PICICA: Quando assumi a direção do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, pelo qual respondi entre 1998 até o início do ano 2000, levado pelas mãos do estimado amigo Felix Valois, então Secretario de Justiça e Cidadania do governo Amazonino Mendes, o Conselho Regional de Medicina concluira uma sindicância sobre as condições oferecidas para o tratamento das pessoas com transtorno mental (conceito que contém uma impropriedade a ser questionada) que cometeram crimes e foram submetidas à aplicação de medidas de segurança, conforme a Lei de Execução Penal. Vale ressaltar que o CRM realizou a primeira e única sindicância naquele nosocômio quando este ainda não completara dez anos de existência, e já acumulava uma série de irregularidades. Basta dizer que as Medidas de Segurança - vigentes à época -, que previa a reclusão do infrator por um ano a três anos de tratamento, repetiam o modelo nacional até então em vigor, ou seja, a "pena" se estendia indevidamente ao longo dos anos. Embora os leitos fossem ocupados por menos de uma dúzia de pessoas com transtorno mental, os laudos realizados a cada ano continham uma particularidade assustadora: mudavam as datas, mas a evolução do quadro dos usuários não continha uma mudança sequer. O que é mais mórbido nessa história é que o mesmo texto utilizado no início dos anos 1990, ao final daquela década nenhuma vírgula sequer fora alterada. O descaso com o futuro dos internos do HCTP encontra raízes culturais na história da relação dessas instituições com a sociedade do seu tempo. São quase trezentos anos de indiferença. É igualmente merecedor de registro o fato que naquela época, todos os setores do campo da saúde mental ignoravam a existência do significado e da prática dos serviços substitutivos ao manicômio, o que demonstra os desvios do processo da reforma psiquiátrica iniciada nos anos 1980. A estagnação da reforma psiquiátrica em Manaus atavessaria o final do século XX. Só em 2003 retomaríamos o rumo da sua história. Não me recordo se o relatório final condenava aquele arremedo de hospital improvisado por sobre uma velha delegacia, fruto de uma pseudo-arquitetura conhecida por aqui como "puxadinho". Tampouco posso afirmar que fui o primeiro psiquiatra a por os pés naquela instituição. Certamente, além de ter sido o segundo, fui o mais assíduo. Tem sido notório o fato que os horrores dos manicômios judiciais tem contado com ampla cumplicidade da categoria. Diante do impasse provocado pela sordidez que costuma se abrigar em alguns serviços públicos, em especial a de um funcionário que levianamente me indispusera com os presos comuns da penitenciária que faziam tratamento de saúde no HCTP, ao disseminar a falsa informação de que o diretor do hospital vinha jogando medicamentos no lixo, e diante da proteção indevida dada por uma graduada funcionária ao autor do boataria, o que punha em risco minha vida, resolvi sair às vésperas de uma viagem ao Paraná, estado cujo HCTP era tido como um dos melhores do país. Em nenhum momento o secretário de governo referendou o apoio gracioso, tanto que procedeu à exoneração da funcionária e acatou meu pedido irrevogável de demissão. Esse depoimento vem emoldurar a situação atual dos HCTP brasileiros, objeto de pauta no Conselho Nacional de Justiça. O governo amazonense do período supracitado pretendia fazer um novo HCTP. Não o fez. Até hoje continua do mesmo jeito, salvo nas reformas que ali procedi, fruto de um convênio com a Secretaria Municipal de Saúde, resultando em novo azulejamento nas dependências internas do hospital; aumento do pé direito da cozinha e a instalação de uma coifa; nova cobertura do telhado com telhas de barro; construção de um depósito de lixo, que era despejado a céu aberto na frente do hospital, atraindo ratos, mucuras e urubus; novas instalações para a prática de terapia ocupacional, lazer e visita dos familiares; e, finalmente, um pequeno projeto de reabilitação psicossocial através da criação de 150 cabeças de patos e galinhas. Ficou encaminhado o processo de desinternação dos internos. Sem o suporte de uma rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), bem como a ausência de Serviços Residenciais Terapêuticos, o retorno dos internos à sociedade tinha tudo para fracassar, como de fato aconteceu. Passados mais de dez anos, até hoje o quadro continua inalterado. O HCTP está no mesmo lugar; apenas três CAPS (dois para adultos e um para crianças) fazem parte da paisagem da cidade; e não há uma residência terapêutica (uma espécie de lar abrigado) funcionando. O setor ainda não é prioridade das políticas públicas. O fechamento do hospício público, p.ex., está mais para o cumprimento da agenda da Copa do Mundo do que para o compromisso do calendário das ações de políticas aprovadas pelo Conselho Estadual de Saúde em 2003. Até recentemente, por falta de conhecimeno da Lei 10.216, de 6 de Abril de 2001, os operadores do direito ignorando o que ali está disposto como princípios e diretrizes, face à "superlotação" do HCTP de Manaus, determinavam o cumprimento das Medidas Socioeducativas (atualmente em vigência) no Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, que está em processo de fechamento. Estamos diante de um novo impasse. Não é o caso de dispormos apenas de um espaço digno da aplicação das medidas socioeducativas; trata-se, sim, da garantia da mencionada rede (CAPS, Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência) para acolher os egressos dos hospitais de custódia, cuja presença prolongada nessa instituição constitui-se em flagrante irregularidade. É mais um desafio num cenário de subfinaciamento nacional na área de saúde.
Seminário apresenta diagnóstico dos hospitais de custódia no País
No último ano, apenas em três estados brasileiros, foram descobertas cerca de 260 pessoas vivendo em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico brasileiros por terem perdido o vínculo familiar ou pela falta de uma entidade que faça o acompanhamento social ou de saúde desses internos, segundo dados dos mutirões das medidas de segurança do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os dados foram divulgados nesta terça-feira (4/9), no auditório da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), durante o seminário sobre saúde mental promovido pelo CNJ.
O seminário Saúde Mental e Lei: os Desafios na Implementação da Lei n. 10.216 – referente à legislação que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e que redireciona o modelo assistencial em saúde mental – reuniu especialistas e autoridades para debater a aplicação da política antimanicomial no Brasil.
Na Bahia, primeiro estado visitado pelos juízes do Conselho, foram encontrados 30 pacientes com laudo de desinternação, mas aprisionados no Hospital de Custódia de Salvador. No Paraná, das 430 pessoas internadas, 108 não precisavam estar em situação asilar e, após o mutirão da Justiça, serão recolocadas em residências terapêuticas. Dos internos, 46 já voltaram para casa.
Deficiências – No Rio de Janeiro, nos três hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico existentes no estado, há 136 pacientes internados. Desses, 75 estão abrigados no Hospital Heitor Carrilho, pois não têm para onde ir. Apesar não haver superlotação, nem falta de vagas, a situação dos pacientes judiciários no Rio de Janeiro – assim como no resto do País – preocupa médicos, operadores do direito e gestores públicos. Faltam residências terapêuticas que absorvam os pacientes de longa duração e que já cumpriram medidas de segurança, assim como faltam equipes multidisciplinares que ajudem os juízes na aplicação da Lei n. 10.216.
“A verdade é que as medidas recomendadas pela Lei Antimanicomial não são aplicadas no Direito Penal”, afirmou a diretora de Pesquisa Judiciária do CNJ, Janaína Penalva da Silva.
Para o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ), juiz auxiliar da presidência Luciano Losekann, há grande desconhecimento por parte dos operadores de Direito sobre os princípios, as diretrizes e as determinações da Lei n. 10.216. “Até mesmo magistrados que lidam com processo penal e de execução penal desconhecem solenemente essa lei. E ela não é nova, é de 2001. Não ficaria surpreso se essas situações fossem denunciadas perante a Corte Interamericana”, afirmou Losekann.
Perfil – No Brasil, existem aproximadamente 4 mil pessoas internadas em 23 hospitais de custódia. Segundo o censo clínico, elaborado pela Secretaria de Administração do Sistema Carcerário do Rio de Janeiro, em 2007, o perfil dos pacientes judiciários internados é semelhante ao dos demais presos nas penitenciárias brasileiras. A maioria é formada por homens (80%), em média com 39 anos; solteiros (72%); psicóticos (61%). Em sua maior parte, foram aprisionados após cometerem homicídio (55%); 40% dessas mortes foram cometidas contra um parente de primeiro grau.
Para Janaína Penalva da Silva, é preciso que a Lei n. 10.216 seja respeitada e cumprida. “É preciso abraçar a Lei n. 10.216 como uma daquelas leis revolucionárias, como chama o presidente do CNJ, ministro Carlos Ayres Brito", afirmou.
Além da aplicabilidade da lei, outro desafio citado entre os debatedores é o anteprojeto de lei de mudança de artigos do Código Penal, no que diz respeito ao prazo mínimo de internação de 1 a 3 anos, nos casos dos crimes cometidos por pessoas com transtornos mentais. Para a defensora pública da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro, Sílvia Maria de Sequeira, esse tempo é desnecessário.
“Não é a lei que tem de definir o tempo de internação. É o médico que vai julgar o tempo e determinar o tratamento. Nem o juiz, nem a lei têm de decidir isso; é uma questão de saúde”, afirmou a defensora, durante palestra. No Rio de Janeiro os juízes não têm seguido o prazo mínimo, o artigo 178 da Lei de Execuções Penais (LEP), relativo ao cumprimento do exame de cessação.
Articulação – Ao final do seminário, Losekann defendeu a necessidade de maior articulação entre os participantes para que a realidade seja amplamente divulgada. “Se não observarmos e verbalizarmos o que não funciona, teremos retrocessos imensos nesse novo código penal”, disse. “Temos de sair daqui engajados nesse movimento de rever a situação desses 23 hospitais de custódia. No Acre, há 30 pacientes judiciários cumprindo medidas de segurança na própria penitenciária, local completamente inadequado. O Brasil tem de respeitar e cumprir a lei antimanicomial”, completou.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias
Agência CNJ de Notícias
Fonte: CNJ
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