PICICA: Parte do material publicitário do governo federal da época usado neste vídeo foi gentilmente cedido pelo cientista Philip Fearnside, que tem um grande acervo de peças publicitárias sobre hidrelétricas veiculadas pela mídia brasileira. EM TEMPO: Desta vez, anexo o texto do pesquisador Rogério Gribel, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), que serviu como roteiro para esse "vídeo de urgência", como defino os vídeos realizados em condições precárias. Tamanha era a precariedade que o editor André Bartonelli e eu levamos cerca de 26 horas ininterruptas para a edição final.
Em toda a Amazônia estão previstas a criação de 150 hidrelétricas, das quais 60 delas na Amazônia brasileira. A hidrelétrica de Balbina, concebida e construída na ditadura militar (1964-1985) no rio Uatumã (Amazonas), passou a funcionar a partir de 1989, Um bilhão de dólares do dinheiro do contribuinte foi usado para destruir 240 mil hectares de floresta, afogar animais silvestres, alagar terras indígenas e provocar fome e doença entre os ribeirinhos da região. Em troca dessa catástrofe, apenas insignificantes 80 megawatts firmes para Manaus. Passados todos estes anos, o modelo energético brasileiro não sofreu nenhuma revisão em todos os governos após a redemocratização do Brasil. O físico José Goldemberg, em depoimento, recomendou que Balbina fosse desativada e mantida como um monumento à insanidade humana. O missionário Egydio Schwade denunciou o desaparecimento de várias aldeias indígenas com a construção da barragem. Só a cegueira ideológica não enxerga os impactos socioambientais irreversiveis provocados pelo desenvolvimentismo nacional, em sua nova etapa. Tampouco se aprende com a experiência do passado. Em 1989, o autor desse vídeo, durante um comício em Manaus, entregou uma cópia para o operário que assumiria em 2003 a presidência da república, numa das maiores mobilizações de esperança do povo brasileiro. Mais tarde, o presidente da república faria uma surpreendente declaração ao qualificar os quilombos e os indígenas como um entrave para o desenvolvimento da Amazônia. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha manifestou sua perplexidade nas páginas da Revista de História da Biblioteca Nacional. Não apenas os compromissos assumidos com a causa indígena estavam sendo rasgados. Esvaia-se, também, a esperança dos povos da floresta. Silenciar sobre a desastrada política energética brasileira é um crime de lesa-humanidade. A presente edição é dedicada à memória do bispo D. Jorge Marskell, de quando a Igreja Católica estava comprometida com a Teologia da Libertação. Salve Jorge!
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PICICA: Reapresentação do texto publicado neste blog em 2007.
Até onde sei o texto abaixo é inédito. Se foi publicado, seguramente não o foi pela mídia. O texto trata de uma das maiores vergonhas perpetradas contra o meio ambiente na Amazônia Ocidental: a construção da hidrelétrica de Balbina. A autoria é do pesquisador Rogério Gribel, do Departamento de Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA. Às vésperas de sair para o doutorado na Inglaterra, prudentemente não o publicou com receio de sofrer algum tipo de retaliação. Permitiu, entretanto, que ele servisse como referência para o meu primeiro documentário em vídeo, intitulado "BALBINA NO PAÍS DA IMPUNIDADE". Estávamos em 1989.
Naquela época, a advertência de Philip Fearnside, pesquisador titular do INPA, de nada adiantou. O impacto ambiental provocado pela construção da hidrelétrica tinha apenas um antecedente recente: a hidrelétrica de Brokopongo, na Guiana. Leia o que ele pensa sobre a construção de hidrelétricas no rio Madeira, em entrevista concedida para a jornalista Glaúcia Chair, do Portal da Amazônia, para a Revista ECO*21.
O físico José Golberg, em declaração ao jornalista Jaime Sautchuck, num outro documentário em vídeo, afirmava que Balbina deveria ser desativada e mantida como um grande monumento à insanidade humana. Recentemente, no Programa Roda Viva da TV Cultura, já não deu a mesma ênfase à construção de outras hidrelétricas.
As comunidades ribeirinhas se manifestaram em São Sebastião do Uatumã, lideradas pelo bispo da prelazia de Itacoatiara, da Igreja Católica, Dom Jorge Karskell, a quem havia conhecido num curso sobre indigenismo em 1978, num retiro de salesianos, e que contou com a participação de Darcy Ribeiro, que retornava do exílio. Já não havia o que fazer: os peixes não fariam mais a piracema rumo às cabeceiras do Uatumã.
Conheça em detalhes o que significou, social e economicamente, a construção da Hidrelétrica de Balbina.
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BALBINA NO PAÍS DA IMPUNIDADE
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Como gastar 800 milhões de dólares dos cofres públicos, destruir 236 mil hectares de florestas primárias, formar um gigantesco lago de águas rasas e estagnadas, matar milhões de animais da fauna silvestre, alagar terras indígenas, provocar fome e doença às populações ribeirinhas etc. e obter em troca apenas 80 megawatts para Manaus............................
No dia 1º de outubro de 1987 fechava-se a última adufa da hidrelétrica de Balbina e, desta forma, iniciava-se a obstrução do rio Uatumã e a formação de um gigantesco lago de 236.000 hectares (cerca de sete vezes a área da Baía da Guanabara) em pleno coração da Amazônia. Balbina não é apenas mais um empreendimento polêmico na região, mas sim a concretização de uma das mais desastrosas intervenções humanas sobre um curso de água, afetando drasticamente cerca de 500 km (mais do que a distância entre Rio de Janeiro e São Paulo) de um importante rio da Amazônia Central. A decomposição da imensa biomassa da floresta dentro dor reservatório muito raso e com tempo de renovação da água extremamente longo indicam para os ecologistas que Balbina é, do ponto de vista ambiental, o pior lago artificial da biosfera. O extraordinário no caso de Balbina é que o grande impacto ao meio ambiente não foi ocasionado por um acidente incontrolável ou pela ocupação desordenada das margens do rio, mas sim por um processo planejado e conscientemente executado na última década, apesar das críticas de pessoas e entidades dentro e fora do Brasil. O imenso conjunto de contradições e incoerências que envolvem esta obra, mesmo quando avaliada sobre um prisma puramente financeiro, geram dúvidas se sua concepção, construção e conclusão estão efetivamente relacionadas ao interesse regional ou nacional.
Vejamos, a princípio, os aspectos puramente financeiros da obra e os relacionados ao custo de produção da energia. Os dados da Eletronorte são de que Balbina custou U$ 750 milhões, sem incluir o custo de 170 km de linha de transmissão até Manaus. Fontes não oficiais especulam em custos acima de US$ 1 bilhão, no entanto utilizaremos apenas os dados fornecidos pela Eletronorte. A potência instalada em Balbina foi de 250 megawatts (cinco turbinas de 50 megawatts cada), custando, portanto, cerca de U$ 3.000 cada kilowatt instalado, valor este cerda de 2 vezes o máximo admitido pelo setor elétrico brasileiro para as demais hidroelétricas. Segundo técnicos da Eletronorte, Balbina fornecerá, quando as 5 turbinas estiverem em condições de operação, cerca de 80 megawatts de potência firme, ou seja, o aproveitamento do potencial instalado (chamado fator de capacidade da usina) será de 32%. Este valor é muito pequeno quando comparado com o fator de capacidade de 50-65% da maior parte das demais usinas no país. A combinação destes dois parâmetros (custo da potência instalada e fator de capacidade) fornece o custo de megawatt-hora, valor que é utilizado para se comparar a eficiência do investimento do capital para geração de energia por diferentes empreendimentos. Em Balbina o megawatt-hora custa o “record” absoluto de U$ 108. Este valor representa o quádruplo do considerado razoável pelo próprio setor energético brasileiro para usinas hidrelétricas competitivas, o dobro admitido para geração de termoelétricas (para a substituição das quais se justificou a construção de Balbina) e aproximadamente o mesmo custo aceito para geração a partir do aproveitamento da energia solar com a tecnologia atualmente disponível.
A ineficiência da geração de energia por Balbina também é extraordinariamente nítida quando é relacionada com a área alagada. Por exemplo, em Tucuruí é produzido 25 vezes mais energia por km2 alagado do que Balbina. Comparado com Itaipú a relação é de cerca de 35:1.
Os 236.000 hectares inundados por Balbina (estimativa da área do lago na cota de 50 metros) eram integralmente coberto por exuberante floresta tropical praticamente não explorada, além de pequenas manchas de campina e campinarana. Um inventário florestal realizado pelo Departamento de Silvicultura Tropical do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia na bacia do rio Uatumã em 1986, indicou que o volume de madeira das florestas da região era cerca de 249 metros cúbicos por hectare, ou seja, foram alagadas cerca de 58,5 milhões de metros cúbicos de madeira se extrapolarmos para toda a área do reservatório. Neste mesmo estudo estima-se a existência de 39 a 51 milhões de metros cúbicos de madeira para serraria por hectare, totalizando 9,3 a 12 milhões de metros cúbicos para toda a área alagada. O restante da madeira poderia ser utilizada para lenha e carvão. Utilizando-se uma estimativa conservadora de US$ 15 o preço do metro cúbico de madeira para serraria (neste preço já estão embutidos os custos de exploração e transporte, levando-se em consideração a distância e as vias de acesso da área alagada até Manaus), verifica-se que foram perdidas cerca de US$ 138 a 180 pela não exploração da madeira nobre na área. Se incluirmos a madeira que deixou de ser explorada para lenha e carvão, os prejuízos chegam a 400 milhões. Estas perdas nunca são adicionadas nos custos do empreendimento, mas se levadas me consideração, aumentariam em mais de 50% o já exorbitante custo do megawatt-hora de Balbina.
A Eletronorte argumenta publicamente que nenhuma empresa se apresentou para explorar a madeira na área da inundação. Esquece-se de assinalar, no entanto, que, por sua própria incapacidade de programação, o edital de licitação para esta finalidade foi publicado apenas em dezembro de 1984. e que o início da formação do lago estava previsto para 2 anos depois desta data. Qual empresa se arriscaria a um empreendimento desse porte, com necessidade de alto investimento inicial, contando com um prazo tão exíguo para completar a exploração? Atualmente a Eletronorte acena com a possibilidade de explorar as árvores mortas que emergem de dentro da água, uma vez que a profundidade média do lago é de apenas 7 metros enquanto que a altura das florestas da região é de 35-40 metros. Existem, obviamente, grandes incertezas quanto a esta possibilidade dado a falta de experiências em exploração extensivas dentro d’água e o alto risco de vida que estão sujeitas as pessoas que trabalham com este método.
A floresta, no entanto, não deve ser visualizada somente como taboas em potencial. Deve ser também levado em consideração o potencial do patrimônio bioquímico, farmacológico, genético e mesmo estético que a nação perde com a transferência de centenas de milhares de hectares da floresta mais diversificada do planeta em um imenso lago de águas estagnadas. Se é que se pode chamar de lago aquele gigantesco labirinto com milhares de ilhas e penínsulas, separadas por outras milhares de enseadas de águas rasas, paradas, fétidas, ácidas e desprovidas de oxigênio, de dentro das quais emergem milhões de esqueletos de árvores secas.
Além da riqueza em plantas, na floresta amazônica também vive uma fauna extremamente diversificada. Para se ter uma idéia da ordem de grandeza das populações de animais silvestres afetas em grandes barragens que alagam florestas virgens, pode-se utilizar os números astronômicos da operação de resgate em Tucuruí, cuja área alagada é similar à de Balbina. Naquela ocasião foram resgatados, pela operação Curupira, cerca de 280 mil animais, entre os quais 28,7 mil preguiças comum, 11,9 preguiças reais, 9,7 mil tatus, 9,3 mil porcos-espinho, 5,8 mil cotias, 3,7 mil tamanduás mirim, 19,5 mil macacos guariba, 2,5 mil macacos prego, 48,6 mil jabotis, 20,9 mil iguanas etc. Utilizando-se a biomassa total dos mamíferos resgatados em Tucuruí e dividindo-a pela área alagada obteremos um valor de aproximadamente 150 kg de mamíferos por km2, valor este muitas vezes menor do que o calculado para outras florestas neotropicais. Portanto, mesmo considerando os números extraordinários da Operação Curupira, é muito provável que apenas uma pequena parcela dos mamíferos da área de Tucuruí tenham sido resgatados. Se considerarmos os demais animais, vertebrados ou invertebrados as perdas podem ser consideradas quase totais. Em Balbina o número de animais capturados na operação de resgate foi de 10 vezes menor do que em Tucuruí, não porque necessariamente lá houvesse menos animais, mas sim porque as dificuldades de se locomover em barco em um lago com as características de Balbina são muito grandes.
Por outro lado deve-se assinalar que não existem quaisquer indícios teóricos ou práticos de que estas operações de resgate tenham alguma efetividade, servindo mais para satisfazer os sentimentos de uma parcela menos informada da sociedade do que propriamente para favorecer as espécies animais envolvidos. Os animais resgatados são soltos em determinadas áreas nas margens dos reservatórios, onde já existem animais residentes das mesmas espécies libertadas. A disponibilidade de recursos no ambiente e a pressão dos predadores (inclusive humanos) determinam as densidades em que as espécies se estabelecem em cada área, de nada adiantando a liberação de dezenas ou centenas de milhares de animais nas áreas de soltura. Este procedimento poderá, de fato, representar uma ampliação do impacto sobre as populações animais para além dos limites dos reservatórios, especialmente sabendo-se que grande parcela destes animais são soltos muito estressados e doentes.
Desta forma, “salvos” ou não, todos os animais das áreas alagadas devem ser considerados como mortos e, portanto, computados como “custo” na matriz custos/benefícios da obra. Por uma questão de interesse científico e de honestidade e respeito à opinião pública, deverão ser efetuados levantamentos das populações animais das áreas afetadas por barragens antes e durante o enchimento dos lagos, para que se tenha uma estimativa da diversidade biológica e do patrimônio genético perdidos. Como triste recompensa por perdas tão extraordinárias, algumas áreas da ciência poderão se beneficiar com a imensa disponibilidade de animais silvestres que ocorrem durante a formação de grandes lagos artificiais, pois uma pequena parcela destes exemplares poderão ser absorvida por instituições de pesquisas médicas, museus ou jardins zoológicos.
Balbina é o terceiro grande lago formado pelo homem na Amazônia, sendo antecedido por Brokopondo (1.580 km2) no Suriname e por Tucuruí (2.430 km2) no Pará (ver quadro comparativo na tabela 1). Outras hidrelétricas já foram construídas na Amazônia, como Curuá Una e Coracy Nunes, mas por serem dezenas ou centenas de vezes menores do que Balbina, não servem como experiências comparativas dos efeitos ambientais do barramento dos rios na região.
Tucuruí, apesar da área alagada similar, é um lago totalmente diferente de Balbina na sua dinâmica hidrológica. O volume de água no reservatório de Tucuruí é quase 3 vezes superior, e este se renova de 7 a 10 vezes mais rapidamente do que em Balbina. Estas diferenças marcantes indicam que não pode haver comparação entre a qualidade da água no reservatório, bem como a jusante, em Tucuruí e em Balbina. É de se relembrar, no entanto, que em Tucuruí houve e continua a ocorrer gravíssimos problemas especialmente com a água liberada a jusante, conforme denunciaram vários moradores das margens do rio Tocantins durante o I Ciclo de Debates sobre Hidrelétricas na Amazônia, realizado em Belém entre 29 de agosto e 1º de setembro de 1988.
O lago de Brokopondo, por sua vez, apresenta uma série de características similares as de Balbina, tais como: grande área alagada (67% da área de Balbina), pequena profundidade média (porém quase o dobro de Balbina), grande tempo teórico de residência da água, grande perímetro de margens (1.767 km de margens externas e 1.899 km de margens de ilhas), inúmeras ilhas (total de 1.1666), floresta pluvial tropical na área de alagamento, floresta apenas parcialmente submersa etc).
Sérios problemas surgiram com o barramento do rio Suriname para formação de Brokopondo, conforme registros na literatura: (1) Imediatamente após a inundação da camada de solo da floresta ocorreu intensa desoxigenação da água e mortalidade de peixes na área alagada. (2) A água do lago manteve-se estagnada, sem ocorrer misturas das camadas, devido a uma forte estratificação térmica que se estabeleceu durante pelo menos os 4 primeiros anos após o barramento, período em que houve acompanhamento limnológico. (3) As macrófitas, especialmente o aguapé (Eichornia crassipes), cobriram 41.200 hectares do lago no 3º anos após o barramento, sendo combatidas com herbicidas pulverizados de avião. Três anos depois as macrófitas estavam praticamente controladas, havendo dúvidas se sua redução foi devido ao combate químico ou simplesmente devido a um ciclo natural. (4) Durante os 2 primeiros anos de funcionamento as pessoas que trabalhavam na usina tiveram que usar máscaras devido ao forte cheiro de gás sulfídrico que era liberado na atmosfera quando a água passava pelas turbinas. Nos 6 primeiros anos de operação foram feitos reparos nas turbinas devido a ação corrosiva da água. (5) A água ácida e sem oxigênio liberada pelas turbinas provocaram mortandade de peixes até o estuário do rio Suriname com o mar, a 200 km da barragem.
Infelizmente, por uma extraordinária “coincidência”, os recursos da Eletronorte destinados a pesquisas científicas na bacia do Uatumã finalizaram-se por completo pouco antes do início da formação do lago. Nenhuma instituição independente financeiramente da Eletronorte vem acompanhando os impactos sobre o meio ambiente na região desde que as águas começaram a passar pela primeira das 5 turbinas (fevereiro de 89).
Apesar de existir hoje um razoável somatório de informações científicas confiáveis de antes do enchimento, pouco ou nada se registrou da situação durante e depois da formação do reservatório. Para o acompanhamento da qualidade da água, por exemplo, a equipe de limnologia do INPA foi cortada e substituída por outra pertencente a uma firma de consultoria que presta serviços a Eletronorte. Aliás, esta firma de consultoria apresenta uma atuação extremamente eclética em Balbina, participando em todas as atividades, desde o monitoramento ambiental até a assistência social ou as pesquisas arqueológicas. Quanto mais pessoas envolvidas nessas atividades de prestação de serviços, mais lucros para a firma e menos dinheiro nos cofres públicos, pois a Eletronorte paga a firma o equivalente a 3 vezes o salário de cada funcionário envolvido. É de se assinalar que a maioria destas firmas prestadoras de serviços a Eletronorte e outras empresas do setor elétrico originalmente tratavam-se apenas de firmas de consultoria e projetos de engenharia.
Voltando ao exemplo do monitoramento da qualidade da água, deve-se assinalar a diferença entre o acompanhamento feito por uma instituição pública e independente do efetuado por uma firma prestadora de serviços. Os técnicos desta firma simplesmente preenchem, periodicamente, as tabelas com os dados e as entregam ao seu “cliente” (no caso de Balbina, a Eletronorte). A incoerência deste processo está no fato de que a empresa responsável pela construção da barragem mantém a propriedade dos dados científicos que dizem respeito ao impacto ambiental que ela própria gerou com seu empreendimento. Este tipo de relação perdurou durante alguns anos entre a Eletronorte e as próprias instituições de pesquisa (vide, por exemplo, termos do convênio CNPq/INPA/Eletronorte), tolhendo o pesquisador um direito que lhe é universalmente reconhecido na Ciência: a propriedade intelectual das informações oriundas de seu próprio trabalho.
Repetidamente tecnocratas da Eletronorte e de suas consultoras tentam, junto a imprensam divulgar um quadro de normalidade, minimizando os problemas ambientais e sociais decorrentes da formação do lago e da liberação da água deste a jusante. Em muitas propagandas, inclusive, é transmitida a idéia de que Balbina é benéfica ao meio ambiente. No entanto, para os ribeirinhos da região, brasileiros simples que desenvolveram um método de vida em equilíbrio com o rio e com a floresta, muitos deles morando a décadas na margem do Uatumã, a situação que estabeleceu é de tristeza e de desespero. Todos os que visitam a região afetada e conseguem se desviar do “roteiro oficial” se chocam profundamente com o quadro de angústia, sofrimento e fome que se estabeleceu na área, que até alguns meses atrás era considerada farta e salubre.
No dia 26 de março último, domingo de Páscoa, foi realizada na pequena cidade de São Sebastião do Uatumã, a cerca de 300 km a jusante da barragem, um ato público em defesa da vida e contra a Hidrelétrica de Balbina. Foi tudo muito simbólico nesse evento, com centenas de ribeirinhos entristecidos, surpresos e revoltados com o que ocorreu à água do rio, que antes era pura e limpa, e que agora provoca coceiras e diarréias em quem dela se utilizar para asseio ou para beber. Entristecidos e revoltados também porque o peixe, sua fonte de proteína diária, está morrendo e apodrecendo aos milhares no rio, nos igapós e nos lagos. Todo o cenário tendo o rio Uatumã ao fundo.
A constatação de quem visita o rio a jusante é de que a assistência social fornecida às populações afetadas, basicamente um poço com bomba manual, um banheiro rústico e orientação para que não haja contato com a água do rio, é absolutamente insuficiente perante a magnitude da tragédia que se estabeleceu na área. Esta pequena assistência está sendo fornecida a apenas cerca de 110 famílias que vivem nos primeiros 180 km abaixo da barragem, o que representa apenas metade dos ribeirinhos diretamente afetados. O mais grave é que a Eletronorte aparentemente não reconhece sua responsabilidade na profunda ruptura social que se estabeleceu na área. Não compreende que o modo de vida daquelas famílias é historicamente relacionado à proximidade e a disponibilidade da água e do peixe do rio. A absoluta impossibilidade daquelas comunidades utilizarem-se desse 2 produtos básicos para sua sobrevivência, devidos as conseqüências da barragem ao ambiente aquático, deveriam justificar uma ação social muito mais efetiva do que a assistência de fachada que vem sendo efetuada até o momento. Tratando-se de um empreendimento de um custo próximo a um bilhão de dólares, deveriam ser destinados no mínimo um pequeno percentual deste valor para uma assistência concreta e direta às populações atingidas a jusante (afinal é ou não é “tudo pelo social”?). Hoje a responsabilidade por esta tarefa está nas mãos de uma empresa prestadora de serviços que se aproveitas de todas as brechas destes grandes projetos feitos com dinheiro público para maximizar seus lucros, se beneficiando da pequena capacidade de se mobilizar, de resistir e de reivindicar daquelas comunidades amazônidas.
A montante da barragem a situação do meio social e do meio ambiente também são preocupantes. O lago de Balbina possui mais de 3.000 km de margens com lama e água parada, além de ampla superfície coberta por macrófitas, formando um ambiente propício à proliferação de vários vetores e reservatórios de doenças tropicais, aumentando potencialmente o risco dessas doenças na área. A população rural do município de Presidente Figueiredo já se queixa das nuvens de mosquitos que começaram a surgir em suas propriedades. Isso sem falar nas terras de pequenos produtores rurais tomadas pelas águas sem qualquer indenização, conforme denunciado por alguns deles durante o I Encontro Estadual sobre a Questão Energética na Amazônia, realizado em março deste ano em Manaus.
Ainda a montante da barragem, uma terça parte dos remanescentes das nações Waimiri e Atroaris tiveram que ser transferidos para outra área, pois a água estagnada do reservatório alagou 2 de suas aldeias mais numerosas e acabou com a possibilidade de se alimentarem do peixe das cabeceiras do Uatumã. O massacre histórico que os Waimiri-Atroari vêem sendo submetidos está refletido no progressivo decréscimo populacional desse povo: eram cerca de 6.000 índios no início do século, 3.000 em 1972, 571 em 1982 e apenas 374 atualmente. Além da presença de uma imensa mineradora em suas terras (a Paranapanema), além de terem seu território cortado ao meio por uma estrada (a BR 174, Manaus-Caracaraí), os remanescentes Waimiri-Atroari vivem agora o desafio de não sucumbirem nas margens de um imenso lago artificial.
Ainda sobre os Waimiri-Atroari paira outra séria ameaça: a possibilidade de ser necessário desviar o rio Alalaú para dentro do lago de Balbina, a fim de que seja possível passar mais águas pelas turbinas sem esvaziar o lago e dessa forma gerar mais energia. Além de perderam o Rio Uatumã, esses índios correm o risco de no futuro verem desviado para sempre de seu leito natural o outro rio fundamental para sua manutenção física e cultural. No caso, não se trata apenas de avaliar os efeitos provavelmente catastróficos para este povo do desvio do rio Alalaú de seu leito, mas também considerar as conseqüências igualmente devastadoras do ponto de vista social oriundas da simples presença, no coração do território Waimiri-Atroari, de centenas ou milhares de operários, de dezenas de máquinas pesadas, do álcool, da prostituição e da violência que sempre acompanham estas grandes obras.
Alguns técnicos da Eletronorte já consideraram, publicamente, ser o desvio do Alalaú a “solução técnica” para a problemática hidrelétrica da Balbina, enquanto outros negam veementemente que esta hipótese esteja nos planos da empresa. De qualquer forma é importante assinalar que o desvio do Alalaú consta de diversos documentos e mapas feitos a respeito do projeto Balbina. Apenas para relembrar, a Eletronorte também anunciou em diversos documentos que, durante o enchimento, o lago de Balbina ficaria temporariamente estacionado na cota 46 metros (quando a área alagada seria 66% da atual), para que fossem verificadas as conseqüências ambientais do represamento e, somente após isso, é que seria completado seu enchimento até a cota de 50 metros. Na prática, o enchimento foi contínuo até serem alcançados 51 metros. As pesquisas científicas também ocorreriam antes, durante e depois de enchimento, no entanto...
Entre os problemas sociais ocasionados por Balbina, deve-se ainda incluir a desinformação e os preconceitos gerados pelos métodos de persuasão e convencimento da opinião pública contidos nas propagandas da Eletronorte. Estes anúncios foram transmitidos em horário nobre de televisão e rádio ou em revistas e jornais de grande circulação, se encontrando especialmente nos meses que antecederam e que sucederam o início da formação do lago, quando o questionamento popular sobre a validade da obra era mais intenso. Em quase todas as propagandas ficava claro que Balbina iria gerar 250 megawatts, que representa, como já vimos, apenas o valor da potência instalada, escamoteando-se sempre o fato desta hidrelétrica fornecer apenas 80 megawatts firmes à Manaus, cerca de uma terá parte da demanda da cidade em 1990, ano em que todas as turbinas estarão em operação. Em outra propaganda, que visava claramente jogar a opinião pública contra os que questionavam a obra, uma voz perfeita falava “Quem está contra Balbina está contra você”, seguida por um coro com o povão gritando “Balbina é nossa!”. Por causa deste anúncio a Eletronorte foi acusada em vários fóruns de debate de aplicar o dinheiro público em métodos caracteristicamente fascistas de propaganda. Em outra oportunidade utilizou-se da voz do Curupira, uma figura mitológica dos povos amazônicos, defensor dos animais e da floresta, para dizer “... se Balbina não fosse boa para os animais e para a floresta eu não deixaria que ela fosse construída...”. Expressões como “defendendo Balbina você estará defendendo a vida”, “Balbina é vida” etc. estão presentes em vários anúncios publicitários.
Sequer as crianças escaparam da volúpia de desinformação irradiada pela mídia da Eletronorte. Em uma colorida revista em quadrinhos chamada “A Maravilhosa Viagem da Luz até sua Casa”, distribuídas aos milhares nas escolas primeiro e segundo graus em Manaus, Itacoatiara, Itapiranga, Presidente Figueiredo e São Sebastião do Uatumã, um simpático papagaio explicava aos pequenos leitores, entre outras excentricidades, que “outra coisa importante em Balbina é a preocupação com o meio ambiente!”, “Balbina vai formar um lago de 1.580 km2 semelhante aos lagos de nossa região!”, “terá inúmeras ilhas em condições de vida para animais e vegetais!”, “Balbina vai usar o peixe-boi e outro mamíferos aquáticos para controlar as plantas que crescem na superfície do lago!”, “... a água do lago ficará com oxigênio e terá alimentos para peixes e outras espécies!” etc.
Hoje, autoridades como o ministro do Interior, o governador do Amazonas e até o próprio presidente da Eletronorte vem a público e reconhecem que Balbina foi, respectivamente, um “erro”, um “desastre”, um “pecado”. Mas do que vale essa tardia constatação de que Balbina foi de fato uma imensa aberração, se nada é feito para se apurar as responsabilidades técnicas, administrativas e políticas deste empreendimento inexplicável? É preciso lembrar que os “pais” de Balbina, aqueles que geraram, conceberam e defenderam intransigentemente este monstro devorador de dólares, ribeirinhos, índios, florestas e princípios estão soltos em escritórios em Brasília, planejando outras hidrelétricas para a Amazônia até, pelo menos, o ano 2010. É preciso lembrar também que outras “irmãs” de Balbina estão a caminho: o lago de Samuel em Rondônia já está enchendo, Manso no Mato Grosso será a próxima etc.
Partindo-se da premissa de que em Balbina houve, no mínimo, irresponsabilidade e incompetência no trato com o dinheiro público e com o patrimônio natural da nação, seria mais do que justificável que o Poder Público, acompanhado por representantes do movimento popular, averiguasse este projeto a fundo. Quanto realmente custou ao país? Houve interesses políticos e/ou econômicos que forjaram a necessidade da obra ou trata-se apenas de um erro técnico? Por que não foram escutados os cientistas que há alguns anos denunciam a inviabilidade da obra? A assistência social prestada às populações afetadas é apropriada? Seria viável, mesmo agora, do ponto de vista econômico, social e ecológico desativar a usina e esvaziar progressivamente o lago?
Bom seria se houvessem respostas para todas as questões. Mas o que existe até agora é apenas a resposta a velha pergunta que sempre fica no ar: “Quem vai pagar (ou já está pagando) a conta?”.
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Rogério Gribel
Engenheiro Florestal e Ecólogo
Departamento de Ecologia
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
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