setembro 01, 2012

"Violeta me habita", por Patricia Rameiro

PICICA: "Violeta me desorganizou, reposicionou meu existir. E, sim, Violeta, também me fustigam com veemência os cenários de um Chile pobre, excluído, invadido, religioso, roubado de si mesmo, cujas canções populares precisavam ser resgatadas com urgência para não serem esquecidas para sempre. O Chile composto de urgências sociais e demasias da natureza. O solo chileno, para onde Violeta quis voltar após seus períodos de tomar distância para se deparar com o resto do mundo e respirar. O Chile que constituía Violeta. Onde vivenciou perdas, dores, alegrias, amores, filhos, músicas, mortes, danças, roupas de retalhos, guerras, ideologias declaradas, negações e seus muitos (des)caminhos percorridos. A vida de qualquer mulher, mas com tantas significações e ressignificações políticas e artísticas, que as expressões desta mesma “qualquer vida” a mim pareceram imensas, extremas e possíveis. Violeta e seu senso de humor cansado. Violeta e sua postura indignada. E sua independência. Violeta e suas letras cheias de pessoalidades, cheias de si mesma." 


Violeta me habita


Confesso (constrangida) que até cerca de dois meses o nome Violeta Parra não me dizia muito além de informações e imagens antigas vistas em revistas de arte, em momentos distraídos. Pelo menos não dizia em termos de detalhes, contextos, nem jeitos de sentir. Eu apenas exercendo o meu lugar de mais uma brasileira que carrega um típico e leve desinteresse por quase tudo que acontece nos países que se encostam em nós, esquecida de mirá-los um pouco mais de perto, me desencontrando especialmente do cone sul.
Até Violeta se apresentar a mim, em diferentes intensidades, me fazendo indagar confusa acerca do acidente que foi esta apresentação tardia. Primeiro através de um show para o qual fui carregada por boas mãos amigas. Show de Tita Parra, uma das netas de Violeta, que transita mundo afora distribuindo a obra da avó e criando a sua própria. O show é doce e lento. Dá uma sensação assustada de um céu feminino de instrumentos musicais e vestidos coloridos. Muita e boa música. Era Violeta chegando até mim. Mas era só o início. Um pouco depois, levada por aquelas mesmas mãos, deparei-me com o filme “Violeta foi para o céu”, de Andrés Wood, que me deixou em silêncio por alguns dias, primeiro um silêncio ininteligível, depois silêncio de esforço de compreender.
Violeta foi ao céu e me levou junto. Descortinou a mim um universo. O seu universo. Imenso, complexo, criativo e intensamente feminino. Violeta se foi a todos os céus. E nem pretendo falar em estética, fotografia, luzes ou cenas de cinema.  Para isso estão aí os críticos, as indicações e premiações do filme, com direito a todos os critérios e parâmetros rigorosos. Tampouco quero exigir a predominância de minha percepção perante qualquer outra.
A mim, qualquer tipo de critério objetivo é escasso e cru diante de tanta beleza. Beleza sim, mesmo o belo pode ser martírio, cinza, dramático, seco, dolorido. Beleza sem limite classificatório. A beleza de Violeta se doer tanto e inteira. Doer-se de amor e de dor. Doer-se de tanto talento. De não caber em si. Ser maior que tudo que olha e não suportar. Violeta transitando por todos os céus possíveis. Extremos. E deixando muitos outros céus por aqui. O céu de suas músicas, suas letras, a arte de tudo que era tocado por ela. O céu das tapeçarias. Do seu olhar nas fotografias. Céu em sua voz e em sua tenda na cordilheira. O céu que é arrancar riso, lágrima, euforia, dor e silêncio em salas de cinema, muitos anos depois, anos de cansaço e pressa. Mesmo assim.
Violeta me desorganizou, reposicionou meu existir. E, sim, Violeta, também me fustigam com veemência os cenários de um Chile pobre, excluído, invadido, religioso, roubado de si mesmo, cujas canções populares precisavam ser resgatadas com urgência para não serem esquecidas para sempre. O Chile composto de urgências sociais e demasias da natureza. O solo chileno, para onde Violeta quis voltar após seus períodos de tomar distância para se deparar com o resto do mundo e respirar. O Chile que constituía Violeta. Onde vivenciou perdas, dores, alegrias, amores, filhos, músicas, mortes, danças, roupas de retalhos, guerras, ideologias declaradas, negações e seus muitos (des)caminhos percorridos. A vida de qualquer mulher, mas com tantas significações e ressignificações políticas e artísticas, que as expressões desta mesma “qualquer vida” a mim pareceram imensas, extremas e possíveis. Violeta e seu senso de humor cansado. Violeta e sua postura indignada. E sua independência. Violeta e suas letras cheias de pessoalidades, cheias de si mesma.
Compreendi “Violeta se fue a los cielos” como uma sugestão apenas, um passeio breve por tudo que foi “Viola”, talvez até um retrato, por isso mesmo, injusto, talvez transbordando incompletudes, talvez incapaz de traduzir a imensidão que foi Violeta. Militante de esquerda, artista plástica, folclorista, crítica, defensora da cultura popular chilena, indignada, amante. Violeta cantando, tocando, compondo, falando, sofrendo, rindo, sendo. E tudo com uma intensidade desconcertante, insana, desorganizadora de si. Então era Violeta desorganizada, delicada e intrépida. Paradoxalmente bela. Obscenamente bela.
O filme nos apresenta Violeta sob o olhar e memória de um de seus filhos, Angel Parra, que escreveu a biografia da mãe. Não tive oportunidade de ler a obra. Mas, ao que parece, aos olhos de seu filho, Violeta era mulher que se lançava em si mesma e nos outros, sem receio nem qualquer instrumento que servisse pra calcular riscos ou alguma medida de ponderação. Percorrendo a pé distâncias quilométricas em busca da sua voz e de antigas canções folclóricas, no interior de Chile. Depois a desbravar o resto do mundo. Com autoconfiança suficiente pra reconhecer, diante de holofotes e de um entrevistador inconveniente, que reconhecia o valor artístico de sua obra e acreditava imensamente na possibilidade de expor no Louvre.
Aos olhos filiais e admirados de Angel, Violeta não se envergonhava da origem indígena, brincava com a ideia de envelhecer, não tinha medo de ensinar e ser ensinada. Forte e enfática, dizia que paixões são frívolas como é se enfeitar para ir a uma festa, no outro dia novamente tudo se enfeia e volta a ser como antes, e por isso, o sentido da vida é o trabalho e a criação, que se aproximam mais de alguma ilusão de permanência. Quem procura sempre alcança, disse Violeta. E “a criação é um pássaro sem plano de voo, que nunca vai voar em linha reta”.
Por aqui, Violeta segue me expandindo, habitando todos os céus e me fazendo construir meus próprios. E eu cito viva e cuidadosa, tantas vezes, o seu nome, como se isso me fizesse mais próxima, mais ela, mais eu, outro jeito de ter sensações, mais Violeta em mim, brotando, brotando, como el musguito en la piedra…

Patricia Rameiro

Feminista do sertão e ocupante da Amazônia. Proprietária de toda a imaginação e das saias coloridas que a condição de aquariana lhe dá direito. Trabalhadora no horário comercial. E escritora de porta de armário e guardanapo de bar em todas as outras horas.

Fonte: Blogueiras Feministas

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