comparado às cifras astronômicas destinadas às ong’s que “desenvolvem” o esporte no Brasil)."




avaliação crítica por Jair Alves
Quando Nelson Rodrigues trouxe à cena O Beijo no Asfalto, no início da década de 60, o Brasil se expandia em gozo com a recente conquista da Copa do Mundo na Suécia, ao mesmo tempo em que como uma “viúva e mal paga” a classe média carioca perdia o status de Capital da República. Isso não é pouco, se considerado que grande parte desse extrato social era de funcionário público. Esta tragédia Estadual agravou os mil e tantos conflitos sociais da “cidade maravilhosa”, herança desde os tempos da Guerra de Canudos quando os ex-combatentes do exército brasileiro vieram a ocupar os morros cariocas dando origem às favelas. Nos dias atuais, esses conflitos ganham Ares de juízo final. “Estamos à beira de um colapso”, teria dito o atual governador do Estado (com certa razão) diante da irresponsabilidade dos parlamentares que resolveram redistribuir os ganhos com o Pré-sal de acordo com os seus interesses e reduzindo substancialmente os recursos para àquele Estado. Com isso, o Brasil e o Estado do Rio de Janeiro, “que se explodem”, na versão em pauta “do cada um pra si e Deus que se dane”, também.


A peça, evidentemente, não discute o pré-sal nem as trapalhadas da Brasília atual, mas antecipa em muitos anos o desenho cafajeste do cidadão urbano. O personagem repórter e o personagem delegado que o digam. Para dar uma idéia daquilo que o expectador de hoje poderá ver naquele pequeno teatro da Rua Teodoro Baima, é mais do que necessário colocar uma colher de humor nessa sopa quase indigesta, lembrando que Zé Trindade nessa mesma época brilhava nas comédias da Atlântida repetindo o bordão “meu negócio é mulé”. Era naturalmente um humor machista, no entanto, à beira da inocência. Em verdade, o povão deslumbrado com os primeiros ganhos de um Brasil que se industrializava preferia ver, não as tragédias tão bem fotografadas por Nelson Rodrigues desde a década de 40, e, sim, as chanchadas da Atlântida com o seu humor leve e desprovido de radicalidade, coisa que nunca faltou a esta classe média “neurotizada”. Zé Trindade foi o Mazzaropi urbano, um pau de arara que se fingia de rico. Como é sabido os personagens "rodriguinianos" são todos trágicos e, ao mesmo tempo, patéticos. Neste ponto chamamos a atenção do grande público teatral paulistano, o mesmo que num passado cinqüentenário ria das piadas de Zé Trindade, Dercy Gonçalves, Walter D'Ávila: É PRECISO ASSISTIR, “NEM QUE CHOVA CANIVETE ABERTO”, a atuação acachapante de Renato Borghi num papel quase que secundário, recuperando a força do teatro brasileiro numa arena (octógona) que ficou conhecida por suas montagens célebres. Nem todas as gerações terão essa oportunidade, quem estiver vivo, em São Paulo, não pode perder. Mesmo tendo que suportar lá por algum tempo atores com pouca quilometragem, estourando os ouvidos da platéia num exagero desnecessário. Calma aí, parceiros, todos sabemos que se trata de uma trupe de canastrões, mas equilíbrio sempre ajuda, não acham? Até certa altura da peça parece uma representação “retro”, mas pedimos ao distinto expectador que agüente firme porque “o duelo” entre Renato Borghi e Elcio Nogueira quase ao final faz arrepiar todos os pelos do corpo.


Quem leva o teatro e todas as artes brasileiras a sério não pode deixar passar essa oportunidade, pois a União, o MINC, e a Fundação Nacional das Artes (FUNARTE) investiram pesado nesta produção. Estão sendo gastos ao todo nesta programação composta por algumas sessões de teatro, além de outras atividades, 300 mil reais (o que não é muito, se comparado às cifras astronômicas destinadas às ong’s que “desenvolvem” o esporte no Brasil). Numa leitura economicista que se pode fazer a respeito nos leva a considerar que cada ingresso de “O Beijo no Asfalto” custa ao Estado cerca de 50 reais, assento ocupado ou não pelo público que esperamos possa entupir aquelas cinqüentenárias poltronas (???). Lendo a entrevista de Renato Borghi na publicação que acompanha a representação ele reclama, também com razão, que o público tenha que pagar 100 reais pelo ingresso (em qualquer peça). Se somarmos o investimento da FUNARTE nesta produção, ao que o público tem que pagar (20,00) para assistir O Beijo no Asfalto veremos que o que diz o ator procede. O mesmo se pode dizer sobre a persistente crítica que ele faz à inexistência de uma política cultural, por parte dos órgãos governamentais. Há sete anos gravamos longa entrevista com o ator, em vídeo, onde ele já repetia as mesmas críticas e quase nada evoluiu neste período. Além do investimento realizado pela FUNARTE (900 mil, só em São Paulo) é necessário também dar visibilidade a esta produção que podemos ver agora.


Voltando à peça em cartaz, os teóricos que debruçam sobre a obra de Nelson Rodrigues já escreveram uma biblioteca a respeito, no entanto, aspectos prosaicos de sua dramaturgia ainda não foram destacados numa linguagem que o grande público possa entender e se interessar. Lembramos de Zé Trindade em contraste a Nelson Rodrigues como provação, é claro, porque este e seus contemporâneos foram os antecessores do humor fácil realizado hoje, em Zorra Total (Globo), Tom Cavalcanti (Record), e a Praça são Nossos (SBT). Em todas estas manifestações, o sexo, a bissexualidade, e as “coxonas” apresentadas, ora como preconceito disfarçado, ora como mais um produto vendável e, depois, descartado. No caso de Nelson Rodrigues estes temas já apareciam embutidos no moralismo punitivo da década de sessenta, na classe média carioca de então, da mesma forma que se pode ver atualmente na classe média paulistana das zonas norte, oeste, e parte da zona Leste. As “coxonas” também estão presentes na montagem atual, e que coxa, diga-se, porém com um sentido felliniano indigesto. A sensação que se tem é que além do desejo (reprimido) estes componentes freudianos provocam sensações de sufoco, de pânico, nos personagens masculinos ou femininos. O furor uterino demonstrado pela “cunhadinha” é assustador, a tara apresentada na cabeça de Aprígio (personagem de Renato Borghi), ao final da peça, deixa claro que ele tem medo do seu próprio desejo, teme que ele que o sufoque. Então, sua única saída é destruir o objeto desse desejo. Esta é a metáfora da classe média, do passado e do presente. 

Um outro componente de o “O Beijo no Asfalto” é o mito do “amor eterno”, presente na relação do jovem casal. O infortúnio do protagonista, atingido pelo escárnio da trama inventada por um jornalista (proprietário de um jornal) e o delegado corrupto, rendeu-lhe além da punição social a repulsa de sua mulher que nem se importou se ele conhecia ou não o atropelado e, sim, por que teria beijado na boca um outro homem? Isso provocava nela, o asco. Prova de que Nelson Rodrigues também via nisso, uma ameaça ao amor eterno. O crítico de teatro, Sábato Magaldi, e também amigo pessoal de Nelson Rodrigues foi procurado certa vez pelo dramaturgo para ouvir que este estava apaixonado. Esperamos, ardentemente, que um dia Sábato registre esta passagem em livro, seria revelador. Por enquanto, reservamos esta iniciativa ao crítico. O que podemos falar aqui é que não resta a menor dúvida de que Nelson Rodrigues é o mais autentico personagem de seus dramas e que Renato Borghi, apesar de um “Physique du Rôle" diferente, seria o seu melhor interprete.


SERVIÇO:


Programação (2011):
- “Folhetim” - Edição especial da revista semestral de ensaios (editada por Teatro do Pequeno Gesto), sobre a obra de Nelson Rodrigues reúne ensaios dos autores Alain Ollivier, Antonio Guedes, Cláudia Tatinge do Nascimento, Edélcio Mostaço, Fátima Saadi, Fernando Marques, Mariana Oliveira, Walter Lima Torres, entre outros. Traz também um dossiê de críticas jornalísticas, organizado por Fátima Saadi, abrangendo seis décadas da dramaturgia brasileira, e uma entrevista com Antunes Filho, que desde 1954 estuda o teatro rodriguiano.
folhetim@pequenogesto.com.br


Espetáculos Teatrais:
“O Beijo no Asfalto”
- Texto: Nelson Rodrigues
- Direção artística: Marco Antônio Braz
Elenco: Renato Borghi, Hudson Senna, Élcio Nogueira, Gabriela Fontana, Rodrigo Fregnan Lívia Ziotti, Willians Mezzacapa, Amanda Pereira, Michel Waisman, Carol Carreiro, Rafael Boese, Adriana Guerra
- Quando: de 14 de outubro a 27 de novembro (exceto 11 de novembro); 04, 11 e 18 de dezembro - sextas e sábados, às 21h, e domingos, às 19h
- Assistência de direção e preparação corporal: Ana Nero
- Assistente de cenografia e figurino: Clau do Carmo
- Sonoplastia: Tunica Pereira
- Designer de luz: Roberto Cohen
- Cenografia e figurino: Telumi Hellen
- Produtora: Sinal Vermelho Filmes
- Produção executiva: Paulo Ferrer e Cristina Satto
- Assistente de produção: Rafael Augusto
- Ingressos: RS 20 (meia: RS 10).
- Bilheteria: uma hora antes do espetáculo
- Local: Teatro de Arena Eugênio Kusnet. Rua Dr. Teodoro Baima, 94, Vila Buarque/SP

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