PICICA: "Mesmo na aparente polaridade
entre os que defendem o manicômio e os que abraçaram a causa
antimanicomial, em suas franjas é que estão sendo construídas as novas relações
entre a sociedade e a loucura. Os agentes mais conservadores, incrustados no
poder, têem de enfrentar a onda dos novos protagonistas que criaram redes
e fluxos para a loucura na sociedade dos dias de hoje. Nesse antagonismo,
convivemos com o arcaico que não quer mudanças na cultura, e o novo que já se
faz presente produzindo novas culturas."
Orestes Entrevista Rogelio Casado
Rogelio
Casado
é o exemplo perfeito do ativista social.
Inquieto constante, este cidadão (beirando
os sessenta anos de idade) é Graduado em Medicina, com Residência Médica em
Psiquiatria, especialização em saúde mental, militante de Direitos Humanos e da
luta por uma sociedade sem manicômios. Fundador de Rede de Amizade & Solidariedade às Pessoas com HIV/AIDS e da
Associação Chico Inácio, filiada à Rede
Nacional Inter Núcleos da Luta Antimanicomial, entidade de apoio aos
direitos civis e políticos dos usuários dos serviços públicos de saúde mental
de Manaus. Foi Diretor Clínico do Hospital
Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, Diretor Geral do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Manaus,
Coordenador de Saúde Mental do Estado do Amazonas e Pró-Reitor de Extensão e
Assuntos Comunitários da Universidade do
Estado do Amazonas. Atualmente é
Coordenador Técnico do Projeto Nós &
Voz, de inclusão social de pessoas com transtorno mental. Em suas horas vagas ainda consegue tempo pra
tocar gaita. Cedeu gentilmente esta
entrevista para o blog Orestes.
Orestes:
Como seria possível a extinção dos manicômios?
Rogélio
Casado: A
extinção dos manicômios faz parte de um processo civilizatório. Assim como eles nasceram com a Revolução
Francesa e foram se firmando em todos os continentes, retirando de circulação
das ruas os "loucos de todos os gêneros" (expressão consagrada pelo discurso médico jurídico), a partir da II
Guerra Mundial foi iniciado o processo "de volta para casa",
expressão que ganharia maior visibilidade com a construção da reforma
psiquiátrica iniciada na Itália no início dos anos 1960, consagrada na Lei 180,
de 1978 - lei que extinguia os hospícios italianos, e ganharia dimensão de
movimento social no Brasil com a denominação de Luta Por Uma Sociedade Sem
Manicômios, cujo êxito é marcado por dois eventos importantes: a Lei de Saúde
Mental, de 6 de abril de 2011, que substitui o hospício por uma rede de
serviços de atenção psicossocial, e o fechamento de 50 mil leitos psiquiátricos,
dos 80 mil existentes, números existentes até quase o final dos anos 1980. O
fechamento dos hospícios não se deu por uma canetada, mas pela reconversão dos
recursos humanos que ali trabalhavam, de modo a operar com novos conceitos e
novas prática, em que a liberdade ganhou estatuto terapêutico. Um dos maiores
desafios atuais é relativo à formação de novos cuidadores em saúde mental (conceito
que causa espécie nas categorias profissionais que não querem abrir mão do
status e das relações de poder). A maior parte do aparelho formador ainda é
muito conservador.
O carismático ativista social Rogelio Casado |
O.: Quais as
vantagens de uma sociedade sem manicômios?
R.C.: Nos lugares onde o discurso e a
prática da liberdade como instrumento terapêutico foram adotados, a mudança
cultural na relação entre a sociedade e a loucura pôs abaixo alguns pilares da
psiquiatria conservadora, como o controle social a ela delegada desde que a
loucura foi capturada pelo discurso médico; o começo do fim da apropriação da
loucura como objeto exclusivo de um saber e de uma prática especializada; o
deslocamento das imagens da loucuras veiculadas pelo senso comum, que era
alimentado pela construção da suposta noção científica da "doença
mental"; uma nova reflexão social sobre a loucura como um dado universal
da condição e da experiência humana, sem a qual o humano é mutilado em sua
subjetividade; uma profunda revisão das rejeições e assimilações das concepções
elaboradas pelo saber médico hegemônico, a partir das idéias e
vivências leigas expressas pela loucura. Não é pouca coisa para um processo
que, no Brasil tem pouco menos de 25 anos de existência.
O.: Quanto iríamos
economizar sem manicômios e quais os
investimentos que necessitaríamos para isso?
R.C.: O pesado modelo manicomial, que
convive com a nova rede de atenção psicossocial no país (em Manaus, neste ano de 2012 inicia-se o processo de fechamento do
hospício estadual), com seus 30 mil leitos, envolve uma bagatela de meio
bilhão de reais. Com o fechamento do manicômio e a instalação de uma rede de
serviços diários de atenção psicossocial, além da redução dos custos
economizaríamos em sofrimento, estancaríamos o processo de destruição da
cidadania dos loucos, e poríamos fim ao abandono do Estado sobre o futuro dos
loucos em nossas cidades, mediante novas políticas de saúde mental.
O.: Dê exemplos de
sucesso nesse tipo de programa.
R.C.: Dois municípios brasileiros se
distinguem no novo modelo de atenção à saúde mental que privilegia ações no
território onde os loucos circulam, tendo com referência a liberdade
terapêutica: Belo Horizonte e Porto Alegre. Ambas criaram uma rede de serviços de
atenção psicossocial para problemas mentais graves e persistentes, tanto para
adultos como para crianças, incluindo aí as autistas; rede de serviços para
abusadores de álcool e outras drogas; serviços residenciais para egressos dos
manicômios; leitos psiquiátricos em hospitais gerais para internação de curto
prazo, centros de convivência em que se oferecem programas de geração de renda,
lazer e arte. As legislações em saúde mental dos seus respectivos estados são
exemplos inspiradores para todo o país. Ressalte-se que essa rede ainda padece
de uma questão ainda não superada no país: a falta de recursos e investimentos
que atravessa todo o setor de saúde do país. Nesse sentido, os investimentos
dos Estados e dos municípios só conseguem ser mais generosos, quando
administrados por partidos "vermelhos", comprometidos com as causas
populares.
O.: O que nossa
sociedade precisa pra alcançar esse nível?
R.C.: Entendo que a relação entre
sociedade e loucura depende da cultura da época. No caso brasileiro, vale
lembrar que as mudanças de mentalidade tiveram como pano de fundo o
enfrentamento com a ditadura militar. Vários segmentos organizados estavam em
luta pela redemocratização do país. Mesmo que a explosão de ideias tenha sido
avassaladora, e mesmo diante das tentativas de contê-la pelos segmentos
conservadores que dominaram parte das nossas instituições, ainda assim o fluxo
inexorável da vida e da cultura dos novos tempos dão conta de que estamos no
final de um processo civilizatório. A nova civilização vem dando sinais por aí.
Nenhuma sociedade que se preza pode esconder seus loucos. Não há espaço para
retrocesso.
O.: Porque este
assunto ainda é tratado com tanto descaso pelo poder público?
R.C.: Mesmo na aparente polaridade
entre os que defendem o manicômio e os que abraçaram a causa
antimanicomial, em suas franjas é que estão sendo construídas as novas relações
entre a sociedade e a loucura. Os agentes mais conservadores, incrustados no
poder, têem de enfrentar a onda dos novos protagonistas que criaram redes
e fluxos para a loucura na sociedade dos dias de hoje. Nesse antagonismo,
convivemos com o arcaico que não quer mudanças na cultura, e o novo que já se
faz presente produzindo novas culturas.
O.: Existe vontade
pública ou privada para efetivar uma sociedade sem manicômios?
R.C.: Do privado queremos distância.
No público temos gestores comprometidos com os novos paradigmas em saúde
mental, por um inequívoco compromisso com as demandas da sociedade civil
organizada.
O.: Pra onde iriam os
enfermos que não têem mais famílias?
R.C.: Está em funcionamento no país,
fruto da nova política de saúde mental, o programa De Volta Para Casa. Trata-se
de um programa com investimentos para aparelhar uma casa, bem como a
contratação de "cuidadores em
saúde mental" para ajudar na construção da rotina dos moradores.
O.: Que outras
frentes sociais Rogelio Casado toma parte?
R.C.: Além dos Direitos Humanos, onde
está contida a luta Por Uma Sociedade Sem Manicômios, atuo no Movimento
Socioambiental.
O.: Deixe seus
contatos e um recado para este blog.
R.C.: Um grande forte
abraço. Endereço para contato: http://rogeliocasado.blogspot.com.br/; http://www.facebook.com/rogeliocasado;http://twittercounter.com/rogeliocasado
Fonte: Mário Orestes
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