PICICA: No ano de 2013, Armando Dias Soares, iria completar 60 anos da sua chegada ao Amazonas. Seu maior legado à cultura local - a Banda Independente da Confraria do Armando - corre o risco de desaparecer. Tudo porque, após seu falecimento, nem bem o corpo esfriara na morada final e os padres capuchinhos já manifestaram interesse em retomar o imóvel onde funciona o BAR DO ARMANDO, agora sob a direção da filha mais velha de Armando, Ana Cláudia Soeiro Soares, junto com o marido. Que o contrato de aluguel do imóvel precisa ser revisto, não há dúvida! A questão são as manobras aí embutidas para que o imóvel tenha outro destino. E o carnaval mais irreverente, que tornou-se patrimônio da cidade, onde é que fica? Armando, em vida, recebeu o título de Cidadão de Manaus. O que falta para tornar a BICA patrimônio imaterial da cidade? Bem que os jornalistas temiam o fim da Bica! Se nada for feito, ele virá. Não pelas mãos da família de Armando, que sabe da importância do que os amigos do amado português criaram naquele espaço. O fim virá pelas mãos de frades franciscanos. Valei-nos, São Francisco e São Sebastião! EM TEMPO: Abaixo, matéria assinada por Daniel Valentim, publicada no jornal A Crítica em 2003. Em todos os jornais da cidade, você encontrará registros históricos da banda mais irreverente dos carnavais amazonenses. Aqui mesmo, quando iniciei este blog, em 2006, postei mais de uma centena de fotografias de um dos "esquentas" da BICA.
Impondo democracia na Bica
[ Daniel Valentim- Especial para A CRÍTICA ]
[ Daniel Valentim- Especial para A CRÍTICA ]
O Bar do Armando
perdura porque é um teto que abriga tanto a memória quanto a cicatriz de seus
clientes? Ou seria porque os padres da São Sebastião logo ao lado costumam
abençoar sua cerveja de vez em quando? Mais do que encontros entre pessoas de
todos os tipos, suas mesas representam a democracia geral – ou cozidão
nacional: um ponto de encontro pacífico – ou fácil de se mastigar – entre hoje
e lembrança; sagrado e profano; esquerda e direita. Hoje, completam-se 50 anos
da chegada do obstinado agricultor de Coimbra, Armando Dias Soares, em terras
amazonenses. E o adolescente que só queria melhorar de vida teve que vir lá de
Portugal para fazer nosso Carnaval. As comemorações começam às 17h, com a banda
Demônios da Tasmânia e a batucada da Reino Unido da Liberdade.
Antes de começar a entrevista, tirou a caneta de trás da orelha e dos cabelos brancos e anotou outra garrafa para a mesa tal. Armando chegou na cidade aos 17 anos, tirado dos campos do distrito de Coimbra pelo tio que já morava aqui, um dos comerciantes sócios da Casa Dias. Sua primeira impressão não foi das mais agradáveis: chegou com a enchente de 1953, numa cidade flutuante. Mas o rapaz queria melhorar de vida, e foi ficando. Na terra natal, a vida era muito sacrificada, lembra, e às vezes não havia nada para se comer. Em tempos de guerra, a situação piorava, pois o governo ficava com metade de tudo para dar para as Forças Armadas.
Na capital amazonense, “só trabalhei como empregado durante um mês e meio”, orgulha-se. Após 30 dias na Casa Carnavarro, de ferragens, recebeu uma miséria das mãos do proprietário e perguntou: “O que é isso?”. Era o salário, e não dava nem para o café. Os outros 15 dias foram para completar o período de aviso prévio.
Dirigiu-se, então, para o Mercado Adolpho Lisboa. Foi aprender a serrar canela de boi, a desmanchar carne... e acabou montando a própria banca, um açougue. Sua estada no Mercado Municipal durou cerca de três anos: ainda não era o suficiente para suas ambições. O próximo passo foi um misto entre mercearia e açougue na rua Xavier de Mendonça, onde ficou por mais nove anos e dois assaltos. Armando lembra que não conseguia entrar em acordo com o proprietário do imóvel para deixar o ponto. Acabou recebendo cerca de 500 mil cruzeiros para entregar a casa. Aos poucos, as coisas iam melhorando.
BAR, JOGOS E CASAMENTO
Uma cerveja para a mesa xis, batata-frita e troco para outra, Armando conta que abriu o primeiro bar na avenida Eduardo Ribeiro, ao lado do Cine Odeon. Havia mesas de sinuca e cerveja gelada. Mais “cinco ou seis anos” até que quebrou financeiramente. Passou um tempo numa situação ruim, só equilibrando as contas.
Durante esse período conheceu a conterrânea Maria de Lourdes Soeiro, com quem acabou casando-se. Compraram uma casa na Praça 14 e alugaram o sobrado – pertencente à Igreja São Sebastião – em que morava o irmão de Lourdes, que havia morrido recentemente. E foi assim que, em 1972, surgiu o Bar do Armando. “Naquela época todo mundo morava por aqui, as famílias de posse. Depois, foram se mudando para os conjuntos”, lembra o comerciante.
O bar também funcionava como mercearia, e abria até aos domingos, sempre cheio, segundo recorda. “Esses doutores, juízes, todo mundo já jogou sinuca comigo”, afirma. Para o escritor Simão Pessoa, o bar representava, na década de 70, um reduto de intelectuais e artistas da região, que reuniam-se para escutar a dita “música subversiva” e para falar mal dos governos. “Eram apenas duas mesas e um balcão”, recorda Simão, mas era onde os estudantes faziam suas cabeças, entre a intelectualidade e a boemia.
Ivan Lima é aposentado, e tem 50 anos. “Nascido e criado na Vila Maria”, afirma com orgulho. Desde 1984 mora em Fortaleza, mas sempre que pode retorna a Manaus para ver alguns familiares, amigos, e Armando. “Gosto desse português, pessoa simples”. Ele conta que conhece o comerciante desde a época do Cine Odeon, desde o namoro com a Lourdes. Uma cachaça puxa uma lembrança e uma lembrança puxa a outra: Ivan lembra que o depósito de cerveja ao lado do bar era, antigamente, a oficina de bicicleta Zuza. E que aprendeu a andar de bicicleta na rua José Clemente, do outro lado da praça, e a ser brasileiro – simples mesmo na autoridade, segundo seu conceito – com o português atrás do balcão.
CARNAVAL, IGREJA E OUVIDORIA
Na década de 80, os carnavais haviam saído das ruas, mas um grupo de freqüentadores do bar, jornalistas, publicitários, escritores, liderados pelo bom português, criaram a Banda Independente Confraria do Armando (Bica), para revigorar esse tipo de Carnaval, ao mesmo tempo em que protestavam contra determinadas ações ou situações. Simão Pessoa lembra que, durante um tempo, a banda acabou sendo proibida por conchavos políticos.
Essa capacidade de absorver as mais diferentes personalidades e ideologias é, segundo o escritor, o que faz com que o bar sobreviva há tanto tempo. “Se você observar bem, não tem nada, não vai nem mulher!”, brinca Simão. Mas é um lugar em que a esquerda encontra a direita e não sai “porrada”. Antigamente, não era possível nem ir ao banheiro, fazia-se na rua mesmo. Até que Amazonino – antigo freqüentador – mandou fazer reforma. É o ponto de encontro entre extremos, mesmo o sagrado e o profano. Conta-se que os padres apareciam depois das missas para um gole e uma bênção.
Certo Carnaval, lembra Simão, a banda da Bica tocava em frente ao bar, enquanto o refrão, “P... que pariu, o que será que o Magro ouviu” – em referência ao Ouvidor Geral Josué Filho – ecoava na igreja, que abrigava um casamento. “É a caixa de ressonância da sociedade, quando você não podia falar alguma coisa, no Armando podia”.
DISTÂNCIA E MEMÓRIA
O tempo foi passando, a cidade foi crescendo, e as praças deixaram de ser os pequenos centros do universo. “Antigamente todo mundo que queria comprar alguma coisa vinha aqui, mas hoje, quem mora no Parque Dez só aparece no bar antes de voltar para a casa, e se trabalha no centro”, afirma Armando.
Segundo o mesmo, outros bares foram sendo abertos por toda a cidade, além dos supermercados que, de certa forma, prejudicaram as pequenas mercearias. O legado do comerciante, entretanto, resiste à geografia, à economia e à historiografia. É no mesmo canto que continua a servir sua cerveja, com chinelas de tiras paralelas, calça escura e camisa de botão clara. De quatro em quatro anos, passa por Portugal, mas isso é tudo: já é Cidadão de Manaus – homenagem que recebeu em 1999, na Câmara Municipal – e tema vitorioso de escola de samba – Reino Unido – no nosso Carnaval.
Antes de começar a entrevista, tirou a caneta de trás da orelha e dos cabelos brancos e anotou outra garrafa para a mesa tal. Armando chegou na cidade aos 17 anos, tirado dos campos do distrito de Coimbra pelo tio que já morava aqui, um dos comerciantes sócios da Casa Dias. Sua primeira impressão não foi das mais agradáveis: chegou com a enchente de 1953, numa cidade flutuante. Mas o rapaz queria melhorar de vida, e foi ficando. Na terra natal, a vida era muito sacrificada, lembra, e às vezes não havia nada para se comer. Em tempos de guerra, a situação piorava, pois o governo ficava com metade de tudo para dar para as Forças Armadas.
Na capital amazonense, “só trabalhei como empregado durante um mês e meio”, orgulha-se. Após 30 dias na Casa Carnavarro, de ferragens, recebeu uma miséria das mãos do proprietário e perguntou: “O que é isso?”. Era o salário, e não dava nem para o café. Os outros 15 dias foram para completar o período de aviso prévio.
Dirigiu-se, então, para o Mercado Adolpho Lisboa. Foi aprender a serrar canela de boi, a desmanchar carne... e acabou montando a própria banca, um açougue. Sua estada no Mercado Municipal durou cerca de três anos: ainda não era o suficiente para suas ambições. O próximo passo foi um misto entre mercearia e açougue na rua Xavier de Mendonça, onde ficou por mais nove anos e dois assaltos. Armando lembra que não conseguia entrar em acordo com o proprietário do imóvel para deixar o ponto. Acabou recebendo cerca de 500 mil cruzeiros para entregar a casa. Aos poucos, as coisas iam melhorando.
BAR, JOGOS E CASAMENTO
Uma cerveja para a mesa xis, batata-frita e troco para outra, Armando conta que abriu o primeiro bar na avenida Eduardo Ribeiro, ao lado do Cine Odeon. Havia mesas de sinuca e cerveja gelada. Mais “cinco ou seis anos” até que quebrou financeiramente. Passou um tempo numa situação ruim, só equilibrando as contas.
Durante esse período conheceu a conterrânea Maria de Lourdes Soeiro, com quem acabou casando-se. Compraram uma casa na Praça 14 e alugaram o sobrado – pertencente à Igreja São Sebastião – em que morava o irmão de Lourdes, que havia morrido recentemente. E foi assim que, em 1972, surgiu o Bar do Armando. “Naquela época todo mundo morava por aqui, as famílias de posse. Depois, foram se mudando para os conjuntos”, lembra o comerciante.
O bar também funcionava como mercearia, e abria até aos domingos, sempre cheio, segundo recorda. “Esses doutores, juízes, todo mundo já jogou sinuca comigo”, afirma. Para o escritor Simão Pessoa, o bar representava, na década de 70, um reduto de intelectuais e artistas da região, que reuniam-se para escutar a dita “música subversiva” e para falar mal dos governos. “Eram apenas duas mesas e um balcão”, recorda Simão, mas era onde os estudantes faziam suas cabeças, entre a intelectualidade e a boemia.
Ivan Lima é aposentado, e tem 50 anos. “Nascido e criado na Vila Maria”, afirma com orgulho. Desde 1984 mora em Fortaleza, mas sempre que pode retorna a Manaus para ver alguns familiares, amigos, e Armando. “Gosto desse português, pessoa simples”. Ele conta que conhece o comerciante desde a época do Cine Odeon, desde o namoro com a Lourdes. Uma cachaça puxa uma lembrança e uma lembrança puxa a outra: Ivan lembra que o depósito de cerveja ao lado do bar era, antigamente, a oficina de bicicleta Zuza. E que aprendeu a andar de bicicleta na rua José Clemente, do outro lado da praça, e a ser brasileiro – simples mesmo na autoridade, segundo seu conceito – com o português atrás do balcão.
CARNAVAL, IGREJA E OUVIDORIA
Na década de 80, os carnavais haviam saído das ruas, mas um grupo de freqüentadores do bar, jornalistas, publicitários, escritores, liderados pelo bom português, criaram a Banda Independente Confraria do Armando (Bica), para revigorar esse tipo de Carnaval, ao mesmo tempo em que protestavam contra determinadas ações ou situações. Simão Pessoa lembra que, durante um tempo, a banda acabou sendo proibida por conchavos políticos.
Essa capacidade de absorver as mais diferentes personalidades e ideologias é, segundo o escritor, o que faz com que o bar sobreviva há tanto tempo. “Se você observar bem, não tem nada, não vai nem mulher!”, brinca Simão. Mas é um lugar em que a esquerda encontra a direita e não sai “porrada”. Antigamente, não era possível nem ir ao banheiro, fazia-se na rua mesmo. Até que Amazonino – antigo freqüentador – mandou fazer reforma. É o ponto de encontro entre extremos, mesmo o sagrado e o profano. Conta-se que os padres apareciam depois das missas para um gole e uma bênção.
Certo Carnaval, lembra Simão, a banda da Bica tocava em frente ao bar, enquanto o refrão, “P... que pariu, o que será que o Magro ouviu” – em referência ao Ouvidor Geral Josué Filho – ecoava na igreja, que abrigava um casamento. “É a caixa de ressonância da sociedade, quando você não podia falar alguma coisa, no Armando podia”.
DISTÂNCIA E MEMÓRIA
O tempo foi passando, a cidade foi crescendo, e as praças deixaram de ser os pequenos centros do universo. “Antigamente todo mundo que queria comprar alguma coisa vinha aqui, mas hoje, quem mora no Parque Dez só aparece no bar antes de voltar para a casa, e se trabalha no centro”, afirma Armando.
Segundo o mesmo, outros bares foram sendo abertos por toda a cidade, além dos supermercados que, de certa forma, prejudicaram as pequenas mercearias. O legado do comerciante, entretanto, resiste à geografia, à economia e à historiografia. É no mesmo canto que continua a servir sua cerveja, com chinelas de tiras paralelas, calça escura e camisa de botão clara. De quatro em quatro anos, passa por Portugal, mas isso é tudo: já é Cidadão de Manaus – homenagem que recebeu em 1999, na Câmara Municipal – e tema vitorioso de escola de samba – Reino Unido – no nosso Carnaval.
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