PICICA: "(...)não cabe uma sinonímia entre o senhor e o escravo e as
classes dominante e dominada, como se fossem a forma e o conteúdo da
Grande Narrativa para as relações de poder. Não se faz apologia da
aristocracia dos poderosos. O senhor e o escravo atuam como personagens de conceito:
que podem se exercer de múltiplas maneiras, nos riscos e ameaças da
floresta dos lobos. Não é possível identificar um substrato sociológico
ou fixar um referente, a fim de atribuir o papel de senhor ou escravo a
isto ou aquilo. O senhor poderá ser o filho do escravo."
O senhor e o escravo
A chegada de Lampião ao inferno
O ressentimento do escravo separa o céu e a terra. Duplica o mundo real e as suas relações. Duplica-os na moral, cujos valores ordenam-se de fora, fixos, já estabelecidos. Cabem ao escravo então duas atitudes opostas. Como tese: confirmar e inventariar os valores (funcionários da filosofia, burocratas do Castelo etc.). Ou como antítese: negá-los na histeria do social sem, contudo, escapar de sua própria paixão ressentida. Pois o que o escravo faz não pode mudar nada, sem a participação direta do senhor, sem se tornar o senhor nas mesmas condições. O escravo espelha-se no senhor. Todo o cosmo fecha-se então sobre si, numa harmonia universal dos antípodas.
O escravo pensa o direito como reivindicação diante de um altar. Eis a vontade abstrata da lei, o estado, a moralidade, a humanidade do homem. Reclama a reparação da injustiça e exaspera uma indignação moral. Os escravos agrupados em rebanho acabam liderados pelo sacerdote. O sacerdote mobiliza as paixões tristes e se constrói no ideal ascético da pureza. O sacerdote prega sobre a dupla hierarquia de céu e terra (dever-ser e ser), teologiza as relações materiais para neutralizar a ruptura e, nada inocente, reduz a multiplicidade à escolha entre Deus e o Diabo.
O senhor, de outra feita, não separa o que ele faz do que ele pode. Move-se no espaço alisado dos sertões do real. Em termos marxistas, diz-se: das relações sociais de produção, da materialidade das lutas, do trabalho vivo. Então, para o senhor, o direito não se separa do sentido da terra. Coincide com a potência e a virtude (direito = potência = virtude), de maneira que o senhor pode constituir ele mesmo o que é justo, na prática, na afirmação de valor. Eventual oposição do jus à Lex se dará como reflexo de uma relação absolutamente interna, interna dos efeitos às causas e vice-versa. Não se separam o que o senhor pode e o que ele faz.
Evidentemente, não cabe uma sinonímia entre o senhor e o escravo e as classes dominante e dominada, como se fossem a forma e o conteúdo da Grande Narrativa para as relações de poder. Não se faz apologia da aristocracia dos poderosos. O senhor e o escravo atuam como personagens de conceito: que podem se exercer de múltiplas maneiras, nos riscos e ameaças da floresta dos lobos. Não é possível identificar um substrato sociológico ou fixar um referente, a fim de atribuir o papel de senhor ou escravo a isto ou aquilo. O senhor poderá ser o filho do escravo.
A dialética tenderá sempre a servir à classe dominante, interessada em reconciliar os sujeitos e os valores na sua realidade. Tentará chegar a termo nos antagonismos, perderá os dedos mas não os anéis, de modo a preservar a totalidade, o modo de produção global.
Do ponto de vista ético, a formulação propugna para que os que lutam pela mudança ajam como senhores, que sejam fortes e tenham coragem, que decidam na virtude de ser gauches da vida. Que rompam as injunções morais e os mundos simbólicos impostos de cima das nuvens, para afirmar e constituir um outro mundo, mais afirmativo e menos ordinário. Que vivam de outro modo a liberdade. Quando isso acontece, rasga-se o céu azul dos valores e prevalece o mundo diabólico da revolução e da festa, sobre o cosmo da segurança e do medo. É a algazarra dos demônios ao meio dia, que põe fim à história de muitos erros e instaura a desordem do desejo. Libertando-se da consciência ressentida do escravo, escapando da dialética do poder que o aprisiona, o novo sujeito político pode realizar-se como poder constituinte.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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