PICICA: "(...)a Marcha das Vadias de Belém foi como um encontro inusitado entre esquerda e direita, donas de casa e prostitutas, intelectuais orgânicas e acadêmicas, burocratas e artistas. Um encontro bonito. Talvez difuso em alguns momentos, talvez cheio de fragmentos e colagens relativamente contrafeitas. Mas, belas. Exageradamente democrático, eu diria.
Então, eram coletivos, associações, partidos, sindicatos, grupos independentes e indivíduos. E eram diversas as demandas que se entrecruzavam. Marchando pela liberdade e igualdade estavam representantes de mulheres feministas, ribeirinhas, mulheres de terreiro, negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, domésticas, um interessante coletivo de homens feministas, as mulheres agricultoras e seu contexto belicoso no sul do estado, líderes sindicais, prostitutas lutando pela regulamentação de seu trabalho, religiosas pela reforma agrária, as “pouco religiosas” pelo direito pleno e irrestrito às determinações sobre o próprio corpo. E ainda haviam aquel@s, que eu também observava, que paravam nas calçadas com olhos surpresos e curiosos indagando do que se tratava tal mobilização. Ou então os que apressavam o passo, ofendidos com tanta voz, cor, corpo exposto e palavras silenciadas no cotidiano: vadia, sexo, buceta, feminismo, menstruação, estupro, santa, livre, puta…" EM TEMPO: Saiba como está a organização da Marcha das Vadias em Manaus. Clique aqui.
Marcha das Vadias: lugar de mulher é onde ela quiser
Era um dia de sol alto e forte, numa Belém que
ultimamente se mostrava toda chuva. E eram aproximadamente 700 pessoas
cansadas de tanta opressão cotidiana, que sob o lema “Lugar de mulher é onde ela quiser”,
decidiram movimentar o centro de Belém naquela manhã de maio e vento.
Da escadinha da Estação das Docas até a Praça da República.
A intenção era bem delimitada e lógica. Os seios, sutiãs, calcinhas, punhos em riste e cartazes categóricos irreverentes ilustravam que ali se falava contra o disciplinamento exacerbado dos corpos femininos, contra a violência, a culpabilização, os mitos e medos, as diferenças nas vivências de liberdades individuais e sexuais para homens e mulheres, o viés sempre negativo dos ciclos femininos e, especialmente, dizia sobre as patentes e lastimáveis expressões contemporâneas destes fenômenos e a urgência por transformações coletivas, em níveis de consciência e de práticas.
Apesar disso, foi interessante perceber uma marcha múltipla, horizontal. Confundindo pra esclarecer. Esclarecer que as questões de gênero e os lugares, símbolos e classificações injustamente reservados às mulheres na sociedade, incomodam muita gente, de diversas procedências, filiações e associações. Então, a Marcha das Vadias de Belém foi como um encontro inusitado entre esquerda e direita, donas de casa e prostitutas, intelectuais orgânicas e acadêmicas, burocratas e artistas. Um encontro bonito. Talvez difuso em alguns momentos, talvez cheio de fragmentos e colagens relativamente contrafeitas. Mas, belas. Exageradamente democrático, eu diria.
Então, eram coletivos, associações, partidos, sindicatos, grupos independentes e indivíduos. E eram diversas as demandas que se entrecruzavam. Marchando pela liberdade e igualdade estavam representantes de mulheres feministas, ribeirinhas, mulheres de terreiro, negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, domésticas, um interessante coletivo de homens feministas, as mulheres agricultoras e seu contexto belicoso no sul do estado, líderes sindicais, prostitutas lutando pela regulamentação de seu trabalho, religiosas pela reforma agrária, as “pouco religiosas” pelo direito pleno e irrestrito às determinações sobre o próprio corpo. E ainda haviam aquel@s, que eu também observava, que paravam nas calçadas com olhos surpresos e curiosos indagando do que se tratava tal mobilização. Ou então os que apressavam o passo, ofendidos com tanta voz, cor, corpo exposto e palavras silenciadas no cotidiano: vadia, sexo, buceta, feminismo, menstruação, estupro, santa, livre, puta…
E enquanto marchávamos eram entusiasmados os tantos discursos que se sucediam, dizendo sobre socialismo, capitalismo e patriarcado, salários de professores, equalização de salários entre mulheres e homens, 10% do PIB para educação, direitos das prostitutas, creches públicas, estupro, feminismo, Pare Belo Monte!, sexualidade, assistência estudantil nas universidades públicas, vegetarianismo, ambientalismo, Xingu+23; todos os segmentos buscando liames com a luta contra o machismo, reconhecendo e legitimando a marcha. Na vanguarda, as impulsionadoras da marcha eram militantes caracterizadas de Frida Khalo, Dandara, Pagu, Anita Garibaldi, Olga Benário, Iracema, entre muitas outras.
Vivendo por aqui há apenas poucos meses, reflito e ouso compreender esta miscelânea de demandas e organizações. Eu tenho pisado devagar nesse chão, com respeito. Quando cheguei, do Pará sabia apenas lambada, borracha, Amazônia, conflito fundiário, Guerrilha do Araguaia e Doroty Stang. Porém, meus olhos pedintes e observadores já prestam muita atenção em muitas outras coisas. A primeira delas é o fato de a Amazônia não ser o vazio demográfico desabitado que o distanciamento geográfico nos faz crer. E o que enxerguei foram paraenses extenuados de tanto viver neste norte excluído, dominado, esquecido. Que não perdem chances de ocupar as ruas e bradar por justiça, igualdade, liberdade e políticas públicas.
A mim, o Pará é um rico e fascinante paradoxo. De natureza, pessoas, culinária, dança, história, música, chuva, sol, folclore, mitos, lendas. Aqui já escutei histórias sobre icamiabas guerreiras que mutilavam um dos seios para que o arco encaixasse no em seu torso firme e assim pudessem melhor guerrear. Foram intituladas “amazonas” pelos portugueses que relatavam o que viam aqui pelo norte, e eram descritas como livres, independentes e sem maridos, arqueiras primorosas e defensoras da floresta.
Também escutei sobre o boto, cuja existência (controversamente), em alguns casos, também atenua a culpa e estigmatização femininas ao se ter filhos sem pai nos arquipélagos que cortam as baías, apesar de resvalar mais uma vez no labirinto da fragilidade e suscetibilidade das mulheres. Da Matinta Pereira, visagem mulher, bruxa, imponente e assustadora, que fuma tabaco e é respeitada por todos os caboclos da região amazônica. E nada me tira da mente que escutar essas lendas e histórias é fortalecedor para a subjetividade feminina nestas terras, porque de onde eu vim as protagonistas destas narrativas, em geral, morrem de amor, ou se demancham em lágrimas ou morrem espancadas por homens. Mas isso são apenas pressupostos superficiais meus.
Para além destas elucubrações histórico-mitológicas pouco fundamentadas, eu diria que toda a cybermilitância e articulações globais que envolvem a marcha das vadias mobilizaram tantos indivíduos e segmentos sociais neste dia porque todo o Pará anda cansado de tantos anos de ocupação exploratória. De ver o resto do Brasil de costas. De ocupar a quarta colocação no ranking das ocorrências de homicídios femininos, prática que – já não é novidade – não ocorre em vias públicas, mas sim no interior dos lares sacrossantos e imaculados das famílias brasileiras. De ter uma rede de serviços à infância, mulher e família insuficiente e desarticulada. Da Justiça lenta e inócua. De meninas adolescentes em celas com 20 homens.
A Marcha das Vadias de Belém descortinou a mim um Pará de muitas lutas, foi uma mobilização, que apesar de não perder a centralidade de seu propósito, foi locus de agregação, de multiplicidade, e me disse alto que a luta das mulheres pela liberdade tem aliados dispostos a unir esforços e ocupar todos os espaços, discutir tabus, revelar repressões naturalizadas e construir outra sociedade.
A intenção era bem delimitada e lógica. Os seios, sutiãs, calcinhas, punhos em riste e cartazes categóricos irreverentes ilustravam que ali se falava contra o disciplinamento exacerbado dos corpos femininos, contra a violência, a culpabilização, os mitos e medos, as diferenças nas vivências de liberdades individuais e sexuais para homens e mulheres, o viés sempre negativo dos ciclos femininos e, especialmente, dizia sobre as patentes e lastimáveis expressões contemporâneas destes fenômenos e a urgência por transformações coletivas, em níveis de consciência e de práticas.
Apesar disso, foi interessante perceber uma marcha múltipla, horizontal. Confundindo pra esclarecer. Esclarecer que as questões de gênero e os lugares, símbolos e classificações injustamente reservados às mulheres na sociedade, incomodam muita gente, de diversas procedências, filiações e associações. Então, a Marcha das Vadias de Belém foi como um encontro inusitado entre esquerda e direita, donas de casa e prostitutas, intelectuais orgânicas e acadêmicas, burocratas e artistas. Um encontro bonito. Talvez difuso em alguns momentos, talvez cheio de fragmentos e colagens relativamente contrafeitas. Mas, belas. Exageradamente democrático, eu diria.
Então, eram coletivos, associações, partidos, sindicatos, grupos independentes e indivíduos. E eram diversas as demandas que se entrecruzavam. Marchando pela liberdade e igualdade estavam representantes de mulheres feministas, ribeirinhas, mulheres de terreiro, negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, domésticas, um interessante coletivo de homens feministas, as mulheres agricultoras e seu contexto belicoso no sul do estado, líderes sindicais, prostitutas lutando pela regulamentação de seu trabalho, religiosas pela reforma agrária, as “pouco religiosas” pelo direito pleno e irrestrito às determinações sobre o próprio corpo. E ainda haviam aquel@s, que eu também observava, que paravam nas calçadas com olhos surpresos e curiosos indagando do que se tratava tal mobilização. Ou então os que apressavam o passo, ofendidos com tanta voz, cor, corpo exposto e palavras silenciadas no cotidiano: vadia, sexo, buceta, feminismo, menstruação, estupro, santa, livre, puta…
E enquanto marchávamos eram entusiasmados os tantos discursos que se sucediam, dizendo sobre socialismo, capitalismo e patriarcado, salários de professores, equalização de salários entre mulheres e homens, 10% do PIB para educação, direitos das prostitutas, creches públicas, estupro, feminismo, Pare Belo Monte!, sexualidade, assistência estudantil nas universidades públicas, vegetarianismo, ambientalismo, Xingu+23; todos os segmentos buscando liames com a luta contra o machismo, reconhecendo e legitimando a marcha. Na vanguarda, as impulsionadoras da marcha eram militantes caracterizadas de Frida Khalo, Dandara, Pagu, Anita Garibaldi, Olga Benário, Iracema, entre muitas outras.
Vivendo por aqui há apenas poucos meses, reflito e ouso compreender esta miscelânea de demandas e organizações. Eu tenho pisado devagar nesse chão, com respeito. Quando cheguei, do Pará sabia apenas lambada, borracha, Amazônia, conflito fundiário, Guerrilha do Araguaia e Doroty Stang. Porém, meus olhos pedintes e observadores já prestam muita atenção em muitas outras coisas. A primeira delas é o fato de a Amazônia não ser o vazio demográfico desabitado que o distanciamento geográfico nos faz crer. E o que enxerguei foram paraenses extenuados de tanto viver neste norte excluído, dominado, esquecido. Que não perdem chances de ocupar as ruas e bradar por justiça, igualdade, liberdade e políticas públicas.
A mim, o Pará é um rico e fascinante paradoxo. De natureza, pessoas, culinária, dança, história, música, chuva, sol, folclore, mitos, lendas. Aqui já escutei histórias sobre icamiabas guerreiras que mutilavam um dos seios para que o arco encaixasse no em seu torso firme e assim pudessem melhor guerrear. Foram intituladas “amazonas” pelos portugueses que relatavam o que viam aqui pelo norte, e eram descritas como livres, independentes e sem maridos, arqueiras primorosas e defensoras da floresta.
Também escutei sobre o boto, cuja existência (controversamente), em alguns casos, também atenua a culpa e estigmatização femininas ao se ter filhos sem pai nos arquipélagos que cortam as baías, apesar de resvalar mais uma vez no labirinto da fragilidade e suscetibilidade das mulheres. Da Matinta Pereira, visagem mulher, bruxa, imponente e assustadora, que fuma tabaco e é respeitada por todos os caboclos da região amazônica. E nada me tira da mente que escutar essas lendas e histórias é fortalecedor para a subjetividade feminina nestas terras, porque de onde eu vim as protagonistas destas narrativas, em geral, morrem de amor, ou se demancham em lágrimas ou morrem espancadas por homens. Mas isso são apenas pressupostos superficiais meus.
Para além destas elucubrações histórico-mitológicas pouco fundamentadas, eu diria que toda a cybermilitância e articulações globais que envolvem a marcha das vadias mobilizaram tantos indivíduos e segmentos sociais neste dia porque todo o Pará anda cansado de tantos anos de ocupação exploratória. De ver o resto do Brasil de costas. De ocupar a quarta colocação no ranking das ocorrências de homicídios femininos, prática que – já não é novidade – não ocorre em vias públicas, mas sim no interior dos lares sacrossantos e imaculados das famílias brasileiras. De ter uma rede de serviços à infância, mulher e família insuficiente e desarticulada. Da Justiça lenta e inócua. De meninas adolescentes em celas com 20 homens.
A Marcha das Vadias de Belém descortinou a mim um Pará de muitas lutas, foi uma mobilização, que apesar de não perder a centralidade de seu propósito, foi locus de agregação, de multiplicidade, e me disse alto que a luta das mulheres pela liberdade tem aliados dispostos a unir esforços e ocupar todos os espaços, discutir tabus, revelar repressões naturalizadas e construir outra sociedade.
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