novembro 14, 2012

"O comum das lutas: mulheres, índios, negras, queers e a classe", por Bruno Cava

PICICA: "O que é mais importante, a luta das “minorias” ou a luta de classe? A afirmação da mulher, do queer, do negro, do indígena etc, ou a boa e velha insurreição do proletariado? Essa questão se apresenta de muitas maneiras junto às lutas e movimentos. Esquematizando: há quem reclame que a proliferação de lutas “minoritárias” prejudique a formação de uma frente ampla anticapitalista; e há quem veja nas lutas “minoritárias” o melhor front de enfrentamento direto contra o poder constituído, e considere o discurso da luta de classe mais abstrato, anacrônico ou unidimensional. Os últimos acusam os primeiros de pretender uma convergência que, no final, achata diferenças fundamentais — justamente as diferenças que importam no cotidiano. Os primeiros tacham os últimos de divisionistas e multiculturais, incapazes de travar a luta anticapitalista, e facilmente reassimiláveis ao status quo. Por um lado, o apelo ao inimigo comum do Capital, diante do que a fragmentação em identidades acompanharia a estratégia do próprio capitalismo, interessado em segmentar os mercados e dispersar as forças do proletariado, numa apologia da diversidade acrítica à ideologia de mercado. Por outro lado, a recusa às figuras de síntese, que possam relegar a segundo plano a luta aqui e agora daqueles que sofrem na pele as estruturas e instituições vigentes.

No nosso tempo, qual ponto de vista vem antes, qual é condição da outra? A luta de classe primeiro? A luta “minoritária” primeiro?"
O comum das lutas: mulheres, índios, negras, queers e a classe


O que é mais importante, a luta das “minorias” ou a luta de classe? A afirmação da mulher, do queer, do negro, do indígena etc, ou a boa e velha insurreição do proletariado? Essa questão se apresenta de muitas maneiras junto às lutas e movimentos. Esquematizando: há quem reclame que a proliferação de lutas “minoritárias” prejudique a formação de uma frente ampla anticapitalista; e há quem veja nas lutas “minoritárias” o melhor front de enfrentamento direto contra o poder constituído, e considere o discurso da luta de classe mais abstrato, anacrônico ou unidimensional. Os últimos acusam os primeiros de pretender uma convergência que, no final, achata diferenças fundamentais — justamente as diferenças que importam no cotidiano. Os primeiros tacham os últimos de divisionistas e multiculturais, incapazes de travar a luta anticapitalista, e facilmente reassimiláveis ao status quo. Por um lado, o apelo ao inimigo comum do Capital, diante do que a fragmentação em identidades acompanharia a estratégia do próprio capitalismo, interessado em segmentar os mercados e dispersar as forças do proletariado, numa apologia da diversidade acrítica à ideologia de mercado. Por outro lado, a recusa às figuras de síntese, que possam relegar a segundo plano a luta aqui e agora daqueles que sofrem na pele as estruturas e instituições vigentes.

No nosso tempo, qual ponto de vista vem antes, qual é condição da outra? A luta de classe primeiro? A luta “minoritária” primeiro?

É nesse dilema que o conceito de comum oferece uma linha diagonal, além das dicotomias. Na perspectiva do comum, como elaborado, por exemplo, por Antonio Negri e Michael Hardt [1], a pergunta acima se responde: as duas vêm primeiro! É luta de classe e lutas “minoritárias”. Uma não nos fará renunciar à outra, porque, nesta perspectiva, uma e outra são a mesma coisa. Paradoxalmente, do ponto de vista do comum, é o que elas têm de diferença que as faz ser a mesma coisa. O nada ter “em comum”, a priori, é que pode produzir o comum.

Todo movimento de luta, numa acepção ampla, dispara tendências em seu próprio interior. Sucedem tendências revolucionárias e tendências conservadoras. Podem existir movimentos queer ou negro revolucionários e movimentos queer ou negro conservadores, pode acontecer de um feminismo revolucionário ter de debater-se inclusive contra um feminismo conservador, e assim por diante. Essas divisões também ocorrem dentro das próprias organizações e instâncias de mobilização, como forças em disputa. Por isso, se devem evitar qualquer dualidade fechada ou rótulos apressados, para admitir como as divisões são consubstancias aos grupos, em distintos graus de intensidade.
Um primeiro ponto para se situar na problemática consiste na identidade.

Menos que opor a identidade à diferença, numa fácil contraposição teórica, o caso é perceber de que modos, na prática, a figura da identidade mobiliza as lutas ao longo do tempo. Porque a identidade, em certo sentido, não deixa de ser relevante. Não é possível iniciar uma ação afirmativa sem, em primeiro lugar, tornar visível e dizível a condição do resistente. Os resistentes primeiro precisam existir enquanto positividades, como formas de vida em sua matéria política e histórica, como índio/queer/mulher/negro. A experiência de exploração e subordinação determina as coordenadas de tempo e espaço em que se realiza a luta, suas estratégias e alianças contingentes. Sem, pelo menos, essa formulação de identidade, não estaríamos tão distantes daqueles reacionários universalistas para quem expor a condição de desigualdade é o mesmo que criá-la, e que portanto acusam os movimentos “minoritários” de racismo ou machismo às avessas.

Mas isto não significa, no entanto, que qualquer uso da identidade seja transformador. A identidade é fundamental enquanto ponto de partida, para o subsequente desenvolvimento de focos de luta. Jamais como linha de chegada. Se a identidade mobiliza a luta apenas para expressar-se na sociedade, como mais um de seus múltiplos elementos, para galgar o seu lugar e os seus direitos, aí ela se presta à tendência conservadora. Aí, a tendência é dita identitária no mau sentido. Se o funcionamento do movimento negro, do índio, da mulher ou do queer consiste em simplesmente se fazer inserido na sociedade, com as mesmas condições existentes, não exerce nenhum poder transformador da própria estrutura social que o oprime. Ocorre exatamente o inverso: o embranquecimento, a patriarcalização, a ocidentalização dos próprios grupos identitários… Quando isso acontece, os movimentos “minoritários” terminam por se ajustar à defesa de um quadro multicultural, cada um no seu lugar, um espaço de respeito e tolerância em que todos possam continuar vivendo de maneira harmoniosa aos valores e instituições em vigor. No esforço de adaptar-se à sociedade do macho branco, normalizam-se as “minorias”. Eis uma pauta de inserção na sociedade que termina por reforçar a norma no interior dos grupos identitários. Promovem-se então normalidades, “zonas de conforto” do que é ser um gay, um negro ou uma mulher, criaturas incluídas e aceitas, deitadas na cama de Procusto. Nesse trabalho conservador, os próprios movimentos passam a operar segundo o controle social, orgânicos a uma moral de enquadramento e assimilação das forças “minoritárias” a que se propõem representar. O que, na prática, se resolve na modulação da violência por dentro: a mulher masculinizada versus aquela que não se adapta a determinado feminismo, o casal “gay” que condena a bicha louca e promíscua, o negro bem sucedido contra o irresignado etc. O que joga uns contra os outros, nisso sim, divisionista.

Já a identidade como ponto de partida assume que a condição existencial do negro/índio/mulher/queer constitui o “grau zero” da luta. É ainda muito pouco, somente o pretexto. É preciso ir além, e deflagrar um processo de resistência que também seja criação. Que é reexistência diante da condição oprimida, e positiva uma singularidade, um componente maluco e inassimilável à ordem social. Noutras palavras, uma diferença qualitativa e anômala, que contém a recusa de definir-se pelo opressor, e que portanto confronta aspectos estruturais da sociedade “majoritária”. O momento criativo faz com que o negro ou o índio se recusem a ser definido como o não-branco, a mulher como o não-homem, o queer como o não-hetero. Exprimem algo mais, um surplus de vida, que não pode ser simplesmente acomodado na norma do macho branco e sua sociedade. Essa anomalia positiva pode se expandir e se organizar, como uma máquina de revolução.

Nessa vertente, a luta tem uma tendência revolucionária. É a chegada ao poder de uma forte composição indígena no governo boliviano em 2006, que levou a uma indianização da constituição e dos poderes constituídos, num hibridismo inédito entre instituições originariamente européias e instituições indigenistas. É o ingresso do negro na universidade graças à política de cotas raciais, que termina por transformar a instituição por dentro, escancarando-a a novos conteúdos e demandas, qualificando o movimento estudantil e os conselhos, e transformando a produção de conhecimento e a formação profissional de todos, inclusive dos brancos. Nesse sentido, igualmente, o movimento negro que contesta o racismo estrutural, mas nem por isso se fecha em suas próprias raízes, de maneira sectária, e assim expande o movimento chamando de negro tudo aquilo que hibridiza e têm poder de ação: as culturas de resistência, o rap, o funk, o hip hop. É também a marcha das vadias, o feminismo do feminismo, que afirma o tesão da mulher como revolucionário e reinventa-a na multiplicidade e potência do que o seu corpo pode ser — uma terrível afronta ao moralismo patriarcal e machista na base da sociedade. A afirmação da diferença revira as estruturas e instituições existentes. No conjunto, a proliferação de diferenças irredutíveis ameaça a sociedade vigente exatamente porque lhe são antagonistas. Uma luta diferencial, logo, antagonista.

Essa tendência criativa não pode ser reduzida à noção de “inclusão social”, que busca reconhecimento. É autodeterminação e autotransformação, e se volta à ruptura da lógica do opressor. Segundo a tendência revolucionária, o negro ou índio lutam por desmontar o cerne da sociedade branca, a mulher da sociedade patriarcal e machista, e o queer da heteronorma. Sua afirmação trabalha pela deposição do racismo institucionalizado e do machismo impregnado onde quer que se olhe, por multiplicar os sexos e indianizar o poder. Não à toa, esse “a-mais” e “além” escandalize tanto os representantes do status quo, como um suplemento “problemático” e “complicado”, perigoso, hostil, — senão simplesmente criminoso, e seja, em consequência disso, a primeira coisa a ser atacada, muitas vezes por dentro dos próprios movimentos, como contrafluxo à radicalização das pautas identitárias. Na tendência revolucionária, o movimento não pára de transformar e transformar-se, um movimento real que não se estatiza em coletivos identitários e suas lideranças sempre preocupadas com a unidade e a pureza do Movimento, tão preocupadas em se manter como representantes dele, e tão rápidas em acusar os desvios e reprimir internamente as tendências revolucionárias, em nome da “pauta maior”. Quando surgem os “representantes” da identidade, não se está tão distante dos velhos nacionalismos. Agem, assim, a favor das tendências conservadoras, no ato mesmo em que comprometem a produção do comum.

Negri e Hardt chamam de paralelismo revolucionário a inexistência de hierarquia entre os diversos movimentos identitários [2]. As lutas correm em paralelo com igual importância. Mas como elas poderiam se entrecruzar, sem apelar para um centro ou linha justa de convergência? A solução, para os autores, é a mesma do paradoxo das paralelas. As retas paralelas não se confundem em nenhum ponto, mas ainda assim, podem se tocar. No infinito, dirá a geometria. Na revolução, dirão os autores. Como o clinâmen dos antigos materialistas, que provoca o desvio na chuva de átomos em paralelo, gerando colisões, encontros e composições. O comum das lutas só pode ser tecido a partir das tendências revolucionárias, brotadas em cada movimento. O comum das lutas tem de ser produzido. Ele não está dado e também não depende de uma substância “em comum”, de um mínimo denominador. Consiste numa tarefa coletiva de organização, imaginação e animação política, que se assenta na base material de diferenças e antagonismos, nos frontes de enfrentamento direto e engendramento de alternativas. Se existem insatisfações espontâneas e alternativas já em construção, elas podem se auto-organizar, em rede, como um comum produtivo.

Entretanto, não adianta tentar produzir o comum entre frações conservadoras do movimento negro e do feminismo. Nesse caso, o que provavelmente vai acontecer é a esclerose de cada grupo em seu discurso e lugar político, no seu “filão” de reivindicações e “cantinho” de reconhecimento e representação. A ação conservadora por dentro dos movimentos age no sentido contrário da produção do comum. Muitas vezes, reforça a opressão cruzada: o negro homofóbico, a mulher racista, o queer misógino etc. Com o argumento de que nada há em comum entre os movimentos, reforça a identidade como alfa e ômega, o que trabalha pela conservação da sociedade.

Quando se trata de tendências revolucionárias, no entanto, rebenta uma sedução mútua, uma alegria criativa que está na base da produção do comum. Essa atração, mais do que por solidariedade, atua na medida em que potencia ambos os movimentos, empoderados reciprocamente em seu antagonismo diante da sociedade em que se vive. O que faz aparecer diversos entrecruzamentos, híbridos, como a mulher negra, o índio queer, o negro operário. Isso se dá porque, em ambos os casos, a afirmação da diferença procede por uma positividade que desestrutura o poder constituído. A produção do comum gera zonas de hibridação entre as tendências revolucionárias, e pode ir amalgamando as pautas e franjas de reexistência, num processo sucessivamente mais rico, cooperativo, repleto de imaginação. É uma miscigenação afirmada inclusive contra a “democracia racial”, reapropriação das identidades perdidas no ‘fogo plasmador’ da reinvenção. Só a antropofagia une, enfim.

Está aí, nesse amálgama revolucionário, o lugar de encontro entre as paralelas “minoritárias” e a luta de classe. O comum é esse lugar de encontro. A recusa ao trabalho subordinado igualmente é uma luta de reapropriação dos meios de produção — de terras, objetos, bens e subjetividade. Uma luta antes pela retomada do processo produtivo do que da produção resultante. A divisão da sociedade em segmentos e identidades oprimidas funciona de modo integrado à própria divisão do trabalho, forjando subjetividades integradas à sociedade colocada a trabalhar. A “inclusão social” significa inclusão no mundo do trabalho, subordinado e explorado. Se a classe é uma abstração, não deixa de ser uma abstração materialmente determinada, — determinada, justamente, pelos múltiplos pontos de contato entre o poder constituído e a criação de novas formas de vida. Pesquisar esses momentos de conflito e recriação é indispensável. Ou seja, a classe só pode ser determinada na fronteira entre a “inclusão social” majoritária e o devir antagonista das minorias, e nesse sentido é uma classe materialista. Uma luta de classe que não leve em consideração esses pontos de enfrentamento e de recriação imediata se torna indeterminada, aí sim, abstrata e idealista, no mau sentido, encastelada numa verdade e uma prática sectária próximas da religião.

Por isso, a luta “minoritária” é luta de classe. Se o proletariado luta para abolir-se, como experiência de exploração e subordinação, cada movimento “minoritário”, na sua tendência revolucionária, também se esforça por superar as bases materiais de sua condição inferiorizada.  Em ambos os casos, luta-se pela autoabolição da identidade, um ponto de partida que precisa ser problematizado e reinventado. É uma luta pela transformação da sociedade como um todo, que o comum organiza e dá consistência. Essa potência do paralelismo elimina a vacilação entre o que a pessoa é (a identidade) e o que ela deseja ser, — a inefável distância entre o já-é e o ainda-não que é a revolução, que só uma práxis pode sobrepujar. Nem o oprimido empírico e submetido, nem o oprimido utópico e romantizado: a passagem, a franja de recriação. É o feminismo revolucionário que quer destruir o gênero, o queer que prolifera n sexos, o indigenismo que instaura outra cosmologia e outra imanência.

Se a luta de classe faz eclodir o revolucionário de dentro do proletariado, não é outra a tarefa transformadora das lutas “minoritárias”: desabrochar a mulher da mulher, o negro do negro, o queer do queer e o índio do índio, libertar-se de si mesmo, libertando assim a imaginação real, a revolução permanente coexistente a este mundo.


[1] – Ver, por todos, o livro Commonwealth (Harvard Press, 2009), trad. ao italiano: Comune (Rizzoli, 2010).
[2] – Cap. 6.1. do livro citado.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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