PICICA: "Tudo que é interessante, mas também problemático, no documentário A educação proibida, do
diretor argentino German Doin, aparece de imediato, logo na abertura do
filme. Para tratar do seu tema, de como a instituição escolar,
inventada na modernidade, se tornou um modelo único e hegemônico de
educação, sufocando toda e qualquer outra experiência, o filme opta pela
recuperação de um dos temas mais clássicos da filosofia ocidental, o
mito platônico da caverna."
A educação proibida de German Doin
Tudo que é interessante, mas também problemático, no documentário A educação proibida, do
diretor argentino German Doin, aparece de imediato, logo na abertura do
filme. Para tratar do seu tema, de como a instituição escolar,
inventada na modernidade, se tornou um modelo único e hegemônico de
educação, sufocando toda e qualquer outra experiência, o filme opta pela
recuperação de um dos temas mais clássicos da filosofia ocidental, o
mito platônico da caverna.
O tema é bem conhecido. O filósofo
imagina a situação de um grupo de homens que sempre viveu preso dentro
de uma caverna. Neste local, todos só podem contemplar uma parede
escura, iluminada por uma fraca luminosidade. Esta luz é suficiente
apenas para a projeção de sombras na parede, criando um triste
espetáculo aos pobres homens. Presos nessa caverna, o grupo não possui
nenhum recurso para desvelar a realidade de seu estado, presos assim num
cárcere ilusório. Porém, chega um momento que um desses homens escapa
de sua caverna. Pode, assim, começar a questionar as crenças que sempre
carregou. Esse questionamento possibilita a desconstrução das falsas
ideias que obteve, bem como a formação de novas ideias, positivas e
verdadeiras. O prisioneiro que se libertou pode, então, retornar ao
mundo da caverna e tentar libertar seus antigos companheiros.
Não é necessário explorar em detalhes o
sentido que o mito da caverna ocupa na filosofia platônica, basta
salientar que para além de sua dimensão epistemológica, o mito também é
uma teoria do governo. O conhecimento aparece como a chave para a
libertação, como o motor que orienta a condução de si próprio e dos
outros. Por isso, é tão importante o movimento duplo que encontramos no
interior dessa narrativa. Primeiro, uma dimensão desconstrucionista, na
qual as verdades que comumente aceitamos são questionadas e suspensas.
Segundo, um momento afirmativo, contrário àquela visão confusa e falsa,
capaz de afirmar a verdadeira natureza do mundo. O primeiro movimento
não possibilitaria a construção de um edifício sólido para a orientação
da conduta de si próprio, muito menos a dos outros. É necessário alguma
certeza para tornar operativo todo o dispositivo de governo, para
sustentar a condução das condutas.
Nesse sentido, o documentário argentino
parece, eventualmente, seguir nessa mesma direção e realizar o movimento
duplo da verdade platônica. A comparação, inclusive, é explicitada logo
no início do filme. O sistema escolar é a grande caverna, na qual todos
nós estamos encarcerados desde o alvorecer da modernidade. É lá que
nossas experiências são moldadas e nossa liberdade é sufocada. É lá que
as ilusões nos assaltam e nos impedem de enxergar a verdadeira ordem do
mundo. E é de lá que precisamos escapar, caso desejemos reconquistar
nossa liberdade perdida.
Esse primeiro movimento, a etapa
desconstrucionista, é verdadeiramente interessante. O filme constrói uma
crítica vigorosa do sistema escolar, demonstrando como este está
diretamente relacionado com a formação dos estados modernos, se tornando
um dispositivo central para a disciplinarização da sociedade e para o
governo das condutas individuais. Além disso, o filme defende que o
sistema escolar se transformou num modelo monolítico, sem mudanças e que
impede qualquer outra forma de experiência de aprendizado entre os
indivíduos. Suas regras, regulamentos, sistemas punitivos, métodos de
avaliação e controle se tornaram universais e, por toda parte que
procuremos, o sistema escolar se mostra semelhante e incapaz de se
modificar ou abandonar o modelo institucional já existente. No fundo, a
escola se mostra um espaço desinteressante e desprovido de sentido, como
um grande maquinário que devora a vitalidade dos jovens e se mostra
incapaz de modificar a realidade social. A escola aparece como uma
grande prisão, que destrói qualquer possibilidade de um novo pensamento,
de novas formas de vida.
Essa dimensão desconstrucionista é
acompanhada pelo relato de inúmeros pedagogos, professores, filósofos e
todo tipo de gente interessada na investigação de novas possibilidades
de aprendizagem. Cada um, ao mesmo tempo em que questiona e critica a
instituição escolar existente, defende e relata suas próprias
experiências no campo da educação. É nesse momento que encontramos o
segundo movimento do filme, tal qual o mito platônico, o caminho para a
verdade e para a libertação. As experiências pedagógicas são as mais
diversas, algumas se afastam parcialmente do modelo escolar, mas não
defendem o completo abandono de um ideário escolar, outros já propõem
coisas mais radicais, que dificilmente poderíamos comparar com a ideia
de escola que temos hoje. É nesse momento que o filme começa a revelar o
seu aspecto mais problemático.
Se o tema platônico que abre o filme é
uma questão de perspectiva (existe uma perspectiva falsa e ilusória,
aquela dos prisioneiros da caverna, mas também existe outra perspectiva,
a verdadeira e a libertadora, do para-além da caverna), naturalmente
cairíamos nesse ponto, a busca pela experiência verdadeira e
libertadora, por um novo modelo de educação. Isso, porém, resvalaria no
mesmo dilema criado em volta da instituição escolar moderna, o modelo
hegemônico e único da verdadeira forma de se educar (e por conseguinte,
da melhor forma de se governar a conduta alheia).
Por sorte, o documentário apresenta uma
tensão interna que impede a plena realização desse segundo momento, da
etapa afirmativa da verdade hegemônica. A forma como o documentário é
construído, numa espécie de cacofonia de vozes, na qual cada um defende
um ponto de vista particular, impede a criação de uma síntese
unificadora. Claro, alguns dos depoimentos estão repletos de uma vontade
de verdade, aquela convicção típica que se atinge quando acreditamos
ter a solução perfeita para o problema da educação. Porém, esses
depoimentos são contrapostos com outros, nos quais temos mais dúvidas do
que certezas, que pretendem muito mais suspender nossas convicções do
que afirmar uma nova (e definitiva) forma para substituir a instituição
escolar existente.
Ao final, a multiplicidade de
perspectivas consegue se sobrepor à possibilidade de uma certeza,
afastando qualquer positividade desse discurso documental. Resta apenas a
força desconstrucionista, a clara necessidade de liberar nosso
horizonte de qualquer experiência hegemônica e única, como se fosse
necessário uma abertura do nosso campo de possibilidades e de ação. A
crítica poderosa contra a instituição escolar, uma espécie de
abolicionismo escolar, se transfigura nessa possibilidade de abertura,
de experimentação. Essa preocupação em evitar o discurso da certeza,
inclusive, afasta esse documentário do formato, muito em voga no gênero
dos documentários políticos, de denúncia e desvelamento. O exemplo mais
famoso desse gênero é a produção de Michael Moore, que parece muito mais
a repetição exaustiva de uma certeza definitiva do que um experimento
de investigação visual. Em A educação proibida, essa
experimentação é muito mais presente. Por isso, apesar de algumas falhas
(como toda aquela tediosa e quase infantil encenação da revolta
estudantil ou a repetição um pouco cansativa de algumas falas), esse
documentário ganha um sentido de urgência e de importância. Vale lembrar
que a produção é de livre circulação e compartilhamento e pode ser
encontrada gratuitamente em vários cantos da internet.
Fonte: Ensaios Ababelados
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