PICICA: "Por mais sutil que pareça o movimento, com sua aura de legitimidade digna de um pastiche, é óbvio que um chefe de Estado não está submetido a um juízo de conveniência do Parlamento em parte alguma. Contra ele, se submete um processo atípico, que é o Impeachment, cuja competência para julgar embora caiba ao Parlamento, deve seguir o rito de um processo judicial ordinário - e constitui-se o Impeachment contemporâneo em um processo híbrido, judicial e político, cujo exercício sempre força o Direito ao seu limiar. Enfim, é sobre um golpe de Estado que estamos falando."
Paraguai e o Estado de Exceção
Há poucos dias, o Presidente do Paraguai, Fernando Lugo, foi impeachmado de uma forma pouco usual: acusado pelo parlamento por meio deste Libelo,
ele foi removido do cargo em algumas horas, sem direito à defesa ou
maiores cerimônias. Contra si, foram feitas acusações vagas de
improbidade administrativa - cujas provas seriam de "pública notoriedade" para usar os termos do Libelo - e, até mesmo, de ter atentado contra a soberania do país por conta da assinatura do Protocolo de Ushuaia II - que visa à instituição de um Conselho do Mercosul para dar efetividade à cláusula democrática do bloco, constante no Protocolo de Ushuaia I (1992).
Seu
recurso junto à Suprema Corte do país foi negado prontamente. A votação
do parlamento foi velocíssima - e nem podemos dizer que uma questão
fundamental central como essa foi decidida em rito sumário, uma vez que
Lugo não teve, simplesmente, acesso à defesa. O fato da assinatura do Protocolo de Ushuaia II
ter feito parte da acusação, por si só, denuncia a intenção dos
parlamentares: trata-se de um movimento claro de reação ao processo de
integração do continente, intensificado nos últimos anos pela agenda
social e democrática das forças que chegaram ao poder em toda a América
do Sul - no Paraguai, inclusive.
Nada mais
falso do que afirmar que isso é um assunto interno do Paraguai. Não é,
simplesmente. Os países do Mercosul, assim como Chile e Bolívia, estão
submetidos a uma cláusula democrática, que é uma forma de controle
externa necessária para proteger cada um dos membros da sanha golpista,
comum a todos eles - e que jamais se manifestou de forma isolada,
consistindo sempre em um efeito dominó. A democracia na América do Sul, é
assunto continental, pois nacionalmente é impossível defendê-la, haja
vista que as ameaças contra ela, jamais foram isoladamente nacionais.
Essa
cláusula surgiu formalmente com o movimento integrador que foi
imediatamente posterior à redemocratização do continente - sobretudo com
a aliança Sarney-Alfonsín - e ganhou substância com a ascensão
eleitoral de forças de esquerda e centro-esquerda, anti-neoliberais, na
América do Sul do século 21º - o que resultou em Ushuaia II. Uma vez que
todos dependem da integração comercial e política, qualquer um que
viole essa cláusula pode ser sancionado.
Aliás,
Lugo é vítima desse processo por suas virtudes e não por seus defeitos: é
ele o homem que rompeu com décadas de governo do Partido Colorado, a
expressão máxima do parasitismo oligárquico do país, e agora ensejava
fazer a reforma agrária no país, cuja situação no campo consegue ser
pior do que nos demais países da América do Sul - somado ao fato de que o
Paraguai é um Estado praticamente do século 19º, como se vê pela
própria arrecadação estatal, que sequer chega a 15% do PIB.
Por mais sutil que pareça o movimento, com sua aura de legitimidade digna de um pastiche, é óbvio que um chefe de Estado não está submetido
a um juízo de conveniência do Parlamento em parte alguma. Contra ele,
se submete um processo atípico, que é o Impeachment, cuja competência
para julgar embora caiba ao Parlamento, deve seguir o rito de um
processo judicial ordinário - e constitui-se o Impeachment contemporâneo
em um processo híbrido, judicial e político, cujo exercício sempre
força o Direito ao seu limiar. Enfim, é sobre um golpe de Estado que estamos falando.
O problema não está simplesmente em uma violação da Lei, mas sim no problema definitivo do Direito, que é a decisão final.
A tradição moderna institui, para neutralizar leis e decisões
(administrativas e judiciais) incorretas, o controle de
constitucionalidade, ainda assim, caberá a alguém decidir o que é
constitucional ou não - e, como bem sabemos, um juízo formal pode
aceitar rigorosamente tudo, até o pior dos absurdos. A questão central
não se trata daquilo que deve ou não ser ratificado pela Autoridade
Suprema, mas sim aquilo que ela pode ratificar como constitucional - não se trata, por óbvio, de um problema de cumprimento ou não da Lei (ou das leis democráticas ou anti-democráticas) como ingenuamente propôs o filósofo uspiano Vladimir Safatle em recente artigo.
Como
neutralizar uma decisão inconstitucional chancelada que, na prática,
institui, sem sangue ou barulho, um golpe de Estado? A conjuntura
sul-americana atual, como descrito, permite que haja um controle
superior, por parte dos demais Estados signatários de Ushuaia II, mas só
a atuação real dos governos do continente, quase todos apoiados pelos
movimentos sociais de seus países, é que pode alterar essa situação -
tal como a atuação da multidão nas ruas paraguaias e sul-americanas. E
não basta apenas garantir a reversão do golpe, é preciso empenho interno
e externo pela democratização do Paraguai, o que demanda, por exemplo, o
Desbloqueio das Listas eleitorais - algo equivalente às Diretas Já no
Brasil.
P.S.: Agradecimentos à minha amiga e militante Giuliana Bonilla pela ajuda inestimável na produção deste post - e, também, pelo envio deste vídeo.
P.S. II.: A postura dos governos de Venezuela e Argentina no episódio é lapidar, mas o governo brasileiro segue titubeante.
P.S. (d.b.): O Apoio do PSDB ao golpe de Estado paraguaio só demonstra que pior do que está, fica.
P.S. (d.b.): O Apoio do PSDB ao golpe de Estado paraguaio só demonstra que pior do que está, fica.
Fonte: O Descurvo
Nenhum comentário:
Postar um comentário