PICICA: "(...)passados quase sessenta anos do trágico suicídio no
Catete, as paixões partidárias sobre Getúlio em pessoa já estão
relativamente adormecidas, de modo que o maior risco de um trabalho
biográfico sobre este personagem não se dá em parecer pouco ou muito
afeito ao seu legado político, mas em manter um delicado equilíbrio
entre a percepção de que se trata, no limite, de apenas um homem como
outro qualquer e a consciência de que será inevitável buscar em cada ato
ou fato envolvendo Getúlio alguma prefiguração ou alegoria do que
cremos ter sido seu significado para o Brasil."
Getúlio e arredores
Há uma ótima e muito acertada escolha pelo
equilíbrio no livro de Lira Neto, cujo sentido geral é dar a ver o que
havia de substancial na figura esquiva de Getúlio Vargas.
por Vinícius Justo (20/06/2012)
em História, Livros
A primeira é a hipótese da proteção da figura política, com o fito de evitarmos a leitura maniqueísta ou partidária. Entretanto, no exagero das contradições, no cultivo das divisões inconciliáveis dos governos e opiniões presumidas de Getúlio, reside inegavelmente uma forma algo curiosa de assegurar uma miríade de ideias sobre o personagem. Nessa leitura, a esfinge seria um símbolo vazio o qual seria possível preencher do modo que fosse desejável, e Getúlio estaria instrumentalizado sem possibilidade de reparo.
Uma segunda leitura poderá ser encontrada, ao contrário do esvaziamento do personagem da primeira, na identificação direta de Getúlio com o Brasil (ou com o Rio Grande do Sul): as contradições apresentadas seriam as mesmas que assolariam a terra brasilis, sem prejuízo às características pessoais mais arraigadas, que seriam a forma particular de manifestação da própria nacionalidade. Aqui, a falta de compromisso do símbolo com sua realidade cede lugar à significação potencialmente hipertrófica, buscando ver uma pessoa como alegoria de um modo de ser – desaconselhável mesmo quando se trata de um grande líder nacional.
Pois bem, o leitor pode se perguntar o porquê de tão largo preâmbulo para resenhar a recém-lançada biografia de Getúlio Vargas, autoria de Lira Neto e editada pela Companhia das Letras. Justifico-me afirmando que, passados quase sessenta anos do trágico suicídio no Catete, as paixões partidárias sobre Getúlio em pessoa já estão relativamente adormecidas, de modo que o maior risco de um trabalho biográfico sobre este personagem não se dá em parecer pouco ou muito afeito ao seu legado político, mas em manter um delicado equilíbrio entre a percepção de que se trata, no limite, de apenas um homem como outro qualquer e a consciência de que será inevitável buscar em cada ato ou fato envolvendo Getúlio alguma prefiguração ou alegoria do que cremos ter sido seu significado para o Brasil.
Em outras palavras: Lira Neto não terá motivos para receber pareceres contrários de queremistas ou udenistas, mas seria malsucedido se seu trabalho reforçasse o esvaziamento simbólico ou a excessiva alegorização que citamos acima. Como uma resenha publicada algumas semanas após o efetivo lançamento do livro, já devida e merecidamente festejado em todos os jornais de circulação razoável no Brasil, este texto não pretenderá apenas apresentar ao possível leitor este primeiro volume sobre Vargas, mas realizar uma análise crítica do resultado textual da pesquisa extensa, realizada durante dois anos e meio. Para isto, pensar nos termos acima é vital para avaliar o sucesso de uma obra cujo grande objetivo é fazer um relato “sem o impressionismo da maioria dos relatos biográfico-jornalísticos já publicados sobre o personagem” (p. 526).
Há, portanto, dois impulsos possíveis: o primeiro é a sede de reencontrarmos o que já conhecemos previamente como Getúlio agora em uma narrativa organizada em seu torno, dispensando o que seria inútil para compreender as ações do personagem; o segundo é lançarmo-nos sobre a excitante possibilidade de descobrir um novo homem que venha a superar os entendimentos anteriores a seu respeito. A rigor, não é muito diferente da experiência de lermos um romance do qual já sabemos as linhas gerais do enredo e algo sobre o protagonista: faltam-nos os detalhes, o sabor do estilo do romancista e algumas ligações importantes, mas já temos alguma expectativa sobre como será nossa experiência de leitura.
A diferença crucial, poderia dizer alguém apressado, é que nesse caso o personagem existiu de verdade. Nada mais falso: além de romances poderem ser escritos sobre pessoas de carne e osso, o biografado que emerge do texto não é a própria pessoa – é uma falsa dicotomia. O que existe de especial na biografia está na alteração do princípio ordenador do texto: um romance terá o artístico como princípio por excelência, e o andamento do enredo ou as descrições obedecerão ao estético. A biografia pode ter um nível estético primoroso e até ordenar os fatos de forma a construir um efeito artístico diverso da simples narração de eventos em ordem cronológica (e em parte é o que faz Lira Neto), mas o objetivo desse tipo de texto está em uma fidelidade documentária estranha à literatura ficcional. A melhor biografia é aquela que se atém às fontes, escritas e faladas, para compor a narrativa – e os efeitos estéticos são apenas suporte para permitir a absorção, pelo leitor, do conteúdo ditado pelas fontes.
Isso poderia gerar a impressão de que bastaria avaliar as impressionantes sessenta páginas de notas e quinze de bibliografia em letra miúda para atestar o sucesso do esforço de Lira Neto em torno do personagem político brasileiro mais importante do século XX. Não nego que isso já bastaria como argumento de autoridade valioso, e a garimpagem de documentos realizada será base incontornável para qualquer estudioso do período a partir de agora. Mas o elemento narrativo e, em última medida, o estético ainda ditam seus parâmetros: nossa leitura não busca apenas a correção documentária, embora seja esse o critério para a validade do esforço biográfico. Passemos então à leitura do livro, para avaliar com mais clareza seu nível de acerto não frente ao personagem real Getúlio Vargas, morto há décadas, mas em relação à expectativa narrativa criada no ato de leitura de sua biografia.
Vejamos. Castello, primeira biografia de um político feita pelo autor, começava com o episódio do golpe militar e as maquinações nos bastidores para decidir quem seria o chefe do governo provisório, e a escolha por Castello Branco se dá à revelia do principal ator em cena, Costa e Silva: se a reconstrução histórica merece aplausos, a ausência estratégica do personagem principal tende a enfraquecer um pouco sua imagem na cabeça do leitor.
O próximo livro, O inimigo do rei, apresenta como prólogo um discurso afiado e ferino de José de Alencar, dando o tom perfeito de boa parte do enredo: um deputado e literato de intensa opinião, mesmo em seus momentos mais alquebrados. Por outro lado, há certa “forçada de barra” desde o título, que maximiza o papel de José de Alencar como uma espécie de opositor real – papel no qual o autor de Iracema só teve relativo sucesso na famosa polêmica da Confederação dos Tamoios.
E então em Getúlio temos uma ótima e muito acertada escolha pelo equilíbrio. As primeiras páginas, encimadas pelo título radiofônico-telegráfico do capítulo, recriam o ambiente de uma apresentação de poder do regime fascista em céus brasileiros em 1931 – uma dúzia de anos depois, o Brasil entraria em guerra com a Itália. O episódio é saboroso pelo que tem de pouco conhecido e ao mesmo tempo representativo: o voo dos oficiais fascistas pelo Rio de Janeiro é uma forma oblíqua de traduzir o entusiasmo de grande parte da nação com o governo que se iniciava, construído a partir da Revolução de 1930 e de um sentimento difuso de modernização do sistema político nacional. Ao final veremos que o resultado final só poderia mesmo ser a ditadura (p. 520), mas no momento apenas vemos a euforia do povo e o orgulho do ministro Italo Balbo, representante do governo de Mussolini deste lado do Atlântico.
Aparentemente, a estrutura é a mesma de Castello: a abertura trará movimentos próximos ao objeto da narrativa, concentrando-se neles pelo efeito que o biografado lhes causa. Mas Italo Balbo vai a uma audiência com Getúlio, em que o contraste é inevitável: Balbo, como bom oficial fascista, orgulha-se de si, sua nação e seu regime, e não perde oportunidade para manifestar-se a favor do Duce. O povo, como já vimos, também não perdeu a oportunidade de festejar sua chegada aérea espetacular e, em última instância, o governo getulista que começava. Tudo ao redor de Getúlio é extroversão, mas ele permanece incólume.
Isso dará o tom da biografia, salvo as exceções de praxe a confirmarem a regra: o personagem principal se relaciona com seus pares, seus superiores, a sociedade, tudo, enfim, mas quase nunca é contagiado por suas forças, quase nunca é arrebatado. No prológo, todos os atores são grandiloquentes: os fascistas e seus simpatizantes, os operários comunistas que os atacam em São Paulo, repórteres de jornais e rádios, outros políticos no poder ou fora dele. Getúlio, impassível, vez por outra dá um de seus famosos sorrisos e estabelece o principal ponto de contato entre a biografia e a fama do personagem real: se Getúlio por muito tempo foi considerado esfinge é porque evitava se envolver em demonstrações demasiado efusivas de seus intentos e opiniões. O que de modo algum nos afasta do sentido geral do livro, que é dar a ver o que havia de substancial na figura esquiva.
Os aviões italianos, motivo de orgulho para os pilotos fascistas, são vendidos “de graça” para o Brasil, numa troca por oito mil contos de réis em sacas de café – que de outro modo mofariam nos armazéns, devido à ausência de compradores. Getúlio já tem traços que o distinguem definitivamente da maioria dos que o rodeiam: é sorrateiro e alcança as vantagens pretendidas, mas não vai se contaminar nem com o próprio sucesso, nem com as opiniões alheias, muito menos com os onipresentes chamados para explicações. No contraste com os arredores está o significado maior que o livro dá a Getúlio Vargas.
Os primeiros capítulos trazem os anos de formação, com a montagem de um bom background da família, em especial do general Manuel Vargas, veterano da Guerra do Paraguai e pai de Getúlio. Sem esquecer de coordenar os acontecimentos da realidade histórico-política mais geral com os episódios da vida pessoal do jovem Vargas, Lira Neto alcança êxito ao apresentar o efeito causado pelos eventos (em especial a Revolução Federalista). Nesses momentos, o entrelaçamento das duas dimensões nunca parece gratuito ou forçado, contribuindo para a narrativa do livro como um todo.
Além da infância, dos anos de formação intelectual (com mostras de que Getúlio era um ótimo aluno) e das relações familiares, outros aspectos são bem ressaltados, como os namoros de juventude até o casamento com Darcy – que não foi na Igreja, cumprindo o que se esperaria de um seguidor do positivismo de Júlio de Castilhos –, a experiência curta e desapontadora com o Exército (nesse momento, no terceiro capítulo, tanto as cartas de Getúlio sobre a “contenda do Acre” como os trotes de escola militar – um deles, hilário, aplicado contra Dutra; sim, ele mesmo – são narrações preciosas).
Outro grande mérito é o tratamento contido, mas não menos significativo, do impacto causado por dois suicídios familiares ao futuro presidente. A morte trágica do padrinho e o desespero endividado do sogro são prenúncios daquilo que viria a acontecer em agosto de 1954, embora as motivações sejam bastante diversas. Certo é que o suicídio não é um tema pouco presente no imaginário da formação de Getúlio; a narração dos casos não exagera, mas não deixa de assinalar o que pode ter sido o primeiro fio de uma ideia. O livro já valeria a pena por esses momentos, em especial o do padrinho – que além do suicídio, introduz o tema da paranoia de perseguição que parece ter “acometido” Getúlio em seu final (muito embora ele de fato estivesse sendo acuado por todos os lados, e possivelmente o tiro no peito era mesmo a única saída honrosa). Enfim, novamente os arredores contrastam e enformam o protagonista.
Para não deixar de mencionar: o trabalho investigativo de Lira Neto na solução de dois crimes, nos quais houve suspeita de algum envolvimento de Getúlio, é louvável. No primeiro caso, conhecido de muitos, uma confusão em Ouro Preto com jovens paulistas acaba levando à morte de um deles em briga com os gaúchos liderados pelo irmão mais velho de Getúlio, Viriato Vargas. No passado, Carlos Lacerda e outros se utilizaram da história mal contada para associar Getúlio ao assassinato. Lira Neto, ao analisar minuciosamente os autos policiais do caso, não afirma categoricamente nada, mas o envolvimento de Getúlio é altissimamente improvável e quase com certeza foi efetivamente Viriato quem assassinou o rapaz paulista. Sobre o segundo caso não conto para não estragar a leitura. O que resta, de todo modo, é a capacidade do autor não esmorecer para desvendar os momentos nebulosos.
Aliás, retomando a carta ao então presidente, não deixa de ser curioso o tratamento dado por Lira Neto ao episódio. Getúlio, dois meses antes, havia enviado uma carta com juras de eterna fidelidade às decisões de Washington Luís. Durante a campanha, a oscilação manhosa e oportunista foi altamente aproveitada; nesses momentos, o tom do texto se aproxima mais empaticamente de Getúlio e seus correligionários, no que parece ser um reconhecimento implícito de que a política de bastidores dificilmente apresentará um alto nível de cumprimento de promessas.
Pelo avesso: a capacidade do “gaúcho que é mineiro” de jogar com ambos os lados ao mesmo tempo é descrita como se fosse necessidade e, talvez pela influência por uma leitura teleológica que uma biografia da qual conhecemos os lances principais pode causar, com uma dose boa de admiração. O dissimular e o esperar são os dois verbos que declinam as qualidades políticas de Getúlio, e a ausência de julgamento sobre isso é, além de exercício louvável da neutralidade, também uma forma de reconhecer o impróprio do anseio no sentido contrário – e o cinismo implícito aí não deixa de ser em si uma forma de imparcialidade. Talvez somente nos dias de hoje esse retrato pudesse ter sido feito com essas tintas e, em vez de escândalo, produzir consciência, não necessariamente crítica.
Sem esquecermo-nos dos arredores, aqui dois personagens “roubam a cena” e, sabemos, serão protagonistas de lances decisivos nas próximas cenas não cobertas nesse volume. O primeiro é Oswaldo Aranha, que muda o panorama do avanço político de Getúlio completamente. Sua primeira aparição, lá pela metade do livro, responde também à divisão acima mencionada entre uma metade de “formação” e outra metade “revolucionária”. Em outras palavras, sem Aranha muito provavelmente os acontecimentos teriam tomado rumos completamente estranhos ao conhecido, tal é a centralidade que obtém desde o começo das maquinações. Figura sempre citada e trabalhada ao lado de Getúlio, Aranha desponta felizmente como uma grande realização de Lira Neto, capaz de conferir ao “semibiografado” a independência de ação que caracteriza os momentos mais felizes da narrativa.
Do outro lado, temos o vice-presidente do Rio Grande do Sul na chapa de Getúlio, João Neves da Fontoura. Amigo que virou adversário que virou amigo e adversário outra vez, Neves é retratado como um idealista, homem de ação impaciente com as demoras e avaliações calculadíssimas de Getúlio. Apesar do respaldo amplo na documentação, creio aqui haver alguma forçada de nota a respeito do caráter de João Neves, algo influenciada pela sua atuação posterior. Apesar de aos olhos de Getúlio a atuação do aliado ser intempestiva e contrária aos objetivos diretos da coalizão, é lícito supor que os movimentos de Neves foram tão bem calculados quanto os de Getúlio, em especial o momento da aliança com os republicanos mineiros (p. 307 e seguintes). No geral, o Getúlio vacilante da metade final precisava correr riscos e não os correria sem a atuação diligente dos dois acima e outros – e a cautela, sempre valorizada, talvez não o devesse ser com tanta insistência no livro, uma das poucas ressalvas de conjunto que faço.
Este perfil não estaria completo sem citar, brevemente, duas passagens empolgantes e divertidas: os dois encontros secretos de Getúlio com Luís Carlos Prestes, talvez o dono da trajetória política mais interessante dentre as que correram em paralelo com a do estancieiro. Os encontros, para o mal do segundo, não seriam os únicos.
::: Getúlio (1882-1930): Dos anos de formação à conquista do poder :::
::: Lira Neto :::
::: Companhia das Letras, 2012, 624 páginas :::
em História, Livros
1.
O gosto por algumas mistificações se torna até compreensível, considerando os limites de praxe, pelo conforto oferecido. Por muito tempo investiu-se na imagem de um Getúlio Vargas incompreensível, figura que encerraria tantas contradições e mistérios que a única forma de se aproximar de seu significado seria o símbolo: esfinge de sorrisos ao mesmo tempo interrogantes e ameaçadores. Desnecessário dizer o quão problemáticas podem ser as abordagens deste calibre, ao negarem a compreensão neutra e desinteressada de um fenômeno político único – por mais quimérico que seja esse ideal de neutralidade, será inevitavelmente o horizonte de um pesquisador ou um estudioso. Por outro lado, duas possíveis interpretações dessa preferência pelo “Getúlio indecifrável” assinalam seu caráter, em última instância, útil.A primeira é a hipótese da proteção da figura política, com o fito de evitarmos a leitura maniqueísta ou partidária. Entretanto, no exagero das contradições, no cultivo das divisões inconciliáveis dos governos e opiniões presumidas de Getúlio, reside inegavelmente uma forma algo curiosa de assegurar uma miríade de ideias sobre o personagem. Nessa leitura, a esfinge seria um símbolo vazio o qual seria possível preencher do modo que fosse desejável, e Getúlio estaria instrumentalizado sem possibilidade de reparo.
Uma segunda leitura poderá ser encontrada, ao contrário do esvaziamento do personagem da primeira, na identificação direta de Getúlio com o Brasil (ou com o Rio Grande do Sul): as contradições apresentadas seriam as mesmas que assolariam a terra brasilis, sem prejuízo às características pessoais mais arraigadas, que seriam a forma particular de manifestação da própria nacionalidade. Aqui, a falta de compromisso do símbolo com sua realidade cede lugar à significação potencialmente hipertrófica, buscando ver uma pessoa como alegoria de um modo de ser – desaconselhável mesmo quando se trata de um grande líder nacional.
Pois bem, o leitor pode se perguntar o porquê de tão largo preâmbulo para resenhar a recém-lançada biografia de Getúlio Vargas, autoria de Lira Neto e editada pela Companhia das Letras. Justifico-me afirmando que, passados quase sessenta anos do trágico suicídio no Catete, as paixões partidárias sobre Getúlio em pessoa já estão relativamente adormecidas, de modo que o maior risco de um trabalho biográfico sobre este personagem não se dá em parecer pouco ou muito afeito ao seu legado político, mas em manter um delicado equilíbrio entre a percepção de que se trata, no limite, de apenas um homem como outro qualquer e a consciência de que será inevitável buscar em cada ato ou fato envolvendo Getúlio alguma prefiguração ou alegoria do que cremos ter sido seu significado para o Brasil.
Em outras palavras: Lira Neto não terá motivos para receber pareceres contrários de queremistas ou udenistas, mas seria malsucedido se seu trabalho reforçasse o esvaziamento simbólico ou a excessiva alegorização que citamos acima. Como uma resenha publicada algumas semanas após o efetivo lançamento do livro, já devida e merecidamente festejado em todos os jornais de circulação razoável no Brasil, este texto não pretenderá apenas apresentar ao possível leitor este primeiro volume sobre Vargas, mas realizar uma análise crítica do resultado textual da pesquisa extensa, realizada durante dois anos e meio. Para isto, pensar nos termos acima é vital para avaliar o sucesso de uma obra cujo grande objetivo é fazer um relato “sem o impressionismo da maioria dos relatos biográfico-jornalísticos já publicados sobre o personagem” (p. 526).
2.
O que se espera de uma biografia de Getúlio Vargas? Talvez a pergunta devesse ser sobre o que esperamos de biografias em geral. Há as respostas mais simples – conhecer mais profundamente a trajetória de alguém, ver novidades a respeito de seu caráter ou história de vida, curiosidade sobre figuras que participam da vida do personagem, etc. No essencial, as respostas acima estão corretas, mas ainda carecem do sentido propriamente textual da forma biográfica. Por vezes, essas informações estão plenamente disponíveis, seja naturalmente ou por esforços biográficos anteriores, mas a existência de uma nova biografia tende a alterar os parâmetros de leitura das outras, ainda que pela mera aparição do contraste. Isso é ainda mais forte no caso de Getúlio Vargas, que teve sua primeira biografia no sentido estrito apenas agora, como diz o próprio Lira Neto, mas já teve toneladas de páginas escritas por centenas de admiradores, detratores, estudiosos, adversários e amigos, incluindo a si mesmo em seu longo diário começado em 1930.Há, portanto, dois impulsos possíveis: o primeiro é a sede de reencontrarmos o que já conhecemos previamente como Getúlio agora em uma narrativa organizada em seu torno, dispensando o que seria inútil para compreender as ações do personagem; o segundo é lançarmo-nos sobre a excitante possibilidade de descobrir um novo homem que venha a superar os entendimentos anteriores a seu respeito. A rigor, não é muito diferente da experiência de lermos um romance do qual já sabemos as linhas gerais do enredo e algo sobre o protagonista: faltam-nos os detalhes, o sabor do estilo do romancista e algumas ligações importantes, mas já temos alguma expectativa sobre como será nossa experiência de leitura.
A diferença crucial, poderia dizer alguém apressado, é que nesse caso o personagem existiu de verdade. Nada mais falso: além de romances poderem ser escritos sobre pessoas de carne e osso, o biografado que emerge do texto não é a própria pessoa – é uma falsa dicotomia. O que existe de especial na biografia está na alteração do princípio ordenador do texto: um romance terá o artístico como princípio por excelência, e o andamento do enredo ou as descrições obedecerão ao estético. A biografia pode ter um nível estético primoroso e até ordenar os fatos de forma a construir um efeito artístico diverso da simples narração de eventos em ordem cronológica (e em parte é o que faz Lira Neto), mas o objetivo desse tipo de texto está em uma fidelidade documentária estranha à literatura ficcional. A melhor biografia é aquela que se atém às fontes, escritas e faladas, para compor a narrativa – e os efeitos estéticos são apenas suporte para permitir a absorção, pelo leitor, do conteúdo ditado pelas fontes.
Isso poderia gerar a impressão de que bastaria avaliar as impressionantes sessenta páginas de notas e quinze de bibliografia em letra miúda para atestar o sucesso do esforço de Lira Neto em torno do personagem político brasileiro mais importante do século XX. Não nego que isso já bastaria como argumento de autoridade valioso, e a garimpagem de documentos realizada será base incontornável para qualquer estudioso do período a partir de agora. Mas o elemento narrativo e, em última medida, o estético ainda ditam seus parâmetros: nossa leitura não busca apenas a correção documentária, embora seja esse o critério para a validade do esforço biográfico. Passemos então à leitura do livro, para avaliar com mais clareza seu nível de acerto não frente ao personagem real Getúlio Vargas, morto há décadas, mas em relação à expectativa narrativa criada no ato de leitura de sua biografia.
3.
Felizmente, um dado estrutural do livro permite que não precisemos entrar em pormenores ou spoilers para apresentar devidamente o modo pelo qual se realiza a obra: o prólogo, à semelhança de outras biografias feitas por Lira Neto, cumpre o papel de introduzir o personagem e os temas principais que serão tratados no curso da narrativa, mas o faz in medias res, em algum momento particularmente significativo na vida do biografado – neste caso, o episódio é a visita, no começo de 1931, de uma esquadrilha fascista ao Brasil e seu encontro com Getúlio. Os outros dois livros que li escritos por Lira Neto apresentam o mesmo artifício narrativo, mas sem dúvida houve um refinamento ao longo das obras.Vejamos. Castello, primeira biografia de um político feita pelo autor, começava com o episódio do golpe militar e as maquinações nos bastidores para decidir quem seria o chefe do governo provisório, e a escolha por Castello Branco se dá à revelia do principal ator em cena, Costa e Silva: se a reconstrução histórica merece aplausos, a ausência estratégica do personagem principal tende a enfraquecer um pouco sua imagem na cabeça do leitor.
O próximo livro, O inimigo do rei, apresenta como prólogo um discurso afiado e ferino de José de Alencar, dando o tom perfeito de boa parte do enredo: um deputado e literato de intensa opinião, mesmo em seus momentos mais alquebrados. Por outro lado, há certa “forçada de barra” desde o título, que maximiza o papel de José de Alencar como uma espécie de opositor real – papel no qual o autor de Iracema só teve relativo sucesso na famosa polêmica da Confederação dos Tamoios.
E então em Getúlio temos uma ótima e muito acertada escolha pelo equilíbrio. As primeiras páginas, encimadas pelo título radiofônico-telegráfico do capítulo, recriam o ambiente de uma apresentação de poder do regime fascista em céus brasileiros em 1931 – uma dúzia de anos depois, o Brasil entraria em guerra com a Itália. O episódio é saboroso pelo que tem de pouco conhecido e ao mesmo tempo representativo: o voo dos oficiais fascistas pelo Rio de Janeiro é uma forma oblíqua de traduzir o entusiasmo de grande parte da nação com o governo que se iniciava, construído a partir da Revolução de 1930 e de um sentimento difuso de modernização do sistema político nacional. Ao final veremos que o resultado final só poderia mesmo ser a ditadura (p. 520), mas no momento apenas vemos a euforia do povo e o orgulho do ministro Italo Balbo, representante do governo de Mussolini deste lado do Atlântico.
Aparentemente, a estrutura é a mesma de Castello: a abertura trará movimentos próximos ao objeto da narrativa, concentrando-se neles pelo efeito que o biografado lhes causa. Mas Italo Balbo vai a uma audiência com Getúlio, em que o contraste é inevitável: Balbo, como bom oficial fascista, orgulha-se de si, sua nação e seu regime, e não perde oportunidade para manifestar-se a favor do Duce. O povo, como já vimos, também não perdeu a oportunidade de festejar sua chegada aérea espetacular e, em última instância, o governo getulista que começava. Tudo ao redor de Getúlio é extroversão, mas ele permanece incólume.
Isso dará o tom da biografia, salvo as exceções de praxe a confirmarem a regra: o personagem principal se relaciona com seus pares, seus superiores, a sociedade, tudo, enfim, mas quase nunca é contagiado por suas forças, quase nunca é arrebatado. No prológo, todos os atores são grandiloquentes: os fascistas e seus simpatizantes, os operários comunistas que os atacam em São Paulo, repórteres de jornais e rádios, outros políticos no poder ou fora dele. Getúlio, impassível, vez por outra dá um de seus famosos sorrisos e estabelece o principal ponto de contato entre a biografia e a fama do personagem real: se Getúlio por muito tempo foi considerado esfinge é porque evitava se envolver em demonstrações demasiado efusivas de seus intentos e opiniões. O que de modo algum nos afasta do sentido geral do livro, que é dar a ver o que havia de substancial na figura esquiva.
Os aviões italianos, motivo de orgulho para os pilotos fascistas, são vendidos “de graça” para o Brasil, numa troca por oito mil contos de réis em sacas de café – que de outro modo mofariam nos armazéns, devido à ausência de compradores. Getúlio já tem traços que o distinguem definitivamente da maioria dos que o rodeiam: é sorrateiro e alcança as vantagens pretendidas, mas não vai se contaminar nem com o próprio sucesso, nem com as opiniões alheias, muito menos com os onipresentes chamados para explicações. No contraste com os arredores está o significado maior que o livro dá a Getúlio Vargas.
4.
Se aplicarmos o princípio formal delineado acima para diversos outros episódios do livro, encontraremos sua reprodução nestes momentos. Habilmente, Lira Neto não se esquiva de dar sua interpretação aos fatos, bem fundada nas evidências, como fica claro logo a seguir no “episódio do umbuzeiro” (cap. 1) e em outras passagens do livro. Mas o personagem é muito mais complexo do que essa pequena caricatura feita acima com o fim didático de fornecer uma chave de leitura para a obra. Poderíamos falar brevemente ainda sobre dois Getúlios: um pessoal, em formação; outro na Revolução, reticente em conspirar.Os primeiros capítulos trazem os anos de formação, com a montagem de um bom background da família, em especial do general Manuel Vargas, veterano da Guerra do Paraguai e pai de Getúlio. Sem esquecer de coordenar os acontecimentos da realidade histórico-política mais geral com os episódios da vida pessoal do jovem Vargas, Lira Neto alcança êxito ao apresentar o efeito causado pelos eventos (em especial a Revolução Federalista). Nesses momentos, o entrelaçamento das duas dimensões nunca parece gratuito ou forçado, contribuindo para a narrativa do livro como um todo.
Além da infância, dos anos de formação intelectual (com mostras de que Getúlio era um ótimo aluno) e das relações familiares, outros aspectos são bem ressaltados, como os namoros de juventude até o casamento com Darcy – que não foi na Igreja, cumprindo o que se esperaria de um seguidor do positivismo de Júlio de Castilhos –, a experiência curta e desapontadora com o Exército (nesse momento, no terceiro capítulo, tanto as cartas de Getúlio sobre a “contenda do Acre” como os trotes de escola militar – um deles, hilário, aplicado contra Dutra; sim, ele mesmo – são narrações preciosas).
Outro grande mérito é o tratamento contido, mas não menos significativo, do impacto causado por dois suicídios familiares ao futuro presidente. A morte trágica do padrinho e o desespero endividado do sogro são prenúncios daquilo que viria a acontecer em agosto de 1954, embora as motivações sejam bastante diversas. Certo é que o suicídio não é um tema pouco presente no imaginário da formação de Getúlio; a narração dos casos não exagera, mas não deixa de assinalar o que pode ter sido o primeiro fio de uma ideia. O livro já valeria a pena por esses momentos, em especial o do padrinho – que além do suicídio, introduz o tema da paranoia de perseguição que parece ter “acometido” Getúlio em seu final (muito embora ele de fato estivesse sendo acuado por todos os lados, e possivelmente o tiro no peito era mesmo a única saída honrosa). Enfim, novamente os arredores contrastam e enformam o protagonista.
Para não deixar de mencionar: o trabalho investigativo de Lira Neto na solução de dois crimes, nos quais houve suspeita de algum envolvimento de Getúlio, é louvável. No primeiro caso, conhecido de muitos, uma confusão em Ouro Preto com jovens paulistas acaba levando à morte de um deles em briga com os gaúchos liderados pelo irmão mais velho de Getúlio, Viriato Vargas. No passado, Carlos Lacerda e outros se utilizaram da história mal contada para associar Getúlio ao assassinato. Lira Neto, ao analisar minuciosamente os autos policiais do caso, não afirma categoricamente nada, mas o envolvimento de Getúlio é altissimamente improvável e quase com certeza foi efetivamente Viriato quem assassinou o rapaz paulista. Sobre o segundo caso não conto para não estragar a leitura. O que resta, de todo modo, é a capacidade do autor não esmorecer para desvendar os momentos nebulosos.
5.
Por falar em momento nebuloso, quando chega a época da formação da Aliança Liberal, esse Getúlio mais pessoal e de feições mais próximas a nós cede lugar – talvez de forma excessiva – a uma figura extrema e cuidadosamente política, quase sem traços sentimentais ou familiares apreciáveis. Não investirei muito nessa crítica ao abandono do “Getúlio do dia a dia” por considerar dois fatores interligados: 1) durante a campanha presidencial e a conspiração contra a posse de Júlio Prestes, é bem provável que Getúlio tenha ficado cada vez mais próximo da política e distante do resto, sobrando pouca documentação sobre isso; 2) esquecemo-nos, pois a maior parte da história conhecida ainda não foi contada (e só será nos próximos volumes), de que Getúlio já é um homem de meia idade (47 anos) quando escreve a carta a Washington Luís anunciando sua candidatura, e os ímpetos e as novidades da juventude já passaram.Aliás, retomando a carta ao então presidente, não deixa de ser curioso o tratamento dado por Lira Neto ao episódio. Getúlio, dois meses antes, havia enviado uma carta com juras de eterna fidelidade às decisões de Washington Luís. Durante a campanha, a oscilação manhosa e oportunista foi altamente aproveitada; nesses momentos, o tom do texto se aproxima mais empaticamente de Getúlio e seus correligionários, no que parece ser um reconhecimento implícito de que a política de bastidores dificilmente apresentará um alto nível de cumprimento de promessas.
Pelo avesso: a capacidade do “gaúcho que é mineiro” de jogar com ambos os lados ao mesmo tempo é descrita como se fosse necessidade e, talvez pela influência por uma leitura teleológica que uma biografia da qual conhecemos os lances principais pode causar, com uma dose boa de admiração. O dissimular e o esperar são os dois verbos que declinam as qualidades políticas de Getúlio, e a ausência de julgamento sobre isso é, além de exercício louvável da neutralidade, também uma forma de reconhecer o impróprio do anseio no sentido contrário – e o cinismo implícito aí não deixa de ser em si uma forma de imparcialidade. Talvez somente nos dias de hoje esse retrato pudesse ter sido feito com essas tintas e, em vez de escândalo, produzir consciência, não necessariamente crítica.
Sem esquecermo-nos dos arredores, aqui dois personagens “roubam a cena” e, sabemos, serão protagonistas de lances decisivos nas próximas cenas não cobertas nesse volume. O primeiro é Oswaldo Aranha, que muda o panorama do avanço político de Getúlio completamente. Sua primeira aparição, lá pela metade do livro, responde também à divisão acima mencionada entre uma metade de “formação” e outra metade “revolucionária”. Em outras palavras, sem Aranha muito provavelmente os acontecimentos teriam tomado rumos completamente estranhos ao conhecido, tal é a centralidade que obtém desde o começo das maquinações. Figura sempre citada e trabalhada ao lado de Getúlio, Aranha desponta felizmente como uma grande realização de Lira Neto, capaz de conferir ao “semibiografado” a independência de ação que caracteriza os momentos mais felizes da narrativa.
Do outro lado, temos o vice-presidente do Rio Grande do Sul na chapa de Getúlio, João Neves da Fontoura. Amigo que virou adversário que virou amigo e adversário outra vez, Neves é retratado como um idealista, homem de ação impaciente com as demoras e avaliações calculadíssimas de Getúlio. Apesar do respaldo amplo na documentação, creio aqui haver alguma forçada de nota a respeito do caráter de João Neves, algo influenciada pela sua atuação posterior. Apesar de aos olhos de Getúlio a atuação do aliado ser intempestiva e contrária aos objetivos diretos da coalizão, é lícito supor que os movimentos de Neves foram tão bem calculados quanto os de Getúlio, em especial o momento da aliança com os republicanos mineiros (p. 307 e seguintes). No geral, o Getúlio vacilante da metade final precisava correr riscos e não os correria sem a atuação diligente dos dois acima e outros – e a cautela, sempre valorizada, talvez não o devesse ser com tanta insistência no livro, uma das poucas ressalvas de conjunto que faço.
Este perfil não estaria completo sem citar, brevemente, duas passagens empolgantes e divertidas: os dois encontros secretos de Getúlio com Luís Carlos Prestes, talvez o dono da trajetória política mais interessante dentre as que correram em paralelo com a do estancieiro. Os encontros, para o mal do segundo, não seriam os únicos.
6.
No final de minhas considerações, antes de estourar o limite da paciência de qualquer leitor desta resenha, o saldo é bastante positivo. O fato de ser uma trilogia e, de certo modo, o “melhor ter ficado para o fim”, cria a expectativa para que o alto nível seja mantido (ou mesmo superado). Particularmente, cinco pontos são imperdíveis: a revolução de 1932, o plano Cohen, as negociações em torno de Volta Redonda, o exílio de São Borja e a criação da Petrobras. O agosto de 54 entra como hors concours. E fica o desejo de que os arquivos rastreados sobre o período no Rio possam revelar mais sobre o Getúlio do dia a dia, muito mais apagado na segunda metade do livro. Neste caso, mais do que a biografia do presidente mais importante – o que não quer dizer melhor ou pior; como dizia um galhofeiro e saudoso professor de História meu, “Getúlio Vargas é seu pai”, para bem e para mal – do Brasil, teremos um retrato histórico gigantesco, prenhe de significações e em certa medida bem mais complexo do que este realizado no primeiro volume, que já nos apresenta um conjunto coeso e impressionantemente documentado, digno de figurar nas melhores bibliografias sobre Getúlio, o Rio Grande, o Brasil e a época.::: Getúlio (1882-1930): Dos anos de formação à conquista do poder :::
::: Lira Neto :::
::: Companhia das Letras, 2012, 624 páginas :::
Vinícius Justo
Graduado em Letras e mestrando em Teoria Literária pela USP.
Fonte: Amálgama
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