novembro 14, 2012

"Loucura e prudência", por Sindia Bugiarda

PICICA: "Quantos eu´s podem habitar um corpo? Não importa. Deleuze já dizia: não se trata de chegar ao ponto em que não se diz mais eu, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer eu (Deleuze & Guattari, 2006, 11). Aqui, neste labirinto, o pronome pessoal não reclama pessoas, mas forças e quereres. Ah, esses homens do desejo, capazes de partir. Nomadismo que escapa das identidades, algo tão simples quanto nascer e morrer. Tão simples quanto falar em nome próprio, sem impedir permissão. Desejo a que nada falta, fluxo que atravessa barragens, códigos, nome que não mais designa eu algum (Deleuze & Guattari, 2010, 177). Talvez porque nesta jornada, importa menos a queda do que a aterrisagem." 

Loucura e prudência

12/09/2012
Por Sindia Bugiarda


Versão escrita da fala apresentada à Casa de Rui Barbosa, seminário “A ascensão selvagem da classe sem nome – tatu or not tatu”, em 6 de setembro de 2012.

Por Sindia Bugiarda, OcupaNise e pesquisadora

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Estou indo longe demais. O alerta apareceu nos primeiros passos. Linhas 457 e 239. Da zona sul direto para Engenho de Dentro. Engenho de dentro para fora, uma valsa: Dentro fora, dentro fora, dentroforadentroforadentro a rodopiar. Seria um caminho sem volta?

_ C’est l’hôtel de folie! Entrem, comam tudo o que quiserem. Mas não pode levar nada para casa. Je suis Judith, le gérant de l’hôtel.

Judith-Reginaldo-Naná, homem-mulher de uma perna só, enfeitada de perucas coloridas, aleatoriamente combinadas com boás de penas sintéticas, igualmente coloridas. É assim que ela recebe os hospedes, entre a alegria e o safanão. Entro. Essa viagem só faz sentido se for possível me desfazer das camadas duras, sedimentadas, da rocha que instaura o Eu. Se puder me destituir dos passos pesados, arrastados, se puder largar o fardo.

A mulher negra pára à porta de entrada do hotel. Faz uma prece e entra. Ela é um demônio que fala 150 línguas e se tranca no banheiro ou se amarra com os próprios braços às camas dos quartos do hotel. Ela mente e confunde: _ Vocês acham que estão fazendo diferente das pessoas do quinto andar? Vocês são como eles! Andam com o demônio! Vão me bater!?  E ela espera o golpe, que não vem. Chamo-a pelo nome: Sonia Rosa. _ Não permito que você diga o meu nome. Sua boca é suja. Então, Rosa entra pela cozinha, e rouba tudo o que pode: um saco de goiabinha, bebidas, copos, talheres. _ Meu! Meu! Meu!


Ela diz. Pergunto como posso chama-la. _ Me chama de você. E então, ela retorna à ala de crise no quinto andar.

É o labirinto. Me seguro repetindo incessantemente: Até aqui, tudo bem. Até aqui, tudo bem. Até aqui, tudo bem. Ter um único nome a nos acompanhar pelo resto da vida é uma maneira de impor uma forma fixa a um corpo, a uma subjetividade em constante movimento de diferenciação. Incontáveis estados do ser, como dizia Nise da Silveira. Numa passagem bíblica, ao fazer um exorcismo, Jesus pergunta: qual é o seu nome? E o demônio responde: Legião é o meu nome, porque somos muitos. O demoníaco é ao mesmo tempo eu e nós. Uma multidão que confunde o sujeito singular com o sujeito plural, destruindo a própria distinção numérica. É o que Negri chama de o lado sombrio da multidão. Essa capacidade que a multidão tem de confundir, de ser um e muitos ao mesmo tempo, numa indefinição que ameaça todos os princípios de ordem política. A multidão é coisa do demônio.

Quantos eu´s podem habitar um corpo? Não importa. Deleuze já dizia: não se trata de chegar ao ponto em que não se diz mais eu, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer eu (Deleuze & Guattari, 2006, 11). Aqui, neste labirinto, o pronome pessoal não reclama pessoas, mas forças e quereres. Ah, esses homens do desejo, capazes de partir. Nomadismo que escapa das identidades, algo tão simples quanto nascer e morrer. Tão simples quanto falar em nome próprio, sem impedir permissão. Desejo a que nada falta, fluxo que atravessa barragens, códigos, nome que não mais designa eu algum (Deleuze & Guattari, 2010, 177). Talvez porque nesta jornada, importa menos a queda do que a aterrisagem.

A queda: “Cavalos são bichos selvagens. Não se doma um cavalo pela força, mas pelo espirito”, as palavras de Nise1 não cessavam de correr em meus ouvidos. Sê prudente, Ariadne, tens pequenas orelhas, tens minhas orelhas… Quem além de mim, sabe quem é Ariadne?… Sou teu labirinto (Deleuze, 2006, 114). Como montar o cavalo do desejo, cavalo selvagem que exige montador de corpo forte, capaz de se construir, de ser um e muitos, capaz de ser constantemente atravessado por forças vitais? Um corpo capaz de correr os riscos da experiência de ser possuído por demônios. Experiência que envolve vertigens, deslocamentos horizontais, os terrores e as alegrias do desconhecido. E não romantizemos, é possível falhar, é possível morrer nesse processo.

Milton Freire: _ Minha primeira crise aconteceu quando eu tinha 15 anos. Fui me fragmentando e descendo, descendo. Às vezes a gente desce tanto, que não tem mais como voltar. Isso é a doença. Outras vezes a fragmentação é para cima. Ao longo de 10 anos, Milton se fragmentou e se constituiu diante de inúmeras internações em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. A literatura o ajudou a superar as sequelas deixadas pelos tratamentos que recebeu: “eletrochoques e comas insulínicos, intensificados pelo sadismo e pela perversão de uma cultura da mortificação”. Ele conseguiu retomar sua vida e se recuperar após um tratamento em serviço aberto com Nise da Silveira: “A vida, a convivência, a arte e o afeto, foram os melhores remédios”. Afeto incondicional, sem pedir nada em troca, fragmentação para cima, celebração. Quando a fragmentação é para cima, Milton explica, vivemos a potencia da nossa própria força, livre daquilo que a ensejou. Deixamos de nos ensimesmar sozinhos. Então,  esta fragmentação não é vivida na solidão. Ela é um desvio. É a segunda morte. Morte impessoal que se vira contra a própria morte e gera um segundo acontecimento: o surgimento do “plebeu”, do homem sem qualidades, do novo homem do eterno retorno, ou do super-homem (Gil, 2008, 93). Mas é preciso cautela na escolha dos meios do procedimento.

Samuel Enoque: _ Eu sou a sua mãe. Ao invés apertar o meu pescoço, como costuma fazer com muitos visitantes do Nise, Samuel segura meu pescoço e me beija a boca e vai embora. É do desejo construir um corpo-sem-órgãos. Foi ai que percebi: sou um cavalo em disparada, que morreu numa praça pública, babando espuma, cansado de tanto desejar. Dissolução, estilhaçamento do eu. Como passar do corpo-sem-orgãos-destruidor, do corpo peneira, ao corpo-sem-órgãos-criador? (Gil, 2008, 181).

A aterrisagem: Vitor Pordeus: _ Você precisa cuidar da sua espiritualidade. Vitor era um menino no carro me dizendo em tom de bofetada. Espiritualidade? Espiritualidade é corpo, respondi raivosa. Ele concordou e ao mesmo tempo jogou uma mulher ferida em meu colo. A jovem mulher estava estirada na calçada, cansada demais para chegar na UPA. Vitor a colocou no carro, ela queria vomitar. A passamos para o banco de trás para evitar que o motorista se atrapalhasse. Ela era uma jovem mulher que dizia ter tanta raiva de si mesma que bateu a cabeça na parede, inúmeras vezes, até sangrar. Seus olhos estavam roxos de dor. Ela dizia querer enlouquecer e deitou a cabeça em meus ombros. 

Aterrorizada pelo medo de não poder acolher a mulher que sentia dor, busquei o olhar do menino no carro. Vitor olhava pela janela, como se não tivesse nada haver com aquilo. Ele me deixava sozinha com a desconhecida mulher que tinha dor. Foi quando senti o cheiro dela. Era um perfume de corpo, estranho ao olfato, como uma rosa que fica por muito tempo num vaso com água, seu caule de desfaz e aquele esfacelar-se pastoso espalha-se pelos dedos, e o cheiro da rosa sobe. Toquei seu rosto: Tudo era pele, cabelos, olhos roxos, esparadrapo e lamento. E havia também o latente desejo de enlouquecer. É possível tocar a vida pulsando?

Judith-Reginaldo-Naná me pergunta: o que você sabe sobre o amor? Estou viva, então sei do amor, lhe respondi ressabiada. Ele riu da resposta certeira em tom de pergunta. Se estou viva, sei do amor? Era óbvio, Judith-Reginaldo-Naná era um deus que podia pisar na terra, deus pleno em corpo, deus cansado de subir os degraus, deus cujos músculos não suportavam mais o peso dos passos. Mas ele seguia impiedoso: O que você sabe do amor?

Mais uma vez, busquei o menino no carro, Vitor ainda olhava pela janela. Ele fazia de propósito, corifeu de Nise, seguia me enlouquecendo com seus sussurros: “cavalos são bichos selvagens. Não se doma um cavalo pela força, mas pelo espirito”.  Um homem que cura com planta se aproxima. Peço um cigarro. Fumo. Vomito. Mexericas. Fecho os olhos para enxergar e vejo o preciso momento em que uma mulher de longos cabelos loiros, se transforma em borboleta, o exato segundo em que ela sai do casulo e voa. “Espiritualidade é corpo, tem que cuidar”, Vitor agora olha para mim. Choro e toco meu corpo no rosto da jovem mulher ferida em meu colo. Sim, posso acolher a mulher ferida que sente dor e deseja enlouquecer. Afeto incondicional.


Ocupar é se deixar invadir, se deixar tomar, é também tomar, invadir. Segundo o dicionário, ocupar é encher um espaço de lugar e de tempo. Ocupar é uma afirmação, é afirmar-se, é afirmação da presença de um povo que nos habita. Foram três semanas de intensas atividades e convívio durante a Ocupação do Instituto Nise da Silveira. Artistas de rua, loucos, poetas, cientistas, cada um dos nove quartos do Hotel da Loucura foi tomado, invadido, ocupado. Gente de todo o Brasil. Uma multidão ardente, desejosa de sol, do quente das relações.

Nas paredes do hotel, o registro:

As únicas pessoas para mim são as loucas. Loucas para amar. Loucas para viver. Loucas para serem salvas. Que querem tudo ao mesmo tempo. E que bocejam diante do comum. E que ardem, ardem e ardem, como fabulosos fogos de artifício. E que explodem, em mil centelhas, entre as estrelas.

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Fonte: Rede Universidade Nômade (Cuidado! O site da Rede sofreu um ataque de vírus)

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