PICICA: "A
pesquisadora da Unicamp recorda que colegas da Universidade de
Montreal, com a colaboração de movimentos de usuários do Canadá, tinham
desenvolvido um guia para ajudar o paciente a autogerenciar a sua
medicação. “Decidimos trazer este guia para traduzi-lo e adaptá-lo à
realidade brasileira. Formamos equipes com apoio de outras universidades
públicas brasileiras em Campinas, Rio de Janeiro (UFF e UFRJ) e Novo
Hamburgo (UFRGS). Trabalhamos primeiro na tradução e depois com grupos
de pacientes para adaptar a linguagem. Agora estamos na versão final,
financiada pelo IDRC [Centro Internacional de Pesquisas para o
Desenvolvimento do Canadá], que esperamos disponibilizar online antes do
fim do ano.”
Segundo
Rosana Onocko-Campos, o trabalho com o Guia para Gestão Autônoma da
Medicação (GGAM) dentro dos Centros de Atenção Psicossocial permitiu
perceber que, apesar de todos os valores pregados na reforma
psiquiátrica (como o protagonismo do usuário e a cogestão dos seus
problemas familiares e de vida), o tema da medicação continua sendo um
ponto cego. “Os trabalhadores da saúde dizem que medicação é com o
médico, que por sua vez não dá muitas explicações e nem é questionado
pelo usuário, que fica sem saber de possíveis interações dos
medicamentos com substâncias como álcool, café, chás e outras consumidas
no dia a dia.”"
Pesquisas revelam hipermedicação
de pacientes com transtorno mental
Levantamentos apontam que uso crescente de medicamentos está associado a fatores socioeconômicos
Pesquisas de fôlego realizadas junto aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do Estado de São Paulo mostram que houve um avanço na reforma psiquiátrica brasileira, desencadeada a partir dos anos 1980 para promover a desativação gradual do arcaico sistema manicomial e substituí-lo por uma rede de serviços de atenção visando à integração da pessoa que sofre de transtornos mentais na comunidade. As pesquisas revelam, por outro lado, um engodo na reforma: a hipermedicação dos pacientes, notadamente das classes menos favorecidas, que desconhecem o porquê, tempo de duração e possíveis efeitos indesejados do tratamento farmacológico.
A professora Rosana Teresa Onocko-Campos, do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, atuou na coordenação destes projetos. Um deles está sendo finalizado agora e envolveu 25 dos 26 Caps III paulistas (os centros de tipo III são de cidades com mais de 200 mil habitantes). O financiamento veio da Fapesp, do Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS, do Ministério da Saúde) e da Aliança de Pesquisa Comunidade-Universidade (Aruc-Canadá). Uma pesquisa anterior de 2008 a 2010, esta financiada pelo CNPq e focada em Campinas, resultou no Guia de Boas Práticas nos Caps, que foi publicado na Revista de Saúde Pública (2009;43(Supl. 1):16-22).
Os Caps são unidades de referência de saúde mental e os de tipo III, particularmente, visam se tornar substitutivos ao hospital psiquiátrico, possuindo equipes multiprofissionais com a missão de tratar de forma intensiva os portadores de transtorno mental com idade superior a 18 anos. O tratamento se dá na própria comunidade e junto às famílias, evitando a internação psiquiátrica integral e promovendo a reabilitação psicossocial dos cronicamente comprometidos. Funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana, contando com leitos para o acolhimento noturno de portadores de sofrimento psíquico em períodos de crise.
“O trabalho empírico junto aos Caps de São Paulo foi realizado no ano passado, com a colaboração da equipe do professor Juarez Pereira Furtado, da Unifesp/Santos. Oferecemos um curso para capacitar os trabalhadores da saúde a avaliar os serviços em seus Caps, seguindo metodologia desenvolvida por pesquisadores da Universidade de Montreal, os Grupos de Apreciação Compartilhada: a cada encontro, tematizava-se uma questão dos Caps, com aporte teórico como de uma palestra, e depois eram decididos conjuntamente os aspectos relevantes a serem avaliados”, explica Rosana Onocko-Campos.
Na tarefa seguinte, a “dispersão”, os trabalhadores levavam os indicadores para testá-los em suas unidades. Chegou-se a um leque de 25 indicadores de avaliação e, no momento, os pesquisadores retocam a fotografia dos Caps III do Estado, trabalho que estão encaminhando para publicação. “Isso é muito relevante porque os Caps são a grande aposta da reforma psiquiátrica: garantindo uma boa qualidade nesses serviços, a fim de que deem conta dos pacientes graves, poderemos prescindir de fato do hospital psiquiátrico. Mas ainda chama atenção a grande heterogeneidade dos Caps III no Estado de São Paulo: alguns estão bastante dentro do desenho de política elaborado para eles, enquanto outros estão bem longe do que prevê a portaria do Ministério da Saúde.”
Grupos de sobreviventes
A docente da Unicamp observa que a reforma brasileira, apesar de apresentar características peculiares ao sistema público de saúde do país, tem sido inspirada em processos de mesmo caráter que aconteceram no mundo inteiro. “Em outros países, crescem cada vez mais as associações de usuários autodenominados ‘sobreviventes’, que muitas vezes saíram de processos de internação. Esses usuários são veementes em provar que o hospital psiquiátrico não é a melhor maneira de melhorar a saúde do portador de distúrbio mental. Não estou negando que, em alguns casos, seja necessária a internação em um hospital geral – a rede brasileira prevê leitos para isso – até porque a pessoa pode ter outras intercorrências como diabetes, infarto ou intoxicação por drogas (precisamente nesses casos o hospital psiquiátrico carece de infraestrutura para oferecer cuidados apropriados).”
Cada Caps possui uma média de 300 a 400 pacientes cadastrados, sendo que a frequência deles depende do tratamento planejado pela equipe multiprofissional. Rosana Onocko-Campos conta que na pesquisa em Campinas foram organizados grupos focais compostos por trabalhadores, usuários, familiares e gestores para avaliação dos serviços. “A família agora sabe que tem para onde ligar em caso de problema urgente: as equipes vão ao domicílio ou acionam o socorro para trazer o portador de distúrbios ao Centro. Outros estudos pelo Brasil apontam vários pontos de coincidência. Diria que já temos evidências suficientes para afirmar que, onde a rede está razoavelmente estruturada, ela é capaz de dar atendimento a esta população.”
A pesquisadora insiste que a reforma psiquiátrica no Brasil avançou o suficiente para eliminar qualquer controvérsia em relação à importância dos Centros de Atenção Psicossocial. “Em outra pesquisa financiada pela Fapesp, em 2010 e 2011, avaliamos os centros de atenção primária de Campinas e entrevistamos familiares de pessoas que tinham sido encaminhadas aos Caps. Em todos os casos, as famílias afirmam que o acesso ao serviço melhora o histórico do tratamento e a trajetória de vida do usuário. Temos dados para mostrar que a reforma psiquiátrica não gera desassistência, não gera abandono ou morador de rua. E gostamos de ouvir aqueles depoimentos.”
Um guia para pôr
fim ao ‘ponto cego’
Na pesquisa que coordenou em Campinas, com financiamento do CNPq, a professora Rosana Onocko-Campos identificou o que considera o engodo da reforma psiquiátrica: a hipermedicação de muitos pacientes, tanto na rede de atenção primária como nos Centros de Atenção Psicossocial. “Não é um problema somente do sistema brasileiro, há evidências disso no mundo inteiro. Muitas vezes, o tratamento em saúde mental está reduzido aos psicotrópicos, sendo que a comunicação entre os profissionais da saúde e os usuários é deficiente. A qualificação da utilização de psicofármacos e a qualificação de pessoal têm sido pontos sensíveis da expansão da rede.”
A pesquisa aponta que o uso crescente destes medicamentos está associado a fatores socioeconômicos, com prevalência de medicação associada aos indivíduos de maior vulnerabilidade social, baixa escolaridade e menor renda per capita. Em Campinas, no primeiro semestre de 2010, apenas na rede pública de farmácias, 65.778 pessoas receberam prescrição de psicofármacos, o que equivale a 6,5% dos habitantes da cidade. Segundo os autores, igual processo vem sendo observado na atenção primária europeia, com taxas de prescrição de psicofármacos que chegam a 8% da população.
Além da crescente medicação, o estudo revela também a medicalização da população – fenômeno de transformação de situações corriqueiras em objeto de tratamento da medicina. Na opinião dos pesquisadores, em ambas as situações, um dos efeitos produzidos é a redução das experiências singulares das pessoas a meros fenômenos bioquímicos. “Nas entrevistas, os trabalhadores da saúde alegam que, vendo pessoas em situação tão difícil e desfavorável, decidem dar o medicamento para ‘acalmá-las’. É algo sobre o qual eles devem refletir: na verdade, se está medicalizando um problema que faz parte da vida e que não é doença; se as condições do seu bairro estão péssimas, a pessoa deve primeiro se indignar, pois vivendo sob a ação de calmantes, nada vai fazer”, observa Rosana Onocko-Campos.
A pesquisadora da Unicamp recorda que colegas da Universidade de Montreal, com a colaboração de movimentos de usuários do Canadá, tinham desenvolvido um guia para ajudar o paciente a autogerenciar a sua medicação. “Decidimos trazer este guia para traduzi-lo e adaptá-lo à realidade brasileira. Formamos equipes com apoio de outras universidades públicas brasileiras em Campinas, Rio de Janeiro (UFF e UFRJ) e Novo Hamburgo (UFRGS). Trabalhamos primeiro na tradução e depois com grupos de pacientes para adaptar a linguagem. Agora estamos na versão final, financiada pelo IDRC [Centro Internacional de Pesquisas para o Desenvolvimento do Canadá], que esperamos disponibilizar online antes do fim do ano.”
Segundo Rosana Onocko-Campos, o trabalho com o Guia para Gestão Autônoma da Medicação (GGAM) dentro dos Centros de Atenção Psicossocial permitiu perceber que, apesar de todos os valores pregados na reforma psiquiátrica (como o protagonismo do usuário e a cogestão dos seus problemas familiares e de vida), o tema da medicação continua sendo um ponto cego. “Os trabalhadores da saúde dizem que medicação é com o médico, que por sua vez não dá muitas explicações e nem é questionado pelo usuário, que fica sem saber de possíveis interações dos medicamentos com substâncias como álcool, café, chás e outras consumidas no dia a dia.”
Para a professora, a centralização da prescrição na figura do médico é um aspecto ainda não reformado da reforma, assim como o desconhecimento que também os trabalhadores da saúde demonstram sobre medicação. “Os profissionais vivem cotovelo a cotovelo com o médico e os pacientes graves, às vezes durante anos, mas conhecem quase tão pouco quanto os usuários. É um paradoxo. Pressupõe-se que eles tenham interesse em aprender, pelo menos, qual é o efeito do remédio ou por que ele é combinado com um e não com outro.”
Um dos desdobramentos interessantes da pesquisa, conforme Rosana Onocko-Campos, é que os pacientes começaram a se responsabilizar mais pelo seu tratamento. “Os usuários são os únicos que podem falar da experiência do adoecimento, de como é estar com psicose ou depressão. No diabético, o médico mede a glicose e verifica se é preciso reduzir ou aumentar a dose. Mas se a pessoa sofre de transtorno do humor, como saber se a dosagem está boa, a não ser confiando no que ela diz? A valorização da palavra do outro é condição para a qualidade do tratamento. O médico que não faz isso, não é bom clínico.”
Um dos desdobramentos interessantes da pesquisa, conforme Rosana Onocko-Campos, é que os pacientes começaram a se responsabilizar mais pelo seu tratamento. “Os usuários são os únicos que podem falar da experiência do adoecimento, de como é estar com psicose ou depressão. No diabético, o médico mede a glicose e verifica se é preciso reduzir ou aumentar a dose. Mas se a pessoa sofre de transtorno do humor, como saber se a dosagem está boa, a não ser confiando no que ela diz? A valorização da palavra do outro é condição para a qualidade do tratamento. O médico que não faz isso, não é bom clínico.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário