PICICA: "Uma coisa nos fica bem claro nas palavras da estudiosa do novo cinema argentino: estamos diante de uma arte que não procurou copiar ou imitar a “arte do colonizador”, mas procurou a partir de suas condições de produção e da sua realidade fazer a “sua arte”, ou seja, o seu cinema. Procurou não cair num “cosmopolitismo de cócoras” (palavras do sociólogo Chico de Oliveira) em termos de cinema e demarcou sua maneira de fazer a arte cinematográfica."
O CINEMA ARGENTINO CONTEMPORÂNEO: NOTAS SOBRE MEDIANERAS
Romero Venâncio (UFS)
Aos argentinos-hermanos, Rolando Lazarte, Sergio Hugo Menna e Gonzalo Rojas.
Podemos
afirmar com segurança: o cinema argentino é o melhor cinema de ficção da
América Latina pelo menos, nos últimos 20 anos. Um cinema simples,
antenado com questões profundas da cultura contemporânea argentina e
fiel a uma “poética autoral”. Basta citar os nomes de Carlos Sorín,
Lucrécia Martel, Juan Jose Campanella, Eliseu Zubiela, Adrian Caetano
sem esquecer de Pino Solanas e Fernando Birri.
Essa nova
geração (geração pós-anos 90 do século passado) inovou radicalmente o
cinema de seu País com roteiros originais, adaptações literárias,
narrativas bem construídas e atores e atrizes bem preparados. Merece
ainda destaque, a presença de atores amadores, principalmente utilizados
por Sorín em películas como: “Histórias mínimas” e “O cachorro”.
Filmes que
tiram histórias simples de onde jamais se esperava sair alguma coisa,
sendo direto: histórias do povo de baixo e de longo sofrimento. Este
novo cinema portenho coloca em cena uma diversidade de figuras:
cuidadores de cachorros, velhos solitários, desempregados, estudantes
sem rumo, prostitutas que lêem Benedetti, aposentados frustrados com
planos de governo, trombadinhas, gente de periferia em Buenos Aires, ou
seja, um cinema que não embarcou num “vanguardismo vazio e estéril” ou
numa reprodução do modelo televiso e apostou na retomada de um cinema
que tem o que contar a partir de personagens encontrados nas ruas, que
vivem e sofrem num cotidiano como qualquer ser humano “normal”.
Os novos
diretores argentinos perceberam que não precisam inventar demais, como
nas palavras de Paulinho da Viola: “As coisas estão no mundo, só que eu
preciso aprender”. Os Hermanos aprenderam e bem. Películas como: Pizza,
Birra, Faso; A Janela; O segredo dos seus olhos; Clube da lua, O filho
da noiva, Pântano, Memória do saque; Abutres; Um conto chinês e outros
tantos mais que não me chegam a memória, são exemplos de um cinema
vigoroso, criativo e marcadamente sensível sem cair em melodramas tolos
ao modo de alguns filmes brasileiros e norte americano aos montes.
Podemos
ainda citar uma pequena tradição crítica que tem percebido desde o
início essa trajetória, bastando citar aqui o livro-coletânea organizado
por Viviana Rangil, intitulada: El cine argentino hoy: entre el arte y la politica. Nesta obra temos uma pequena mostra de que tipo de cinema estamos falando e festejando criticamente.
Por este
novo cinema, vemos e entendemos as transformações políticas e econômicas
pelas quais passou a Argentina e seu povo. Crise política violenta com
as consequências devastadoras do Neoliberalismo, empobrecimento
acelerado do povo, lutas nas ruas, greves, proletarização das classes
médias e uma concentração de rendas e novos ricos exibidos (sendo bem
sincero, nada muito diferente do Brasil. Exceto no cinema).
Em síntese:
um cinema que acompanhou o seu País nos seus mais significativos
momentos dos últimos 30 anos, para falar o mínimo. O “segredo” deste
cinema pode ser desvelado nas palavras precisas de Viviana Rangil em um
dos artigos do citado livro: “Pareciera que al describir o hablar del
cine nacional, necessariamente hay que hablar de uma producción definida
em contra del modelo hollywoodense no sólo em términos de producción
sino también em lo que se refiere a distribución y recepción” (p.11).
Uma coisa
nos fica bem claro nas palavras da estudiosa do novo cinema argentino:
estamos diante de uma arte que não procurou copiar ou imitar a “arte do
colonizador”, mas procurou a partir de suas condições de produção e da
sua realidade fazer a “sua arte”, ou seja, o seu cinema. Procurou não
cair num “cosmopolitismo de cócoras” (palavras do sociólogo Chico de
Oliveira) em termos de cinema e demarcou sua maneira de fazer a arte
cinematográfica.
Destaco neste breve espaço mais uma perola deste novo cinema argentino: Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual.
Película dirigida por Gustavo Taretto, que baseou o longa numa curta de
mesmo nome e do próprio diretor. Significa dizer que o longa tem origem
num curta-metragem que demonstrava ter fôlego e provou.
Num resumo
rápido da trama: Marina, Martin e a cidade de Buenos Aires nos dias
atuais. Os dois vivem na mesma cidade, na mesma quadra, em apartamentos
um em frente do outro, mas nunca conseguem se encontrar. Ela é arquiteta
de formação e vitrinista de profissão. Ele é webdesigner vidrado por
computador e internet. Ambos absolutamente solitários numa metrópole que
não perdoa solitários. Ela sobe as escadas, ele desce as escadas; ela
entra no ônibus, ele desce do ônibus… A cidade que os coloca juntos é a
mesma que os separa.
Mas isso é
apenas um resumo superficial e com pouca importância diante da
construção detalhada do cotidiano dos personagens e de como chegaram
cada um a sua solidão insuportável. O filme inicia de bate pronto com
Martin descrevendo arquitetonicamente a cidade de Buenos Aires e de como
se modernizou para separar, isolar e tornar as pessoas solitárias numa
multidão de viventes, além da descrição de como foi friamente abandonado
pela namorada que se mandou para os Estados Unidos depois de uma das
crises neoliberais da Argentina, deixando para ele uma cachorrinha de
companhia.
Maravilhosamente
dura e trágica é a descrição de Mariana no que diz respeito a sua
relação. Afirma categoricamente que viveu uma relação de quatro anos com
uma pessoa que tornou-se um estranho para ela, chegando a contar horas,
dias e meses que perfazem os exatos quatro anos.
Quem não
viveu um dia esta situação de ter aquele ou aquela que pensávamos amar
como um estranho, depois de anos de convivência sofrida de ser uma
espécie de clandestino na vida desta pessoa? Um aprendizado “pela pedra”
viveu Mariana e aprendeu, superando-o.
O filme vai
dosando as falas dos personagens e algumas pequenas experiências
frustradas ou desastradas que aparecem para ambos. Destaco aqui uma cena
em que a personagem de tanto fazer e arrumar manequins senta no colo de
um, como se sugerisse uma relação sexual e depois afirma que só foi
sexo e nada mais. Soberbo! Exemplo máximo do desespero da solidão.
Paralelo a
este cotidiano, vamos tendo uma “aula” da urbana Buenos Aires, com seus
prédios grandiosos, sua arquitetura pós-moderna e suas contradições
vividas no corpo dos personagens. Sem final feliz aos moldes
melodramáticos Norte Americanos, o final é de um surpreendente encontro,
mas sem rumo ao certo ou sem onde pode chegar aqueles solitários
jovens. Por fim, mais um clássico (dentre tantos já clássicos) deste
jovem e profícuo cinema argentino.
BIBLIOGRAFIA
RANGIL, Viviana (editora). El cine argentino de hoy: entre el arte y la política. Buenos Aires: Biblos editora, 2007.
Fonte: Antes da Tempestade
Fonte: Antes da Tempestade
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