PICICA: "Essa leitura da crise, contudo, trazida para o contexto da América do
Sul, deve ser retrabalhada. O ciclo constituinte dos anos 2000 ainda
não está encerrado. A leitura da crise precisa ser redimensionada
segundo a história de lutas do subcontinente, que desaguaram em governos
com composições mais politicamente interessantes, especialmente no eixo
Bolívia, Argentina, Equador e Brasil. Nesses países, pelo menos, houve a
transposição da potência constituinte das lutas em políticas
governamentais que passam, em alguma medida, por instituições
representativas. Este fato, no plano da análise, deve levar a uma
apreensão mais nuançada das recusas e indignações, de maneira a não
perder a imprescindível determinação material do antagonismo, a única
que o torna potente, expansivo e produtivo. Ainda conforme os distintos
níveis da falência da representação, cabe pesquisar como essa crise está
situada quanto à relação entre a representação estatal e certas
políticas governamentais, bem como entre governo e movimentos.
Destacam-se, por exemplo, como políticas que abriram elementos de
autonomia, o amplo acesso de contingentes significativos da população
brasileira à renda e consumo (bolsa família, ampliação do salário
mínimo) , o acesso de negros e índios às universidades, programas de
massificação do investimento social, em favelas, regiões muito pobres e
eletrificação rural."
Conversa com Sandro Mezzadra
22/11/2012
Por Bruno Cava
Ontem, aconteceu no Rio um encontro entre ativistas da Universidade Nômade no Brasil, alguns convidados, e o professor da Universidade de Bologna e militante da Universidade Nômade na Itália, Sandro Mezzadra. A conversa durou mais de quatro horas, com várias intervenções e debates, entrando em vários temas. Neste apanhado, longe de querer oferecer um resumo objetivo ou exaurir a riqueza das colocações, apresento algumas percepções pessoais e bastante sintéticas do que foi tratado.
Por Bruno Cava
Foi discutida a situação presente das lutas na Europa. A representação na Europa sofre uma crise em vários níveis. Uma crise, em primeiro lugar, de confiança das pessoas em relação às instituições representativas, como incapazes de representá-las, de acordo com qualquer noção de interesse geral. Segundo, a incapacidade de a democracia representativa na Europa afirmar efetivamente algum vetor democrático, e muito menos inovador, diante de um sistema financeiro encarnado nas instâncias de poder, uma governance financeirizada, encabeçada pela tróika: Comissão Europeia (CE), Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI). Esse triunvirato capitalista determina as condições mais graves da crise no sul da Europa, na Grécia, Portugal, Espanha e Itália, bem como na França e Irlanda. O que, como resposta das mobilizações, implica adotar uma recusa forte a todas as tentativas de impor soluções e medidas from top down, à continuidade dessa “revolução desde acima”, uma que impõe a socialização das perdas sob o eufemismo “austeridade”.
Essa recusa se manifesta, inclusive, quanto ao processo de constituição da União Européia, que tem se mostrado uma articulação meramente internacional dos estados ao redor do consenso financeiro, invariavelmente conservadora hoje. Isto significa, também, o deslocamento de um posicionamento da luta no sentido “dentro e contra”, como se pretendia há algum tempo, para assumir uma recusa radical de qualquer negociação e/ou tentativa de atravessamento pelos mecanismos representativos existentes, na sua dupla dimensão público/privada. Não há lugar, segundo o diagnóstico, ainda, para a tentativa de inventar um partido de tipo novo, nem apostar as fichas numa redentora “assembleia constituinte”, cuja composição hoje, necessariamente representativa, acabaria revertendo para o mesmo receituário da austeridade, com potencial, ainda, de absorver parte da xenofobia e paranoia incitadas pela direita europeia. Somente o ciclo constituinte de lutas, a sua radicalização e aprofundamento, podem recolocar os termos do problema europeu segundo as forças vivas do trabalho e a nova composição política de classe, neste começo do século 21. Essa viravolta constituinte depende, sobretudo, de um emassamento das lutas políticas por fora da representação. A crise só encontra saída no seu próprio alastramento, possivelmente com uma “pequena catástrofe”, possivelmente com a queda simultânea de dois governos que estejam submetidos à troika, diante da catástrofe cotidiana e diluída do capitalismo.
Essa leitura da crise, contudo, trazida para o contexto da América do Sul, deve ser retrabalhada. O ciclo constituinte dos anos 2000 ainda não está encerrado. A leitura da crise precisa ser redimensionada segundo a história de lutas do subcontinente, que desaguaram em governos com composições mais politicamente interessantes, especialmente no eixo Bolívia, Argentina, Equador e Brasil. Nesses países, pelo menos, houve a transposição da potência constituinte das lutas em políticas governamentais que passam, em alguma medida, por instituições representativas. Este fato, no plano da análise, deve levar a uma apreensão mais nuançada das recusas e indignações, de maneira a não perder a imprescindível determinação material do antagonismo, a única que o torna potente, expansivo e produtivo. Ainda conforme os distintos níveis da falência da representação, cabe pesquisar como essa crise está situada quanto à relação entre a representação estatal e certas políticas governamentais, bem como entre governo e movimentos. Destacam-se, por exemplo, como políticas que abriram elementos de autonomia, o amplo acesso de contingentes significativos da população brasileira à renda e consumo (bolsa família, ampliação do salário mínimo) , o acesso de negros e índios às universidades, programas de massificação do investimento social, em favelas, regiões muito pobres e eletrificação rural.
Nesse sentido, podem-se interrogar se os efeitos da crise global reforçam uma posição de radicalização da recusa, ou de tentativa de re-determiná-la segundo as positividades entre expressão e representação. A positividade construtiva do movimento, aqui, está da mesma forma inteiramente determinada materialmente por fora das estruturas e mediações? Onde estão os pontos de acoplamento, de tendencial conexão ou desconexão? A reapropriação, como contraefeito do empoderamento dos pobres, confere bases materiais para a recusa forte? Neste contexto, podem-se reconhecer, como hipótese de trabalho ao menos, ainda atravessamentos entre a expressão dos muitos, seus efeitos constituintes e de reapropriação, com as estruturas representativas? Se a resposta é sim, com todos os considerandos; isto implica, de imediato, a tarefa militante de mapear e copesquisar (autonomia + organização) os pontos em que acontecem os antagonismos, as reinvenções e as mudanças de direção, inclusive por dentro dessas estruturas. Esta pesquisap pode começar pela dinâmica partidária (especialmente, o PT), e outros governos parcial ou minoritariamente atravessados, ainda que como momentum decorrente de um ciclo anterior, pela face potente do lulismo.
Há uma disputa por dentro do próprio lulismo, — abertura versus fechamento dessas frinchas, por onde ainda passa a expressão e a imaginação real das lutas. Essa disputa adota como terreno, sem dúvida, o grande circo reacionário-midiático montado ao redor do “mensalão”, um ponto nodal da disputa entre os vetores por dentro da representação no Brasil, o debate sobre a judicialização da política e o neoconstitucionalismo conservador. Outros casos fundamentais, para a análise, estão nas eleições e agora mandatos, a) francamente de fechamento, com Paes e a aliança PT-PMDB-cidade-empreiteira, no Rio, onde o PT dirige o trator e outras forças partidárias têm sido incapazes de alcançar efeito de escala junto à composição do trabalho; e b) tendencialmente de abertura, com Haddad, em São Paulo; bem como análise dos fluxos e contrafluxos no MinC, com Ana de Hollanda e Marta Suplicy, enquanto lugar de disputa por dentro da representação de políticas inovadoras disparadas pelo governo Lula e o ministro Gilberto Gil.
Ainda como reposicionamento do debate, valem copesquisar as novas condições do trabalho vivo e sua composição política depois de 10 ou 15 anos de profunda mudança da sociedade brasileira e, em maior extensão, sul-americana. Quer dizer, da perspectiva das transformações das forças produtivas, não é mais possível reeditar formas e diagnósticos de décadas atrás, quando a luta contra o neoliberalismo e o Consenso de Washington, com sua retórica que opõe o público ao privado e o estado ao mercado. Faz-se necessário dirigir as lentes sobre novos processos de positividade e produção de subjetividade, de modo a captar as novas coordenadas da luta e sua contratendência, inclusive enquanto expressão de um estado global de mobilização.
Como terceiro ponto, bastante discutido, está a crítica às indústrias criativas e ao digitalismo. Pelo primeiro termo, refere-se à tentativa de capturar a profunda transformação do trabalho vivo, no começo deste século, como apenas uma nova segmentação de mercado, como abertura para novos potenciais de exploração do precariado e a valorização do capital. Nesse sentido, a criatividade e a cultura deixam de ser componente fundamental da composição política de classe, para se tornar mera jazida de ouro, para uma nova fase da acumulação capitalista. Esse processo de captura passa por uma tradução das fontes vivas da criatividade, isto é, a metrópole como usina, seus fluxos, suas redes e sua imanência de raças e bacias de autonomia, uma tradução disso tudo como produtos vendáveis, marcas apropriáveis, propriedade intelectual e copyright ou, enfim, produtividade difusa a ser posta para trabalhar, no mais modernoso parasitismo 2.0 e horizontal.
Pelo segundo termo, a ideia que bastariam ampliar as redes e tecnologias sociais, a informação como sem rivais, para que a associação humana universal se impuser por si própria, como rendimento utópico de um processo comunicativo tendencialmente agregador. Essa mistificação opera do lado de um novo “liberalismo horizontal”, que conjuga free market e free work, e acaba negando a conflitividade e a produtividade próprias de uma política de composição, do lado do poder constituinte. Isto significa, uma vez mais, a repetição de um discurso deslumbrado das divisões reais que são a própria sociedade capitalista; assim como uma sideração das lutas que aprofundem a crise como antagonismo entre trabalho vivo e capitalismo cognitivo.
É preciso, portanto, “contratraduzir” a metrificação e captura operadas pela valorização capitalista do que é o próprio núcleo da ontologia constituinte hoje. Desafiar toda a gramática liberal das indústrias criativas, do empreendorismo e da “rede de redes” parasitárias. Menos do que dizer que tudo seja cultural, deslegitimando a política por dentro da malha produtiva; o caso talvez seja reconhecer a cultura como ponto de vista transformador e qualificador da própria política, recolocando toda a problemática da tensão entre expressão e representação, quer dizer, a criatividade difusa da cultura dos muitos, dos territórios produtivos que já produzem e criam o mundo, como uma perspectiva que nega o universalismo do mercado e a primazia da economia política clássica e neoclássica na base dos digitalismos e “neoliberalismos cognitivos”, ou seja, uma perspectiva de classe nos termos do capitalismo cognitivo hoje.
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