novembro 26, 2012

"A educação proibida de German Doin", por Leandro Calbente

PICICA: "Tudo que é interessante, mas também problemático, no documentário A educação proibida, do diretor argentino German Doin, aparece de imediato, logo na abertura do filme. Para tratar do seu tema, de como a instituição escolar, inventada na modernidade, se tornou um modelo único e hegemônico de educação, sufocando toda e qualquer outra experiência, o filme opta pela recuperação de um dos temas mais clássicos da filosofia ocidental, o mito platônico da caverna." 

A educação proibida de German Doin



Tudo que é interessante, mas também problemático, no documentário A educação proibida, do diretor argentino German Doin, aparece de imediato, logo na abertura do filme. Para tratar do seu tema, de como a instituição escolar, inventada na modernidade, se tornou um modelo único e hegemônico de educação, sufocando toda e qualquer outra experiência, o filme opta pela recuperação de um dos temas mais clássicos da filosofia ocidental, o mito platônico da caverna.

O tema é bem conhecido. O filósofo imagina a situação de um grupo de homens que sempre viveu preso dentro de uma caverna.  Neste local, todos só podem contemplar uma parede escura, iluminada por uma fraca luminosidade. Esta luz é suficiente apenas para a projeção de sombras na parede, criando um triste espetáculo aos pobres homens. Presos nessa caverna, o grupo não possui nenhum recurso para desvelar a realidade de seu estado, presos assim num cárcere ilusório. Porém, chega um momento que um desses homens escapa de sua caverna. Pode, assim, começar a questionar as crenças que sempre carregou. Esse questionamento possibilita a desconstrução das falsas ideias que obteve, bem como a formação de novas ideias, positivas e verdadeiras. O prisioneiro que se libertou pode, então, retornar ao mundo da caverna e tentar libertar seus antigos companheiros.

Não é necessário explorar em detalhes o sentido que o mito da caverna ocupa na filosofia platônica, basta salientar que para além de sua dimensão epistemológica, o mito também é uma teoria do governo. O conhecimento aparece como a chave para a libertação, como o motor que orienta a condução de si próprio e dos outros. Por isso, é tão importante o movimento duplo que encontramos no interior dessa narrativa. Primeiro, uma dimensão desconstrucionista, na qual as verdades que comumente aceitamos são questionadas e suspensas. Segundo, um momento afirmativo, contrário àquela visão confusa e falsa, capaz de afirmar a verdadeira natureza do mundo. O primeiro movimento não possibilitaria a construção de um edifício sólido para a orientação da conduta de si próprio, muito menos a dos outros. É necessário alguma certeza para tornar operativo todo o dispositivo de governo, para sustentar a condução das condutas.

Nesse sentido, o documentário argentino parece, eventualmente, seguir nessa mesma direção e realizar o movimento duplo da verdade platônica. A comparação, inclusive, é explicitada logo no início do filme. O sistema escolar é a grande caverna, na qual todos nós estamos encarcerados desde o alvorecer da modernidade. É lá que nossas experiências são moldadas e nossa liberdade é sufocada. É lá que as ilusões nos assaltam e nos impedem de enxergar a verdadeira ordem do mundo. E é de lá que precisamos escapar, caso desejemos reconquistar nossa liberdade perdida.

Esse primeiro movimento, a etapa desconstrucionista, é verdadeiramente interessante. O filme constrói uma crítica vigorosa do sistema escolar, demonstrando como este está diretamente relacionado com a formação dos estados modernos, se tornando um dispositivo central para a disciplinarização da sociedade e para o governo das condutas individuais. Além disso, o filme defende que o sistema escolar se transformou num modelo monolítico, sem mudanças e que impede qualquer outra forma de experiência de aprendizado entre os indivíduos. Suas regras, regulamentos, sistemas punitivos, métodos de avaliação e controle se tornaram universais e, por toda parte que procuremos, o sistema escolar se mostra semelhante e incapaz de se modificar ou abandonar o modelo institucional já existente. No fundo, a escola se mostra um espaço desinteressante e desprovido de sentido, como um grande maquinário que devora a vitalidade dos jovens e se mostra incapaz de modificar a realidade social. A escola aparece como uma grande prisão, que destrói qualquer possibilidade de um novo pensamento, de novas formas de vida.

Essa dimensão desconstrucionista é acompanhada pelo relato de inúmeros pedagogos, professores, filósofos e todo tipo de gente interessada na investigação de novas possibilidades de aprendizagem. Cada um, ao mesmo tempo em que questiona e critica a instituição escolar existente, defende e relata suas próprias experiências no campo da educação. É nesse momento que encontramos o segundo movimento do filme, tal qual o mito platônico, o caminho para a verdade e para a libertação. As experiências pedagógicas são as mais diversas, algumas se afastam parcialmente do modelo escolar, mas não defendem o completo abandono de um ideário escolar, outros já propõem coisas mais radicais, que dificilmente poderíamos comparar com a ideia de escola que temos hoje. É nesse momento que o filme começa a revelar o seu aspecto mais problemático.

Se o tema platônico que abre o filme é uma questão de perspectiva (existe uma perspectiva falsa e ilusória, aquela dos prisioneiros da caverna, mas também existe outra perspectiva, a verdadeira e a libertadora, do para-além da caverna), naturalmente cairíamos nesse ponto, a busca pela experiência verdadeira e libertadora, por um novo modelo de educação. Isso, porém, resvalaria no mesmo dilema criado em volta da instituição escolar moderna, o modelo hegemônico e único da verdadeira forma de se educar (e por conseguinte, da melhor forma de se governar a conduta alheia).

Por sorte, o documentário apresenta uma tensão interna que impede a plena realização desse segundo momento, da etapa afirmativa da verdade hegemônica. A forma como o documentário é construído, numa espécie de cacofonia de vozes, na qual cada um defende um ponto de vista particular, impede a criação de uma síntese unificadora. Claro, alguns dos depoimentos estão repletos de uma vontade de verdade, aquela convicção típica que se atinge quando acreditamos ter a solução perfeita para o problema da educação. Porém, esses depoimentos são contrapostos com outros, nos quais temos mais dúvidas do que certezas, que pretendem muito mais suspender nossas convicções do que afirmar uma nova (e definitiva) forma para substituir a instituição escolar existente.

Ao final, a multiplicidade de perspectivas consegue se sobrepor à possibilidade de uma certeza, afastando qualquer positividade desse discurso documental. Resta apenas a força desconstrucionista, a clara necessidade de liberar nosso horizonte de qualquer experiência hegemônica e única, como se fosse necessário uma abertura do nosso campo de possibilidades e de ação. A crítica poderosa contra a instituição escolar, uma espécie de abolicionismo escolar, se transfigura nessa possibilidade de abertura, de experimentação. Essa preocupação em evitar o discurso da certeza, inclusive, afasta esse documentário do formato, muito em voga no gênero dos documentários políticos, de denúncia e desvelamento. O exemplo mais famoso desse gênero é a produção de Michael Moore, que parece muito mais a repetição exaustiva de uma certeza definitiva do que um experimento de investigação visual. Em A educação proibida, essa experimentação é muito mais presente. Por isso, apesar de algumas falhas (como toda aquela tediosa e quase infantil encenação da revolta estudantil ou a repetição um pouco cansativa de algumas falas), esse documentário ganha um sentido de urgência e de importância. Vale lembrar que a produção é de livre circulação e compartilhamento e pode ser encontrada gratuitamente em vários cantos da internet.

Fonte: Ensaios Ababelados

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