novembro 26, 2012

"Como Woody Allen explicaria a teoria do domínio do fato", por André Karam Trindade

PICICA: "O episódio promovido pela Folha de São Paulo acerca da (in)devida aplicação da teoria do domínio do fato, de Claus Roxin — e, aqui, não adentrarei na discussão ideológica —, pode ser considerado, seguramente, um dos maiores micos jornalísticos dos últimos tempos. Mais do que isso: trata-se de um mico da doutrina penal nacional.
Isto porque, na verdade, o principal recado que Roxin deixou na resposta enviada por seus alunos é que ele “não está em condições de afirmar se os fundamentos da decisão são ou não corretos, sendo esta uma tarefa que incumbe, primariamente, à ciência do Direito Penal brasileira”. No fundo, foi uma maneira educada de dizer: “Vocês não têm uma doutrina, não têm professores, não têm juristas, não têm alguém que possa desenvolver suas próprias ideias e tirar suas próprias conclusões?”
O que poderíamos responderíamos a isso? Que temos uma “doutrina” que está preocupada apenas em “esquematizar”, “platificar” e “simplificar” o Direito? Que temos professores, sim, mas eles se dedicam a ensinar macetes para a aprovação em concursos? Que ainda temos juristas, mas eles andam tão acostumados a repetir o que dizem os tribunais que quando é caso de se questionar sobre a adequação da atuação de uma Corte Suprema, a sua ciência se mostra insuficiente?" 

DIÁRIO DE CLASSE

Como Woody Allen explicaria a teoria do domínio do fato

 

Em Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), há uma cena (assista aqui) em que Woddy Allen e Diane Keaton aguardam na fila do cinema. Atrás deles, há um sujeito daqueles inconvenientes que fala alto, compulsivamente, como se fosse um grande especialista, uma espécie de crítico-geral, conhecedor de todos os assuntos. Em poucas frases de efeito, ele consegue criticar Fellini, citar seus filmes, compará-lo com Samuel Beckett, invocar a questão das visões de mundo e concluir que tudo é influência da televisão, referindo a teoria do filósofo canadense Marshall McLuhan, famoso por ter elaborado a ideia de “aldeia global”. Tudo isto para exibir sua “cultura” à sua acompanhante e a todas as pessoas da fila.
Alllen não aguenta tanto pedantismo e passa a discutir com o sujeito. E joga-lhe na cara que, na verdade, ele não faz ideia do que Marshall McLuhan diz.
“Ah é?”, responde o chato. “Por acaso dou uma disciplina na Universidade de Columbia chamada TV, Mídia e Cultura. E acho que minhas ideias sobre o prof. McLuhan têm grande validade.”
“Você acha? Engraçado, pois eu tenho o prof. McLuhan bem aqui”, replica Allen, que então busca o filósofo em pessoa (que estava escondido atrás de um cartaz) e o traz à cena para esclarecer a situação.
“Ouvi o que disse”, diz McLuhan ao pedante, “você não sabe nada sobre meu trabalho. Considera que toda a minha falácia está errada. É incrível como deixaram você dar aula de alguma coisa”.
Depois de ganhar a disputa, Allen olha, então, para a câmera — isto é, para nós — e diz: “Se a vida fosse fácil assim...”
Tal cena vem ao caso em razão da discussão em torno da aplicação da teoria do domínio do fato Supremo Tribunal Federal durante o julgamento do processo do mensalão. Todo mundo sabe que essa teoria foi fundamental na determinação da autoria de crimes por personagens importantes do escândalo. E todos sabem também que o seu principal teórico foi o jurista alemão Claus Roxin.
Desde então, discutia-se se a tese de Roxin teria sido bem ou mal interpretada pelo Supremo. Alguns diziam que a teoria era adequada e consistente para os fatos; outros, que ela foi invocada de forma casuística e distorcida, para justificar condenações sem provas e satisfazer o clamor punitivo da população e/ou da imprensa.
Foi então que estes últimos produziram um “momento Woody Allen no Direito”: invocaram, como argumento infalível de autoridade, as palavras do próprio jurista alemão, supostamente dizendo que a teoria do domínio do fato fora mal aplicada no caso do mensalão.
Com efeito, na semana passada (11/11), a Folha de São Paulo publicou entrevista com Roxin (leiaaqui), que esteve no Rio de Janeiro, onde participou de um importante evento internacional. Na redação da reportagem, deu-se a entender que o jurista estava a par do julgamento e que contestara a aplicação que o Supremo Tribunal Federal deu à sua doutrina.
Logo em seguida, órgãos de imprensa anunciaram que a defesa de José Dirceu procuraria obter parecer do próprio Roxin para fundamentar um recurso a ser interposto contra a condenação. Tudo isto como se Roxin fosse dirigir-se à Suprema Corte brasileira da mesma maneira que McLuhan fez com o chato: “Você não sabe nada sobre a teoria do domínio do fato. É incrível como deixaram você julgar alguma coisa.”
O único problema é que, após a publicação da entrevista e sua circulação nos principais veículos de comunicação do país, o emérito penalista alemão, através de seus alunos brasileiros — os professores Luís Greco, Alaor Leite e Augusto Assis —, emitiu uma nota (leia aqui), a fim de esclarecer ao público os equívocos divulgados pela Folha de São Paulo.
Conforme alerta Roxin, as respostas concedidas aos entrevistadores referiam-se apenas a aspectos gerais da teoria do domínio do fato por ele formulada em décadas de estudos. Todavia, para sua surpresa e desgosto, as respostas divulgadas foram transformadas em uma manifestação concreta sobre a aplicação de sua teoria ao caso do mensalão.
Primeiro: de início, Roxin adverte acerca da imprecisão do título conferido à notícia — “Participação no comando do mensalão tem de ser provada, diz jurista” — que se mostra ambíguo, pois sugere que sua manifestação se referisse ao processo julgado pelo Supremo Tribunal Federal, o que não é verdade.
Segundo: o renomado penalista recusa a autoria de frase, a ele atribuída na matéria — onde consta “Roxin diz que essa decisão precisa ser provada, não basta que haja indícios de que ela possa ter ocorrido” —, cujo teor entende, inclusive, ser juridicamente duvidoso. Além disso, esclarece que a última declaração divulgada na entrevista (acerca da necessária independência dos juízes diante da opinião pública) foi posta fora de contexto, dando a entender que a integridade do Supremo Tribunal Federal estaria comprometida no caso do julgamento do mensalão. Na verdade, a resposta de Roxin era a uma pergunta que lhe fora dirigida pelo professor Grandinetti, que lhe pediu para deixar uma mensagem aos futuros juízes, pois o evento ocorria na Escola da Magistratura.
Terceiro: como se isto não bastasse, o professor de Munique nega que tenha manifestado qualquer “interesse em assessorar defesa de Dirceu”. A fim de que não restem quaisquer dúvidas, Roxin declara, expressamente, que não foi procurado pelos réus ou seus representantes. Registra, ainda, que tampouco tem qualquer interesse em participar do processo e que se recusaria a emitir um parecer sobre o caso, que sequer conhece por completo e sobre o qual não tem nenhum interesse científico.
Como se sabe, no campo da ciência do Direito e, igualmente, da legislação, sofremos com o modo como importamos teorias e institutos jurídicos dos Estados Unidos e, sobretudo, da Europa sem os cuidados necessários e adaptações exigidas à realidade brasileira. Se a independência separou, politicamente, a colônia da metrópole, isto permanece válido nos dias de hoje. Ainda somos reféns de uma cultura eurocentrista.
Desde o poder moderador em pleno constitucionalismo liberal, passando pelo controle difuso de constitucionalidade das leis sem o efeito vinculante, pelas noções de cláusulas gerais, normas programáticas e reserva do possível, até a tendência neoconstitucionalista e a propagada teoria jurídica de Robert Alexy — que defende o uso da ponderação como técnica a ser empregada diante da colisão de princípios —, são cada vez mais recorrentes as apropriações teóricas indevidas que são feitas em terrae brasilis.
Nesta mesma linha, inúmeros são os exemplos dos “argumentos de autoridade” invocados, frequentemente, para legitimar políticas públicas, decisões judiciais, teses e dissertações acadêmicas, etc.
O episódio promovido pela Folha de São Paulo acerca da (in)devida aplicação da teoria do domínio do fato, de Claus Roxin — e, aqui, não adentrarei na discussão ideológica —, pode ser considerado, seguramente, um dos maiores micos jornalísticos dos últimos tempos. Mais do que isso: trata-se de um mico da doutrina penal nacional.
Isto porque, na verdade, o principal recado que Roxin deixou na resposta enviada por seus alunos é que ele “não está em condições de afirmar se os fundamentos da decisão são ou não corretos, sendo esta uma tarefa que incumbe, primariamente, à ciência do Direito Penal brasileira”. No fundo, foi uma maneira educada de dizer: “Vocês não têm uma doutrina, não têm professores, não têm juristas, não têm alguém que possa desenvolver suas próprias ideias e tirar suas próprias conclusões?”
O que poderíamos responderíamos a isso? Que temos uma “doutrina” que está preocupada apenas em “esquematizar”, “platificar” e “simplificar” o Direito? Que temos professores, sim, mas eles se dedicam a ensinar macetes para a aprovação em concursos? Que ainda temos juristas, mas eles andam tão acostumados a repetir o que dizem os tribunais que quando é caso de se questionar sobre a adequação da atuação de uma Corte Suprema, a sua ciência se mostra insuficiente?
Em suma: temos problemas, uma porção deles, por sinal. E só cabe a nós resolvê-los. De nada adianta esperar pela intervenção ex machina de um jurista estrangeiro. No máximo ele nos constrangerá a perceber que a vida simplesmente não é tão fácil assim...

André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 24 de novembro de 2012
Fonte: Consultor Jurídico

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