PICICA: "É preciso reconhecer, mais que nunca, que o SUS está
gravemente ameaçado. Insidiosamente, parecem querer transformar o setor
público, num retorno a tempos mais que pretéritos, em guardião da saúde
dos pobres, deficientes e, nos tempos de hoje, dos idosos e aposentados.
Mais grave, continuar cobrindo procedimentos e medicamentos caros ainda
não incorporados ao rol de procedimentos obrigatórios dos planos de
saúde e subsidiando por mecanismos de despesas tributárias e elisões
fiscais camufladas o setor privado. Rejeitamos firmemente no Movimento
da Reforma Sanitária a segmentação de “clientelas” e as nefandas
propostas de “seguro popular” que recomeçam a aparecer em segmentos de
setores reformistas. As serpentes já saíram dos ovos e circulam à solta.
Devemos unir nossas forças e aumentar nossas armas antes que seja tarde
demais!"
Financiamento da Saúde: O SUS e as serpentes que já saíram dos ovos
Em artigo, o
diretor do Cebes e médico do ICICT/Fiocruz, José Noronha, fala sobre o
financiamento da saúde e retoma o momento histórico da Constituição de
88, onde foram fixadas fontes específicas de financiamento sob a forma
de contribuições definidas. Seu olhar sob a história aponta que o SUS
pode estar gravemente ameaçado: “Insidiosamente, parecem querer
transformar o setor público num retorno a tempos mais que pretéritos, em
guardião da saúde dos pobres. Mais grave: continuar cobrindo
procedimentos e medicamentos caros ainda não incorporados ao rol de
procedimentos obrigatórios dos planos de saúde e subsidiando por
mecanismos de despesas tributárias e elisões fiscais camufladas o setor
privado.
A Constituição de 1988 ao consagrar a Saúde como direito de todos e dever do Estado, incluindo-a, junto com a Previdência e Assistência Social dentro da Seguridade Social, fixou, de maneira clara, fontes específicas de financiamento sob a forma de contribuições definidas. Tiveram os constituintes convicção e clareza para estabelecer, nas disposições transitórias, que a parte a ser atribuída à Saúde deveria ser de 30% da receita daquelas. Entretanto, diante da falta de regulamentação, dois anos depois, em 1990, aquele percentual deixou de ser cumprido e, em 1993, rompeu-se a solidariedade das contribuições previdenciárias com a saúde. A criação da CPMF, teoricamente criada para suprir o financiamento da saúde, pouco adiantou porque junto com ela foi criado o chamado, à época, Fundo Social de Emergência (correspondente hoje à DRU – Desvinculação das Receitas da União) que gravou de maneira significativa os recursos para a Seguridade Social.
A celebrada Emenda Constitucional 29 se configurou como um recuo em relação à PEC169 de 1993 de Eduardo Jorge e Waldir Pires que fixavam um percentual de 30% da receita da Seguridade Social e 10% da receita de impostos para a Saúde. A EC-29, se fixou percentuais para Estados e Municípios, apenas estabilizou a participação da União, ajustando-a apenas à variação nominal do PIB e não à receita das contribuições da Seguridade Social.
Uma questão de extrema gravidade diz respeito à proporção da riqueza nacional que é apropriada para gastos com ações e serviços de saúde. Os dados da última Conta Satélite da Saúde do IBGE revelou que esses gastos atingiram 8,7% de nosso Produto Interno Bruto em 2009. Esta proporção já é bastante generosa, sobretudo quando sabemos que gastos com educação, saneamento, alimentação, segurança pública e geração de empregos apresentam com frequência maiores impactos sobre as condições de vida e saúde das pessoas. Como esse gasto é majoritariamente privado (55,2%), é imperioso que se aumentem os gastos públicos com os cuidados de saúde. Se fosse mantida a proporção da participação para gastos em saúde das receitas da seguridade social prevista na derrotada PEC 169, e excluída a gravação da receita de impostos, mesmo depois da extinção da CPMF como fonte de financiamento, o orçamento do Ministério da Saúde teria passado dos 61,1 bilhões de reais executados, para 137,6 bilhões em 2010, o que certamente minimizaria muito os problemas de atendimento e cobertura assistencial que persistem em larga escala . Isto equivaleria aproximadamente uma elevação dos gastos em saúde em 2,1% do PIB, elevando o gasto total para 10,5% do PIB.
Apesar das manifestações de segmentos da imprensa e setores conservadores em relação ao peso da carga tributária, há margens para seu manejo, sobretudo em montante tão reduzido. Em primeiro lugar, o Brasil exibiu uma carga tributária bruta de 34,4% de seu Produto Interno Bruto em 2010, posicionando-o em 31º lugar entre os países, distantes daqueles mais justos socialmente – por exemplo, Dinamarca, 49%, Suécia, 48%, Bélgica 46,5%, França, 44,6%, Alemanha, 40,6% e Reino Unido, 38,9%.
A incidência de carga tributária no Brasil atinge exageradamente a folha de salários e sobre o consumo e poupa a tributação da renda, e por conta da predominância dos tributos indiretos, atinge com mais intensidade os decis de renda familiar mais baixa. A progressividade que poderia ser obtida através dos impostos sobre a renda é bastante limitada no Brasil pelo pequeno número de alíquotas (4) e pelo percentual de incidência da alíquota máxima (27,5%).
Ainda há gastos que dizem respeito à justiça tributária e que não são contabilizados no gasto total com saúde. São conhecidos como subsídios ou renúncia fiscal, isenções e abatimentos. Um dos tipos de subsídio são as desonerações fiscais, que são os gastos públicos indiretos, assim denominados por serem contabilizados como gastos públicos sem terem sido realizados pelo Estado, mas por ente privado, como os gastos que permitem dedução do valor do tributo a pagar por empresas e famílias, ou mesmo descontos tributários, sob o argumento de beneficiar determinados setores. O fato é que este tipo de gasto diminui o montante arrecadado pelo Estado, ou seja, reduz a carga tributária e, portanto, o que seria a receita pública caso não existisse. Portanto deveria ser profundamente analisado para avaliar se o benefício gerado corresponde ao recurso que se perde.
Outra análise do financiamento do setor de saúde trata do sobrepeso que o gasto com saúde realizado pelas famílias tem sobre suas rendas. Esse tipo de gasto com saúde é conhecido como gasto privado direto ou desembolso com saúde, e é comumente voltado para compra de medicamentos, consultas, exames, internações e tratamento. Os dados da POF/IBGE mostram que o gasto privado direto com saúde representou quase 6% do orçamento familiar, sendo o quarto item entre os maiores gastos, após habitação, alimentação e transporte.
A estrutura do sistema de saúde brasileiro apresenta muitas e antigas sobreposições público-privadas, em que a segmentação do sistema se dá de forma institucionalizada, onde muitas vezes a interferência do setor privado sobre o interesse público se dá na contramão da universalidade e da equidade no atendimento, com decisões governamentais que promovem incentivos diretos e indiretos para o desenvolvimento do mercado privado de saúde, tanto no aspecto da prestação de serviços quanto no da gestão privada da assistência, paralela à ampliação da cobertura pública.
Mais do que nunca, são necessários atores estratégicos para o sucesso na implantação de uma política de saúde que faça cumprir a universalidade e equidade inscritas no texto constitucional. Mas os potenciais atores estratégicos para esse processo não vêm sendo, há tempo, nem a classe trabalhadora organizada (que demanda planos privados e os trata como objeto de negociação trabalhista pelos sindicatos junto às grandes empresas industriais), nem os profissionais de saúde (que buscam aumentar a produção destinada ao demandante que paga o maior preço, portanto não o SUS, mas os planos privados).
Os próprios servidores públicos, tanto civis como militares e seus dependentes, têm uma assistência exclusiva para eles, em grande parte financiada com recursos públicos, que se constitui um desvio para qualquer melhora do SUS, pois enquanto estiverem protegidos de outra forma que o SUS, toda sua atuação em prol deste sistema se daria por ideologia, compaixão ou amor ao trabalho, mas não por ser o sistema que queiram usar para si ou para os seus. Esses atores fazem parte da nossa sociedade, cuja ambiguidade em relação à universalidade na proteção social nada mais é que o espelho da segmentação da sociedade brasileira.
Para começar a modificar essa situação, um ponto central está em simultaneamente avançar na redução da injustiça fiscal e propiciar o aumento de recursos públicos para o financiamento das ações e serviços de saúde e regular de forma mais efetiva as relações entre o SUS e o segmento de serviços privados, em particular o de seguros e planos de saúde.
Na promoção de maior justiça fiscal, há propostas direcionadas a um aumento do número de alíquotas do IRPF, com a criação de alíquotas de tributação mais elevadas coerentes com o padrão internacional, bem como a limitação das isenções à saúde para cobertura de danos catastróficos. Talvez a imposição de um teto, à semelhança da dedução dos gastos com educação fosse uma solução de transição aceitável.
Também é relevante discutir-se a questão do “rendimento do trabalho com outras vestes”, que constitui uma fonte importante de elisão fiscal por parte das empresas. Os planos de saúde coletivos correspondem a esses casos e constituem-se em uma fonte importante de salário indireto. Pode ser necessário como ocorre em muitos países, imputar essas rendas à renda tributável ou criar um imposto específico para tributar esse tipo de renda.
Outras sugestões de caráter mais geral devem são examinadas como a progressividade na taxação do lucro presumido (maior aproximação entre o IRPF e o IRPJ) e na tributação da renda do capital.
Em relação ao maior aporte de recursos pela administração pública, avançamos na definição do que sejam gastos em saúde, parte da regulamentação da Emenda Constitucional n.º 29, aprovada pelo Congresso Nacional, embora não tenhamos sido vitoriosos na fixação da alíquota quanto à dedicação de uma proporção da receita para a Saúde.
Continua, portanto, o desafio em repor os compromissos da União no financiamento setorial. Do debate recorrente sobre a criação de tributo adicional com destinação específica ou a vinculação, à semelhança dos estados e municípios, de uma parcela da receita da União para as ações e serviços de saúde, o movimento agora é por esta última opção. Entretanto não devemos desconsiderar, diante da recomendação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social de se cumprir o mandamento constitucional da integridade da Seguridade Social, em 2011, com a garantia da vinculação de fontes e diversidade de fontes, que este poderia ser o caminho mais curto e melhor, com aumento progressivo de sua destinação para a saúde, através da redução dos gravames sobre as contribuições da seguridade da desvinculação das receitas da União para atingir os trinta por cento originais.
Outras iniciativas de aumentar o aporte público de recursos deveriam ser consideradas. Por exemplo, poder-se-ia cogitar da criação de um imposto sobre os prêmios de planos de saúde acima de um determinado valor. Estimando-se que cerca de quatro milhões de pessoas estariam pagando prêmios anuais da ordem de seis mil reais por ano, teríamos recursos da ordem de 24 bilhões de reais para serem tributados. Uma alíquota de 5% injetaria 1,2 bilhões nos sistema público.
Na busca de um aumento da eficiência dos gastos, outra dimensão importante a ser enfrentada refere-se à necessária integração das redes assistenciais e dos próprios modelos assistenciais. Torna-se imprescindível que não haja diferenciação na qualidade do atendimento às necessidades de cuidados da população coberta por planos de saúde e a não coberta, que o acesso, presteza e uso sejam definidos pelas necessidades dos usuários e não pela sua capacidade de pagamento. Também, que a lógica organizacional dos prestadores seja integrada de forma a evitar duplicação e desperdício. Por toda a parte há um debate crescente para o estabelecimento de redes assistenciais integradas, tanto a nível horizontal em um espaço territorial definido, como vertical entre os diversos níveis de complexidade dos serviços prestados. A utilização universal de identificadores únicos para serviços de saúde, como deveria ser a implantação do cartão nacional de saúde, facilitaria essa integração e contribuiria para simultaneamente aumentar a eficiência dos gastos e a qualidade dos cuidados prestados. Simplificaria para os prestadores os mecanismos burocráticos de compensação financeira pelos serviços prestados e lhes facilitaria a não discriminação por capacidade de pagamento. O Ministério da Saúde e a Agencia Nacional de Saúde Suplementar deverão estar atentos para desempenhar papéis integradores mais intensos para darem conta desses desafios.
É preciso reconhecer, mais que nunca, que o SUS está gravemente ameaçado. Insidiosamente, parecem querer transformar o setor público, num retorno a tempos mais que pretéritos, em guardião da saúde dos pobres, deficientes e, nos tempos de hoje, dos idosos e aposentados. Mais grave, continuar cobrindo procedimentos e medicamentos caros ainda não incorporados ao rol de procedimentos obrigatórios dos planos de saúde e subsidiando por mecanismos de despesas tributárias e elisões fiscais camufladas o setor privado. Rejeitamos firmemente no Movimento da Reforma Sanitária a segmentação de “clientelas” e as nefandas propostas de “seguro popular” que recomeçam a aparecer em segmentos de setores reformistas. As serpentes já saíram dos ovos e circulam à solta. Devemos unir nossas forças e aumentar nossas armas antes que seja tarde demais!
Fonte: Cebes
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