junho 28, 2012

"Paraguai e o Estado de Exceção", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Por mais sutil que pareça o movimento, com sua aura de legitimidade digna de um pastiche, é óbvio que um chefe de Estado não está submetido a um juízo de conveniência do Parlamento em parte alguma. Contra ele, se submete um processo atípico, que é o Impeachment, cuja competência para julgar embora caiba ao Parlamento, deve seguir o rito de um processo judicial ordinário - e constitui-se o Impeachment contemporâneo em um processo híbrido, judicial e político, cujo exercício sempre força o Direito ao seu limiar. Enfim, é sobre um golpe de Estado que estamos falando."

Paraguai e o Estado de Exceção

Há poucos dias, o Presidente do Paraguai, Fernando Lugo, foi impeachmado de uma forma pouco usual: acusado pelo parlamento por meio deste Libelo, ele foi removido do cargo em algumas horas, sem direito à defesa ou maiores cerimônias. Contra si, foram feitas acusações vagas de improbidade administrativa - cujas provas seriam de "pública notoriedade" para usar os termos do Libelo - e, até mesmo, de ter atentado contra a soberania do país por conta da assinatura do Protocolo de Ushuaia II - que visa à instituição de um Conselho do Mercosul para dar efetividade à cláusula democrática do bloco, constante no Protocolo de Ushuaia I (1992).
Seu recurso junto à Suprema Corte do país foi negado prontamente. A votação do parlamento  foi velocíssima - e nem podemos dizer que uma questão fundamental central como essa foi decidida em rito sumário, uma vez que Lugo não teve, simplesmente, acesso à defesa. O fato da assinatura do Protocolo de Ushuaia II ter feito parte da acusação, por si só, denuncia a intenção dos parlamentares: trata-se de um movimento claro de reação ao processo de integração do continente, intensificado nos últimos anos pela agenda social e democrática das forças que chegaram ao poder em toda a América do Sul - no Paraguai, inclusive. 

Nada mais falso do que afirmar que isso é um assunto interno do Paraguai. Não é, simplesmente. Os países do Mercosul, assim como Chile e Bolívia, estão submetidos a uma cláusula democrática, que é uma forma de controle externa necessária para proteger cada um dos membros da sanha golpista, comum a todos eles - e que jamais se manifestou de forma isolada, consistindo sempre em um efeito dominó. A democracia na América do Sul, é assunto continental, pois nacionalmente é impossível defendê-la, haja vista que as ameaças contra ela, jamais foram isoladamente nacionais.

Essa cláusula surgiu formalmente com o movimento integrador que foi imediatamente posterior à redemocratização do continente - sobretudo com a aliança Sarney-Alfonsín - e ganhou substância com a ascensão eleitoral de forças de esquerda e centro-esquerda, anti-neoliberais, na América do Sul do século 21º - o que resultou em Ushuaia II. Uma vez que todos dependem da integração comercial e política, qualquer um que viole essa cláusula pode ser sancionado.

Aliás, Lugo é vítima desse processo por suas virtudes e não por seus defeitos: é ele o homem que rompeu com décadas de governo do Partido Colorado, a expressão máxima do parasitismo oligárquico do país, e agora ensejava fazer a reforma agrária no país, cuja situação no campo consegue ser pior do que nos demais países da América do Sul - somado ao fato de que o Paraguai é um Estado praticamente do século 19º, como se vê pela própria arrecadação estatal, que sequer chega a 15% do PIB.

Por mais sutil que pareça o movimento, com sua aura de legitimidade digna de um pastiche, é óbvio que um chefe de Estado não está submetido a um juízo de conveniência do Parlamento em parte alguma. Contra ele, se submete um processo atípico, que é o Impeachment, cuja competência para julgar embora caiba ao Parlamento, deve seguir o rito de um processo judicial ordinário - e constitui-se o Impeachment contemporâneo em um processo híbrido, judicial e político, cujo exercício sempre força o Direito ao seu limiar. Enfim, é sobre um golpe de Estado que estamos falando.

O problema não está simplesmente em uma violação da Lei, mas sim no problema definitivo do Direito, que é a decisão final. A tradição moderna institui, para neutralizar leis e decisões (administrativas e judiciais) incorretas, o controle de constitucionalidade, ainda assim, caberá a alguém decidir o que é constitucional ou não - e, como bem sabemos, um juízo formal pode aceitar rigorosamente tudo, até o pior dos absurdos. A questão central não se trata daquilo que deve ou não ser ratificado pela Autoridade Suprema, mas sim aquilo que ela pode ratificar como constitucional  - não se trata, por óbvio, de um problema de cumprimento ou não da Lei (ou das leis democráticas ou anti-democráticas) como ingenuamente propôs o filósofo uspiano Vladimir Safatle em recente artigo.

Como neutralizar uma decisão inconstitucional chancelada que, na prática, institui, sem sangue ou barulho, um golpe de Estado? A conjuntura sul-americana atual, como descrito, permite que haja um controle superior, por parte dos demais Estados signatários de Ushuaia II, mas só a atuação real dos governos do continente, quase todos apoiados pelos movimentos sociais de seus países,  é que  pode alterar essa situação - tal como a atuação da multidão nas ruas paraguaias e sul-americanas. E não basta apenas garantir a reversão do golpe, é preciso empenho interno e externo pela democratização do Paraguai, o que demanda, por exemplo, o Desbloqueio das Listas eleitorais - algo equivalente às Diretas Já no Brasil.

P.S.: Agradecimentos à minha amiga e militante Giuliana Bonilla pela ajuda inestimável na produção deste post - e, também, pelo envio deste vídeo.

P.S. II.: A postura dos governos de Venezuela e Argentina no episódio é lapidar, mas o governo brasileiro segue titubeante. 


P.S. (d.b.): O Apoio do PSDB ao golpe de Estado paraguaio só demonstra que pior do que está, fica. 

Fonte: O Descurvo

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