PICICA: "Acredito
que a América Latina deu um grande passo e foi, inclusive, mestra de
trajetórias revolucionárias. Penso nisso, nem tanto pelos Zapatistas,
mas, mais, pelos movimentos sociais argentinos e brasileiros. Essa é a
conjuntura em que se dá a novidade da relação movimentos
sociais-governos, que corresponde a uma situação geral de uma crise do
Direito. Hoje já não é possível buscar um Direito que funcione de modo
dedutivo: ius publicum europaeum. É preciso inventar jurisprudência a partir do poder constituinte da multidão."
Entrevista de Toni Negri ao La Nación
11/11/2012
Por Antonio Negri / Vila Vudu
2/11/2012, entrevista de Toni Negri concedida aos jornalistas Ariel Pennisi e Adrián Cangi do jornal La Nación, Buenos Aires, Ar. Traduzida pelo pessoal da Vila Vud
Publicação original em português na Rede Castorphoto
É PRECISO VOLTAR ÀS PALAVRAS QUE SIGNIFICAM
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Antonio Negri é filósofo que atravessa as transformações e os debates do século 20 a partir de uma relação especial entre consistência conceitual e militância política. É pensador que rejeita a imagem do intelectual como “profeta” e que, ao mesmo tempo, valoriza a capacidade da multidão heterogênea e dinâmica.
La Nación: Mobilizá-los para dentro e contra o Estado?
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Toni Negri: Sim, para dentro e contra. O problema da liberdade política dos movimentos sociais que aspiram a uma democracia radical é sempre esse. Mas é preciso estar muito atento, porque essa é também a regra dos oportunistas: “metem-se dentro, para depois fazer outra coisa”. Para dentro e contra não são dois movimentos: é um só movimento simultâneo.
Fonte: Rede Universidade NômadePublicação original em português na Rede Castorphoto
É PRECISO VOLTAR ÀS PALAVRAS QUE SIGNIFICAM
.
Antonio Negri é filósofo que atravessa as transformações e os debates do século 20 a partir de uma relação especial entre consistência conceitual e militância política. É pensador que rejeita a imagem do intelectual como “profeta” e que, ao mesmo tempo, valoriza a capacidade da multidão heterogênea e dinâmica.
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Sua leitura de Marx vai além do Estado como figura organizadora e reatualiza a ideia de trabalho
como capacidade para criar, estabelecer vínculos e organizar novos
modos de institucionalidade. Essas novas instituições não se baseiam no
pressuposto de que o homem seja “o lobo do homem”, mas numa concepção
afirmativa e igualitária das capacidades. Na prisão, encontrou em
Spinoza seu principal aliado; ali refletiu sobre a solidão e a
comunidade. Chegou a dizer que “é possível, talvez, construir o futuro
de dentro do cárcere”.
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Em
tempos em que a política como potência da multidão é o único antídoto
aos fundamentalismos – entendidos como imposição de valores
transcendentes em todas as ordens – Negri defende que “a resistência dos
corpos produz a subjetividade não numa condição isolada e
individualista, mas num complexo dinâmico no qual se concatenam as
resistências dos outros corpos”. Assim, liga a resistência contra novas
formas de exploração à produtividade dos corpos coletivos e singulares
(experiências populares, organizações sociais e diversos modos de
associação entre pessoas). O trabalho não pode ser parcializado, nem
dividido como em outros tempos; por isso, Negri recorre a uma noção
ampliada de corpo como capacidade de compor-se para aumentar a potência; e a um novo olhar sobre a inteligência como ferramenta fundamental.
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O
Comum supõe tanto as riquezas do mundo material como o conjunto da
produção social, os chamados bens naturais (conhecimentos, linguagens,
códigos, informação, afetos e suas consequências).
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Se
o Comum é condição de toda produção de liberdade e de inovação
material, são imprescindíveis novas formas de organização, novas
instituições emergentes da multidão, que possibilitem que todos tenham
acesso e usem o que seja produzido, além de liberdade de expressão e interação.
O controle privado, como o controle público, limitam as possibilidades
da esfera comum, na medida que separam capacidades, dirigem os
movimentos e distribuem funções a partir de lógicas pré-estabelecidas,
que foram transformadas em credos durante a história da modernidade.
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Negri
entende que Spinoza é o subsolo da modernidade, porque ali há uma fonte
permanente e contínua de ruptura contra a vontade de dominação e suas
modalidades do medo e da esperança. Na fonte de ruptura vive a sabedoria
de um poder constituinte, como princípio de mudança e transformação do
mundo material. Seu caminho operarista, político e filosófico, o qual,
dentre outras coisas levou-o ao cárcere e ao exílio, une Maquiavel,
Spinoza, Marx e Deleuze, para insistir em que só a potência comum é
ponto de partida de alegrias imediatamente compartilhadas, a partir da
autonomia das redes afetivas, sociais e produtivas. Afirma que o
essencial para transformar o próprio em comum é o amor que não cessa de
abrir-se a comunidades mais vastas que “cada um” e seus mais próximos.
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La Nación:
Qual a importância do conceito de multidão, para pensar as condições
políticas do presente e como o senhor avalia a pertinência da noção
ampliada de “multidão dos pobres”, segundo seu mais recente livro, em
colaboração com Michael Hardt, Comun. Más allá de lo privado y lo público [1]?
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Toni Negri:
Quando se fala de “multidão dos pobres”, a primeira referência tem a
ver com o nascimento do termo “multidão”. É uma distinção que se deu no
marco da Revolução Inglesa, na discussão entre os revolucionários que se
manifestam contra a propriedade privada, e os partidários do exército
republicano. Os primeiros dizem que representam a “multidão” dos que não
têm propriedade; o outro lado diz que representa o “povo”, os que têm
como objetivo ter propriedade e a têm. A revolução, claro, decidiu-se a
favor da República, quer dizer, dos que têm a propriedade. O “outro
lado”, os sem propriedade, convertem-se no proletariado que logo
ultrapassa o processo de acumulação primitiva e converte-se em classe
operária. Desse ponto de vista, há uma dimensão de pobreza, no fato de o
vivente viver sem propriedade.
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La Nación: Em que medida a transformação pela qual passou o trabalho nas últimas décadas afeta o conceito de “multidão”?
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Toni Negri:
O conceito de multidão tem sua genealogia nesse processo histórico.
Atualmente, o processo acontece com a desagregação da classe operária, a
qual está ligada à desintegração do trabalho. O trabalho, na medida em
que se transforma em trabalho social, resulta num tipo de atividade que
se arranca de uma determinada espacialidade específica dos modos
tradicionais de produção. Quer dizer, de um lugar ou uma determinação
local e, inclusive, de uma determinação temporal, entendidas como lugar
da jornada laboral. A medida do trabalho, antes, estava normalmente dada
em relação ao espaço de trabalho e à jornada laboral, os quais
contribuíam, por um lado, para reproduzir o capital e fazê-lo
frutificar; e, por outro lado, para reproduzir o próprio trabalhador.
Hoje, essas medidas clássicas explodiram, tanto espacial como
temporalmente. Deste ponto de vista, a multidão deveio multidão de
trabalhadores precários.
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Mas
há outro aspecto relacionado a essa precariedade: a potência social e
cooperativa do trabalho. A multidão desagrega-se em singularidades que
são, antes de tudo, trabalho vivo: trabalho singular e capacidade de produção que se apresenta como cooperação virtual.
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O
problema político atravessa tudo isso e inclui revelar como essa
multidão virtual, na qual se contém o Comum, consegue expressar-se.
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La Nación: O senhor fala então de uma dimensão potente do precário?
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Toni Negri:
Sim, exatamente. Há uma dimensão potente no precário. Dá-se de um ponto
de vista político: a multidão contém a cooperação virtual. Para a
cooperação, é importante ver o problema da transição como verdadeiro
dilema político. Na Argentina, é problema que foi tratado em sentido
forte. Mas onde a transição, como em várias latitudes, não foi
problematizada seriamente, ainda se tenta falar de transição, sem
considerar a força do fascismo. O sistema capitalista tem absoluta
necessidade de manter, seja como for, uma continuidade. Aconteceu no
Chile.
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Mas esse é problema filosófico de primeira ordem: entender o que é a transição e como afeta a potência social produtiva.
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Na
Espanha, essa transição está acontecendo agora pela primeira vez, desde
a derrota da República: aparece hoje no movimento dos “Indignados”,
como reação que redescobre a velha República e entrevê a possibilidade
crítica de continuidades potentes.
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Raciocinar
sobre a potência não é racionar sobre alguma ideia, não é uma ontologia
abstrata. Raciocinar sobre a potência é necessidade de uma ontologia
concreta, que sempre se apresenta como histórica, que tem natureza
plenamente produtiva, nunca vazia.
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La Nación: O que significa, por onde passa, então, a potência dessa “multidão dos pobres”?
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Toni Negri:
A multidão proletária é livre, mas, ao mesmo tempo, reúne-se, une-se,
porque a solidão é problema real. A pobreza não é déficit de ser; o
verdadeiro déficit de ser é a solidão. É imperioso superar a solidão. A
pobreza tem a enorme força de ser trabalho vivo. O pobre é um ser-aí,
vivo e efetivo, que se apresenta como índice de associação, de
cooperação, de construção. E de construção de ser, porque o ser pode ser
construído; o ser não preexiste como fundo. O ser não está sempre por
trás; o ser, em cada momento, encontra-se “aí”, existente no momento
oportuno em que se rompe a repetição monótona do tempo. É a composição
dos afetos, que Marx recupera de Spinoza.
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La Nación:
Depois da crise argentina de 2001, apareceu uma tensão crescente entre o
Estado e os movimentos sociais, os espaços sensíveis ligados aos modos
de fazer e de ser, que reclamaram uma certa autonomia. Como o senhor vê
essa relação? Em que sentido se pode pensar a emancipação?
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Toni Negri:
Quando falo de emancipação, não falo num sentido iluminista, nem do
modo que me parece que seja a mistificação atual da palavra, ou seu
sentido escatológico. Benjamin foi pensador radical, mas foi usado de
modo muito ambíguo. Toda essa “escatologia” hebraica e paulina que nos
foi oferecida e nos domina no campo teórico, na tentativa de definir a
emancipação é o prelúdio transcendente de uma libertação utópica. É
preciso recuperar a emancipação em território material.
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Com
isso, abre-se uma série de perguntas: Como faz o homem endividado, para
emancipar-se? Como faz o homem mediatizado, para emancipar-se? O que é
representação política emancipada? Que significa a luta de classes?
Esses são os grandes problemas da emancipação de nosso tempo. Não há
emancipação como conceito derivado da hegemonia, ou simplesmente como
proposta simbólica. A emancipação é prática política efetiva de
resistência e criação cooperativa.
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La Nación: Como, então, o senhor vê o movimento das singularidades e a continuidade do sistema de representação?
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Toni Negri:
O problema é que a Constituição permaneceu igual. No presente, é
imprescindível perguntar: o que significa modificar a Constituição? O
que quer dizer introduzir na Constituição, além do privado e do público,
também o Comum? O que quer dizer introduzir a participação no lugar da
representação? O que significa a gestão comum das empresas, dos bens
comuns, do saber, do trabalho?
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Essas
são as coisas concretas que interessam. São as coisas que se apresentam
à multidão dos pobres e dos indignados – de fato, apresentam-se a todos
– como coisas fundamentais, embora às vezes os problemas sejam tratados
como se fossem caricaturas.
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Não
se pode falar de singularidades, se não se fala dos novos modos de
constituir o saber em relação com as tecnologias, com as finanças, com
as forças de trabalho em transformação. Vale para Deleuze, para Virno,
como para nós. Falamos de uma produção de mais-valia que atravessa a
inovação dos processos de linguagem. É o que temos de problematizar. Em
torno disso se devem construir as estruturas políticas.
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La Nación:
Que relação o senhor encontra entre o conceito mais contemporâneo de
“biopolítica” e o conceito mais clássico de “força de trabalho”?
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Toni Negri:
Força de trabalho é conceito que, evidentemente, vive no interior da
noção de capital. Ao mesmo tempo, constitui um problema político que
atravessa a vida. Seu movimento é, por um lado, o capital variável; e,
por outro, o trabalho vivo. O próprio conceito de força de trabalho deve
romper-se de dentro para fora, para devir trabalho vivo independente.
Esse conceito de trabalho vivo independente é fundamental, porque
removeu toda a temática operária, quando aconteceu na Europa, há 30 ou
40 anos. Vale a pena, então, perguntar-se o que é a independência do
trabalho vivo.
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Esse
é o problema que está no coração do pensamento de Gilles Deleuze e de
Paolo Virno, que, adiante, nas obras deles, adquire forma filosófica.
Sim, o pensamento de Giorgio Agamben aborda esse tipo de problemas, mas
em termos negativos. Em vez de “trabalho vivo”, Agamben fala de
“absoluta pobreza”; em vez de força de trabalho organizada, fala de
“regra”. Assim recorre à abstração de nível máximo, embora o problema
permaneça onde estava.
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Em
nosso caso, “libertar” não é mais um problema místico ou escatológico: é
problema de reforma constitucional, um problema de definir os regimes
de propriedade, de tratamento dos regimes monetários, bancários,
financeiros. A filosofia crítica contemporânea tem de abandonar a
filosofia ocidental, nos seus níveis máximos de abstração. A filosofia
pode ser dada por morta, se pretende pensar os problemas das formas de
resistência e de liberdade, de modo negativo e abstrato.
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Para
a ética e para a política, é necessário voltar às palavras que
significam e que afetam as práticas em processos históricos de longa
duração.
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La Nación: Falávamos antes de “emancipação”. Como o senhor vê a obra de Jacques Rancière?
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Toni Negri: Mantenho
ótima relação com o pensamento de Rancière, tanto de um ponto de vista
filosófico, como de um ponto de vista pessoal. Rancière é a pessoa mais
contraditória do mundo. Por um lado, chega a uma definição da política,
para pensar a distribuição do sensível, a qual, simultaneamente supõe um
regime da Police e um regime da pólis. É exatamente o que eu
teorizo como poder constituinte e poder constituído (na linguagem da
tradição, podem ser pensados como potentia e potestas).
Rancière também faz uma história que é extremamente plena, cheia de
conteúdos históricos determinados: a dos primeiros socialistas que
construíram uma relação política intensa, como, por exemplo, em seu
livro A noite dos proletários ([1988] Lisboa:
Antígona, 2012). Mas, por outro lado, parece, ao meu ver, negar a
história, quando teoriza em forma abstrata modelos políticos muito
gerais, a partir de problemas sensíveis. Quando alguém se encontra com
as duas partes, a coisa aparece como completamente contraditória, mas
Racière a resolve, à sua maneira, nas abordagens estéticas.
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Minha
impressão é que, na estética, ele junta esses problemas numa dupla
completamente separada: por uma parte, exalta o momento da política;
pela outra, o momento da genealogia, ou da história desconstrutiva. Mas
entendo que não consegue juntar uma à outra. Digamos que A noite dos proletários é a solução para seu problema teórico.
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La Nación: Como o senhor pensa, na atual conjuntura global, os problemas que se veem na Europa e na América Latina?
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Toni Negri: Entre 2004 e 2005 escrevi, com Guiseppe Cocco, um livro intitulado Glob(AL): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005),
no qual fazíamos uma previsão, com exemplos provavelmente não muito
adequados, mas bastante precisa, porque víamos que a América Latina
estava saindo da dependência. Estava superando a dependência e entrando
na ordem global. Você nem imagina as coisas que nos disseram! “Você nega
o imperialismo, quer destruir os movimentos subversivos”. Respondo que
“o problema é reconhecer que estão, sim, saindo da dependência.
Organizem-se para mobilizar os movimentos sociais para dentro do Estado e
contra o Estado”.
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La Nación: Mobilizá-los para dentro e contra o Estado?
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Toni Negri: Sim, para dentro e contra. O problema da liberdade política dos movimentos sociais que aspiram a uma democracia radical é sempre esse. Mas é preciso estar muito atento, porque essa é também a regra dos oportunistas: “metem-se dentro, para depois fazer outra coisa”. Para dentro e contra não são dois movimentos: é um só movimento simultâneo.
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Tenho
tido contatos com quase todos os países da América Latina, nos últimos
anos, e a cada dia é mais evidente uma transformação radical. No Chile,
por exemplo, era inimaginável uma revolta de estudantes como a que se
viu ano passado e que permanece muito presente nas linhas que abriu. É a
lucidez de rapazes e moças de 18 anos? São de uma maturidade política
surpreendente. Houve uma transformação antropológica na América Latina
nos últimos 10, 15 anos, que afetou o exercício político. A vitória de
Lula, ou o ano 2001 argentino são dados fundamentais para avaliar uma
irrupção transformadora. E, por outro lado, havia toda uma linha da
esquerda que olhava na direção de Chávez.
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Sempre
fui muito realista sobre os processos que considero importantes. O
Brasil, por exemplo, começa a reconhecer-se, não na dependência, mas na
interdependência global, e, nesse contexto, está resolvendo seu imenso
problema racial que, contudo, ainda existe. A favela começa a ser um
lugar que não está fora da cidade, fora da pólis. Começa a haver um Welfare:
uma situação de assistência generalizada, uma “escola” que começa a se
abrir. Esses são os grandes problemas que a América Latina está
enfrentando.
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Há
companheiros que dizem que o grande momento já foi superado e que,
agora, estamos entrando num momento de estabilização, que a crise
mundial opera de tal modo, que consegue meter paus na engrenagem,
bloquear a imaginação que se tem de aplicar à política. Não sinto que se
possa esgrimir juízo definitivo.
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Acredito
que a América Latina deu um grande passo e foi, inclusive, mestra de
trajetórias revolucionárias. Penso nisso, nem tanto pelos Zapatistas,
mas, mais, pelos movimentos sociais argentinos e brasileiros. Essa é a
conjuntura em que se dá a novidade da relação movimentos
sociais-governos, que corresponde a uma situação geral de uma crise do
Direito. Hoje já não é possível buscar um Direito que funcione de modo
dedutivo: ius publicum europaeum. É preciso inventar jurisprudência a partir do poder constituinte da multidão.
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La Nación: O Direito parece funcionar só sobre questões particulares?
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Toni Negri:
É. Só funciona sobre questões que têm a ver com elementos de contratos,
de consenso, de conflito. Se se vê o fato de que alguns movimentos
sociais entram no campo da ação governamental, isso não significa que os
movimentos venceram; significa que os governos sentiram a necessidade
de abrir-se. Quanto a isso, também, é preciso atenção máxima, porque, ao
exaltar um aspecto, pode acontecer de descuidarmos do outro lado do
problema. Seja como for, tem havido sucessos muito importantes na
América Latina que seria necessário ampliar.
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A
Europa, por sua vez, está em situação completamente diferente. A Europa
está completamente bloqueada, fixada numa série de rigidezes físicas e
intelectuais que tornam extremamente difícil o movimento de unir-se em
torno da União Europeia; e, nesse contexto, retoma-se o desenvolvimento
da luta de classes. O problema aí pode ser resumido em algumas
perguntas: quais são as condições da luta de classes? Quais são as
condições pelas quais nos libertamos desses patrões?
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Insuportável
é ver que tomam o dinheiro de cada trabalhador e o metem no bolso, e
você, o trabalhador, vira mendigo. Todos temos de fazer essa revolução.
Algum dia teremos de fazê-la. Toda a inteligência tem de ser mobilizada
para resolver esse problema; o resto são estupidezes.
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La Nación:
Apesar da miséria europeia e, sobretudo, da miséria italiana, vê-se um
momento muito prolífico no pensamento italiano. Talvez se possa dizer
que o pensamento italiano é mais potente hoje, na América Latina, que na
própria Europa…
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Toni Negri: Hardt e Virno editaram, em meados dos anos 1990, um livro formidável, com contribuições fundamentais: Radical Thought in Italy: A Potential Politics (1996 [2]). Incluía um capítulo de Virno, com o título de “Do You Remember Counterrevolution?”
[Lembram-se da contrarrevolução?]. Nesse capítulo, ele joga com o fato
de que, depois de 1848, fazia-se revolução na França e pensamento na
Alemanha; e diz que, então, se fazia pensamento na França e revolução na
Itália. É ideia bem bonita, não? Quando se puder dizer que se faz
pensamento na Itália e revolução na América Latina, talvez tenhamos
completado o movimento.
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Notas dos tradutores
[1] 22/6/2010, Outras Palavras, Bruno Cava, da coluna Crítica Nômade resenha de: “Commonwealth: amor e pós-capitalismo”.
[2] VIRNO, Paolo; HARDT, Michael (eds.), “Radical Thought in Italy: A Potential Politics”, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1996.
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