junho 26, 2012

"Paraísos artificiais da vida real", por Mario Bentes

PICICA: "Independente das “boas” ou “más” viagens, como as relatadas pela literatura médica e pelos ex-usuários ouvidos pela reportagem, o uso de entorpecentes alucinógenos de qualquer natureza não é recomendado em nenhuma circunstância. Rogélio Casado explica que a maioria das drogas levam cerca de 20% dos usuários à dependência – como é o caso da maconha e do crack." EM TEMPO: A literatura registra casos de iniciação com mestres ou xamãs, para os quais o processo de conhecimento é indissociável da ritualização requerida para o uso.

Paraísos artificiais da vida real

O frenético e pandemônico ritmo das músicas eletrônicas – muito comum nas “raves” das grandes cidades – sempre mexeu com as sensações da jovem estudante de design Júlia*, de 21 anos. Mas naquela madrugada quente de julho de 2005, era como se ela pudesse ver as notas musicais se desenhando em seu cérebro, em cores e tamanhos variados.
Não, não se trata da imaginação fértil de um artista plástico com tendências surrealistas, mas de uma experiência “real” percebida pela jovem após pôr sob a língua – por poucos segundos apenas – um pedaço de cerca de dois milímetros quadrados de papel embebido emdietilamida do ácido lisérgico, ou LSD, como é conhecido em sua sigla original.
Ao contrário do que se pode pensar, a amazonense Júlia não fez o costumeiro percurso dos jovens que acabam entrando para o mundo das drogas, ou seja, iniciando com drogas permitidas – como álcool e cigarro – para depois partir para entorpecentes mais fortes e perigosos, como é o caso da cocaína.
Após quase seis meses de tratamento contra depressão, síndrome de pânico e distúrbio bipolar, Júlia desistiu da medicação aplicada pela psicóloga – já que, segundo a jovem, o tratamento não surtia qualquer efeito – e em uma madrugada agitada de rave com amigos resolveu experimentar aquilo que muitos chamavam de “fórmula da felicidade”.
Em parte, o uso da substância funcionou, já que permitiu à jovem experimentar a sensação sinestésica de ver, tocar e sentir o gosto das ondas sonoras de cada música que ouviu ao longo de toda aquela madrugada. “Era como se eu pudesse sentir em detalhes a vibração de cada nota em meu próprio corpo”, explica Júlia.

O uso de drogas alucinógenas é comum nas “raves” (cenas do filme “Paraísos Artificiais”).
Por outro lado, aquela pequena quantidade de LSD trouxe, após algumas horas, a desagradável sensação de perseguição. Diante de tal sensação, a jovem pediu desesperadamente a um amigo que a levasse para casa. Pouco depois, já em sua residência, Júlia sentiu uma vontade insaciável de voltar para a festa, mas foi obrigada e se contentar com longas horas de insônia e um medo inexplicável de tudo o que estava ao seu redor.
Para o psiquiatra Rogélio Casado, não há uma explicação técnica que justifique o uso de entorpecentes pelos jovens, senão a curiosidade. “Na grande maioria dos casos, os jovens e adolescentes têm seu primeiro contato com as drogas por mera curiosidade, mas a partir daí, o uso freqüente de substâncias se impõe diante de um quadro de dependência química”, diz ele.
No caso do LSD, que não possui propriedades químicas que levam ao vício, a continuidade do uso se dá por meio de um novo tipo de dependência: a psicológica. “O uso de drogas, de qualquer forma, gera prazer ao indivíduo. E o retorno do usuário a determinada substância ocorre como um artifício para lidar com as frustrações, em casos de dependência severa, como aponta a prática e a literatura”, explica o psiquiatra.
Céu vermelho, árvores azuis e o caleidoscópio brilhante que tomou o lugar do sol
Entre os vários relatos de usuários de LSD sobre as experiências vividas durante a “viagem” – termo comumente usado por usuários de drogas alucinógenas, e que se relaciona com o momento em que a substância faz efeito –, grande parte gira em torno de “aparições” em comum: a percepção dos objetos com novas cores – geralmente brilhantes e completamente diferentes do real – e a visão de um caleidoscópio multicolorido.
De acordo com o psiquiatra Rogélio Casado, esse efeito pode ser explicado conforme o próprio comportamento do LSD no organismo, que altera as atividades normais das sinapses cerebrais. Isto tende a transformar completamente as percepções do indivíduo sobre a realidade. “É exatamente isto que leva o indivíduo a buscar uma nova experiência, ou seja, estímulo de prazer e ação de resposta”, explica o especialista.
Boas e más viagens

Assim como a experiência de Júlia foi carregada de uma sensação nova e espetacular – a possibilidade de ver, tocar e sentir o gosto da música –, existem inúmeros relatos de “boas viagens”. Casos como o do jovem Ricardo*, que jura ter caminhado sobre as nuvens acima da cidade de Manaus, só confirmam o que muitos especialistas em comportamento humano discutem: a qualidade da “viagem” depende inteiramente de algo que os usuários de LSD ou qualquer outra pessoa não tem controle: o inconsciente.
Para alguns, a experiência é magnífica, onde seres celestiais podem ser vistos “além do horizonte”, mas para outros, as visões podem não ser tão agradáveis. Existem relatos de indivíduos que se suicidaram por achar que eram perseguidos por demônios, que subiram do inferno especialmente para amedrontá-las.
No filme Paraísos Artificiais (2011), que conta justamente a história de experiências sensoriais de três jovens, a personagem Érika (Nathalia Dill) experimenta uma sensação desagradável e inexplicável após consumir uma substância alucinógena, ao contrário da melhor amiga Lara (Lívia de Bueno).

O filme “Paraísos Artificiais” conta a história de jovens que fazem uso de substâncias alucinógenas.
O caso mais famoso de “má viagem”, no mundo real, foi a do químico suíço Albert Hoffman, que em 1943 sofreu um pequeno acidente enquanto estudava a possibilidade de usar a dietilamida do ácido lisérgico como medicamento. Durante algumas experiências em laboratório, o químico sujou as mãos com a substância, que estava sendo trabalhada na sua versão em pó. Horas mais tarde, já em casa, Hoffman passou por uma experiência que ficou imortalizada em suas próprias palavras, divulgadas na época:
Os objetos e o aspecto dos meus colegas de laboratório pareciam sofrer mudanças ópticas. Não conseguindo me concentrar em meu trabalho, num estado de sonambulismo, fui para casa, onde uma vontade irresistível de me deitar apoderou-se de mim. Fechei as cortinas do quarto e imediatamente caí em um estado mental peculiar, semelhante à embriaguez, mas caracterizado por imaginação exagerada. Com os olhos fechados, figuras fantásticas de extraordinária plasticidade e coloração surgiram diante de meus olhos.**
Independente das “boas” ou “más” viagens, como as relatadas pela literatura médica e pelos ex-usuários ouvidos pela reportagem, o uso de entorpecentes alucinógenos de qualquer natureza não é recomendado em nenhuma circunstância. Rogélio Casado explica que a maioria das drogas levam cerca de 20% dos usuários à dependência – como é o caso da maconha e do crack.
Flashbacks
Outra característica do LSD que pode ser confirmada por especialistas e usuários é a ocorrência dos chamados “flashbacks”. O fenômeno acontece algum tempo após o consumo da substância, quando uma nova “viagem” acontece sem qualquer aviso ao usuário.
Diferente da experiência vivida imediatamente após o consumo da droga, a nova ocorrência não é antecedida de uma “preparação” do consciente, ou seja, a ocorrência do flashback pode ser ainda mais perigosa, já que esta pode acontecer a qualquer hora e em qualquer lugar, impossibilitando um resguardo psicológico e facilitando casos de acidentes fatais. Um bom exemplo a este respeito, é o caso de um jovem de Curitiba, que durante uma aula da faculdade, viu um demônio alado no lugar de seu professor. Na ocasião, o jovem teve um colapso nervoso e chegou a ficar em estado de choque.
A jovem Júlia explica que o flashback sentido por ela teria sido exatamente igual a da primeira experiência, se não fosse a ausência da música e da sinestesia que a acompanhou. “A única sensação que se repetiu foi o desagradável sentimento de perseguição, que se prolongou por horas”, afirma a jovem, que jamais ousou experimentar novas “viagens”. Em 2006, Júlia voltou a se tratar com psicólogos e atualmente já se vê livre dos problemas de outrora, como a depressão, síndrome de pânico, distúrbio bipolar e, claro, das “viagens” geradas pelo ácido.
Uma droga, múltiplas versões físicas e muitos “nomes”
A dietilamida do ácido lisérgico possui a capacidade de ter suas propriedades químicas trabalhadas de várias formas. Assim como a jovem Júlia usou a forma do chamado “papel de perfurado” ou “em cartelas” – onde as folhas de papel com subdivisões são embebidas pelo LSD liquefeito –, a substância também pode ser encontrada em pó e gás. Isto pode ser explicado pela natureza química da substância, que é originalmente encontrada em cristais. Tal característica também facilita seu transporte e, sendo assim, seu tráfico.
O LSD ganhou popularidade na década de 60, durante o movimento hippie. Não é a toa que a droga e seus efeitos são associados ao movimento psicodélico, onde o grande destaque é o uso de formas e cores extravagantes. Foi nesse período que o LSD ganhou boa parte dos apelidos que possui até hoje: Popeye, Mickey Mouse, Chapeleiro Maluco, Copas, Mestre Yoda, Shiva, Rolling Stones, Pato Donald, entre outros – a maioria deles se deve ao fato destes personagens aparecerem nos micropontos das cartelas na mesma versão usada pela jovem Júlia.
*Júlia e Ricardo são nomes fictícios criados para preservar a identidade dos entrevistados.
**Trecho extraído do sítio na internet do Centro Brasileiro de Informações sobre drogas Psicotrópicas – CBRID – da Universidade Federal de São Paulo.


Fonte: Babel

Sobre o autor
Jornalista, escritor e fotógrafo. Já passou por veículos como "Portal Amazônia" e "Portal D24am". Atualmente é repórter freelance da revista "Empório Amazônia" e correspondente do jornal "Diário do Amazonas" em Brasília.
Saiba mais
Tudo começou com um fungo
O LSD (Lysergsäurediethylamid, no termo original em alemão) foi sintetizado pela primeira vez em 1938, pelo químico suíço Albert Hoffmann.
Entretanto, esta substância já vem fazendo suas desventuras desde a Idade Média. Extraída de um fungo conhecido como “esporão de centeio”, a substância pode ter sido responsável pelo grande número de visões e aparições de anjos, demônios e tantas outras entidades de “outros mundos”.
Tais visões eram muito comuns naquele período conturbado por mudanças sociais, econômicas e, sobretudo, religiosas. Não por acaso, muitos morreram nas fogueiras da “Santa Inquisição” da Igreja Católica.
O que se sabe de concreto é que o fungo foi responsável pelo surgimento de uma doença conhecida como “ergotismo”, que na época (1095) ficou conhecido como “Fogo de Santo Antão”.
Centeio
O centeio (Secale cereale), muito usado para fazer farinha, ração, cerveja e outras bebidas alcóolicas, é uma gramínea cultivada em grande escala para colheita de grãos e forragem. Seu cultivo foi comum na Europa, principalmente na Idade Média, durante a vigência do Sistema Feudal.
Os indícios mais antigos do uso doméstico do centeio foram encontrados em Tel Abu Hureyra, no norte da Síria, no vale do rio Eufrates, aproximadamente no fim do período Mesolítico (período correspondente entre o Paleolítico e o Neolítico).
O reino simétrico das cores
O caleidoscópio é um instrumento óptico constituído por um tubo com pequenos fragmentos de vidro de várias cores, que funcionam como prismas que são refletidos em pequenos espelhos inclinados. Tal configuração é capaz de gerar imagens simétricas e agradáveis ao observador.

Fonte: Babel

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