julho 01, 2012

"Paz na pista (hackeando a metrópole)", por Bruno Cava

PICICA: "Cidadãos do asfalto, na maioria das vezes somos incapazes de perfurar o concreto onipresente, temos a audição sobrecarregada pelo trânsito, o olfato anulado pela poluição, a vista sufocada por outdoors, muros brancos, muros cinzas, por cinzas infinitos sem-sentido. Mas os índios urbanos enxergam mais, assim como os índios amazônicos vêem mais do que um magma verde e barulhento quando estão na mata. Com a viagem intensiva, tudo que é sólido desmancha no ar e a metrópole se revela máquina biopolítica. Os acoplamentos, as nuances, as várias dimensões culturais e naturais em que tudo pode se agenciar: a chuva,o museu, a igreja evangélica, a grama, uma noite de boemia na Lapa, — tudo isso e muito mais galga outra conotação, mais rica e plena de possibilidades, quando se está submerso na floresta urbana na condição de índio. A vida na rua não é só privação e sobrevivência física. A própria lei da sobrevivência adquire uma dimensão social, quando se constata a importância da cooperação e da vigília mútua." 

Paz na pista (hackeando a metrópole)
 
Touro Sentado, chefe Sioux que alucinava diante da civilização branca

Basicamente, o projeto consiste em passar 30 dias na condição de morador de rua no Rio de Janeiro, e escrever a partir da vivência. Desde 7 de junho, Paz Berti partilha das ruas e quebradas cariocas com as dezenas de milhares de pessoas que à noite não vão pra casa dormir. A experiência está sendo relatada em blogue-diário. Fora dos esquemas acadêmicos, os relatos impressionam pela franqueza com que abordam questões como higiene, polícia, sexualidade, sono, crime e malandragem.


Paz é argentino da Patagônia e índio mapuche e passou a vida se deslocando das identidades: estrangeiro, funkeiro (integra a não-banda AnarcoFunk), ator itinerante, “pansexual” e “lateralista”, como se define quando perguntado pela ideologia ou filiação política. Paz também é militante da OcupaRio, participou da Ocupa dos Povos e já chegou a ser recolhido pelo choque de ordem para o abrigo de Antares, a 40 km do centro da cidade.


“Os empregos que existem entre a população de rua são mais  independentes, eles variam entre: reciclagem, na sua maioria de latinhas e papelão; desapropriação de pertences ou roubo e venda dos mesmos; venda de drogas em quantidades menores; prostituição, não existe diferença quantitativa entre homens e mulheres; venda de bebidas, ou “camelôs”; artesanato; pedir dinheiro ou “mangueio”, não existe diferença nenhuma entre mulheres, homens, crianças e idosos. Senão também existe o “trampo” ou “freelance” em inglês como a maioria chama aqui, que significa trabalho momentâneo.” – relato de 16 de junho.


Paz não se tornou morador de rua nesses 30 dias, nem alimenta a pretensão de imitá-los. Ele está vivendo a rua e seus protagonistas, morando nela, modulando a sua percepção a ela, pensando corporalmente com ela e a partir dela. Mesmo porque não existe um perfil exato do morador em situação de rua. Talvez a única medida comum entre as tantas espécies rueiras — artistas, camelôs, punks, dependentes químicos e enorme etc — seja o fato de todos serem vigiados, caçados, humilhados e criminalizados sistematicamente pelas forças da ordem, a polícia e a guarda, inclusos assistentes sociais e psicólogos “oficiais”. Tempos de megaeventos instauram estados de exceção, onde paz e limpeza urbana têm significado o sumiço acima do normal dos rueiros — recolhidos, presos ou simplesmente desaparecidos. Portanto, a medida comum é a resistência, bem como a franja de reexistência em que eles permanentemente se encontram no dia a dia, só para continuar existindo livres.


“Entendo que muitas pessoas moram nas ruas por necessidade, por falta de lar. Mas existe um grande número de moradores de rua que gostam da vida nas ruas.” – relato de 17 de junho.


A imersão de Paz pode ser considerada uma modalidade de xamanismo. Um xamã urbano, um operador dos devires. O xamã é o índio com técnicas e capacidades especiais para transitar entre mundos sem se machucar, para trazer pessoas presas ao plano dos espíritos, para se comunicar com as potências animais, para compreender o segredo das plantas, entre mil possibilidades de entrecruzamentos e hibridações de humano e natureza, espírito e corpo, que ele conhece bem. Nesse sentido, entre papelões e quentinhas, a viagem de Paz é acima de tudo intensiva, para dentro e fora de mundos sobrepostos. Consiste em calibrar a sensibilidade corporal para experimentar a natureza urbana de outros modos. Trata-se de aperceber-se e apossar-se da metrópole viva, além e abaixo (sub!) da organização imposta pela prefeitura, os usos-padrão, o planejamento funcional, a polícia.


“Enquanto isso, a sociedade adota dois conceitos para o morador de rua. Um que os defende, mas acredita que eles não devem estar nas ruas, portanto, bota-os em um lugar de subestimação. Entendo a vulnerabilidade que existe dentro do sistema de vida que leva um morador de rua, sem querer generalizar. Porque é esse tipo de erro que cometemos, a generalização. Nao são todos os moradores de rua iguais, pelo contrário, as razões pela qual moram nas ruas e os jeitos de viverem nela, são muito diversos e amplos” – relato de 18 de junho


Os textos de Paz não contornam os riscos e privações, as neuroses e os castigos da cidade oficial. Não negam o perrengue de, por exemplo, tentar dormir enquanto ratos comem a sua pipoca, ou de acordar diante de botas desconhecidas, de gente impudente que te ameaça com olhares de desprezo. Mas seus textos não deixam passar os bons momentos, a comida que vaza por todos os lados, a camaradagem generalizada, o gozo de “desapropriar” os ricos só para restituir as coisas ao uso comum, a doçura de deitar-se no meio da multidão e adormecer lentamente sob um tapete de estrelas. A rua é suja, feia, fedida, imunda, mas imensa, vívida, múltipla, milionária e puríssima. Tem algo de muito sábio nessa flanerie subdesenvolvida. Disse Wilde: “Todos estamos na sarjeta, mas alguns olham as estrelas”.


Cidadãos do asfalto, na maioria das vezes somos incapazes de perfurar o concreto onipresente, temos a audição sobrecarregada pelo trânsito, o olfato anulado pela poluição, a vista sufocada por outdoors, muros brancos, muros cinzas, por cinzas infinitos sem-sentido. Mas os índios urbanos enxergam mais, assim como os índios amazônicos vêem mais do que um magma verde e barulhento quando estão na mata. Com a viagem intensiva, tudo que é sólido desmancha no ar e a metrópole se revela máquina biopolítica. Os acoplamentos, as nuances, as várias dimensões culturais e naturais em que tudo pode se agenciar: a chuva,o museu, a igreja evangélica, a grama, uma noite de boemia na Lapa, — tudo isso e muito mais galga outra conotação, mais rica e plena de possibilidades, quando se está submerso na floresta urbana na condição de índio. A vida na rua não é só privação e sobrevivência física. A própria lei da sobrevivência adquire uma dimensão social, quando se constata a importância da cooperação e da vigília mútua.


“Chegamos ao que prometia ser um protesto, uma manifestação. Mas que no final foi um desfile de movimentos sociais. Quando chegamos ao lugar, a polícia já estava formada para defender o espaço, os movimentos quiseram recuar e sair do lugar. A repressão nunca chegou, e a resistência tampouco. Novamente a performance da sociedade escondida por trás de movimentos sociais, dos quais estou començando a desacreditar.” – relato de 22 de junho.


Na visceralidade das ruas, não podia ser outra a avaliação de Paz Berti. É curioso como a grande maioria dos movimentos sociais e partidos tem preconceito sobre os rueiros, como se fossem pessoas a conscientizar e “politizar” (esse verbo horrível). Nada pode ser mais político do que o morador em situação de rua. O resistente radical da metrópole. Aquele cuja existência coloca em questão a ordenação do espaço e do tempo, que luta para caminhar, luta para dormir, para comer, para ir ao banheiro, luta para amar! No enfrentamento direto e cotidiano, o índio urbano põe a deriva sobre o planejamento, o teatro sobre a igreja, o viver mesmo sobre o trabalho e a televisão, o comum das relações intensivas no lugar da democracia de shopping e do bem estar de condomínio. Está em jogo uma descolonização profunda da ética e da política, que os movimentos bem poderiam aproveitar. Poderiam também encontrar a rua por si mesmos, a rua dentro deles, seu próprio lado B, seu subdesenvolvimento, seu patoá, seu terceiro mundo. Basta de passeatas à francesa, coletivos obscuros e sonolentas ideologias europeizantes. Uma série de processos subjetivos e objetivos atravessa a metrópole subdesenvolvida e lança as bases de novas-velhas formas de luta e ocupação, coisas que já estão acontecendo a olhos vivos.


Se a flanagem xamânica e intensamente política de Paz Berti ensina algo é que sabemos muito pouco sobre o que verdadeiramente mexe as pessoas, que mobiliza a carga resistente e reexistente em nós, que as faz devir de suas vidinhas formatadas e obedientes, além dos limiares que nós mesmos nos impomos em nossa servidão voluntária a esquemas, trabalhos e códigos. Desaterrar-nos dos esquemas e zonas de conforto, e fazer-nos uma vez mais índios, terra de uma cidade-floresta, de uma overvida que vale a pena ser vivida infinitas vezes e ainda outra vez.
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Blogue do projeto Paz na Pista: http://paznapista.blogspot.com.br

Breve fala sobre xamanismo urbano:


Fonte: Quadrado dos Loucos

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