novembro 16, 2012

"De virgens e putas", por Lacques Gruman

PICICA: "Não é de hoje que a prostituição, condenada pelos eternos “defensores da família”, é tolerada. A Igreja Católica, por exemplo, a considerava, segundo Nickie Roberts (As prostitutas na História, editora Rosa dos Tempos), “uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus”.

Aprendemos, dolorosamente, que os religiosos tinham seus próprios métodos para “drenar” o desejo e as fantasias que nem a autoflagelação conseguia eliminar. Voyeurismo, pedofilia, amores secretos, famílias não assumidas.

São Gabriel da Cachoeira, na região do Alto Rio Negro, abriga a maior população indígena do Brasil, com 22 etnias. Lá, é possível comprar a virgindade de uma indiazinha de 10, 12 anos por uma caixa de bombons, um celular velho ou uma nota de R$ 20. Entre os acusados por esse comércio abjeto, há comerciantes locais, um ex-vereador, dois militares do Exército e um motorista, segundo reportagem da Folha de S. Paulo. Todos brancos, parte da elite daquela região miserável. Praticamente não há investigação policial e as meninas não têm qualquer tipo de apoio médico ou psicológico. Depois de ouvir dez meninas, a promotora local disse que “é uma coisa animalesca e triste”. As vítimas são ameaçadas de morte se denunciarem os criminosos. Coisas do Brasil profundo. Como nas aldeias ninguém tem biotipo europeu, acesso à internet ou valor de mercado, o assunto não vai invadir redes sociais, nem criar a expectativa da ruptura do hímen da jovem prostituta catarinense. Pobreza não vende." 




DEBATE ABERTO

De virgens e putas

São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, abriga a maior população indígena do Brasil, com 22 etnias. Lá, é possível comprar a virgindade de uma indiazinha de 10, 12 anos por uma caixa de bombons. Como nas aldeias ninguém tem biotipo europeu, acesso à internet ou valor de mercado, o assunto não vai invadir redes sociais como o caso da jovem catarinense que decidiu leiloar a própria virgindade.


“Película dérmica presente na entrada da vagina. Impermeável, normalmente possui uma abertura anelar, por onde são eliminadas secreções e a menstruação. Em certos casos, a abertura é muito estreita ou pode não existir, requerendo intervenção cirúrgica para evitar a retenção de líquidos”. Eis aí, com rigor acadêmico, a descrição do hímen. Tão excitante quanto as ilustrações de um livro que matou a curiosidade sexual de muitos adolescentes da minha geração: Nossa vida sexual, de Fritz Kahn. Eram uns desenhos grosseiros, moralistas, tão eróticos quanto as entranhas dos ratos de laboratório. À falta dos manuais do Carlos Zéfiro, o Magnífico, aos quais só uns poucos privilegiados tinham acesso (eram, principalmente, os amigos dos jornaleiros; doce clandestinidade), íamos de Kahn. Mas não só dele. Existiam, de fato, currais de iniciação sexual. Prostitutas e empregadas domésticas cumpriam a função sócio-sexual de aliviar o dilúvio hormonal que inundava sonhos e delírios de adolescentes. No Peru (sem duplo sentido), acompanhada de altas doses de preconceito e brutalidade, a meninada de classe média usava uma expressão para declarar vitória no quarto dos fundos: “Tirarse a la chola” (em bom português: traçar a empregada). Pouca informação na família e hipocrisia completavam o quadro.

O hímen atravessou a história como instrumento de poder. Sua ruptura foi, não raro, um símbolo de status. O jus primae noctis, o Direito à Primeira Noite, dava ao senhor feudal o direito de violentar as noivas dos servos na noite de núpcias. Era um recado: neste terreiro, o galo sou eu. Segundo alguns historiadores, esta instituição medieval durou até o século XIX em certas áreas do sul da Itália. Mesmo que não consagrado em textos legais, existem fortes evidências de que os senhores de engenho do Brasil faziam o mesmo com as escravas. Claro que, em numerosos casos, nem esperavam o casamento para consumar a violência.

Ainda na Itália, havia lugares onde uma espécie de código de honra exigia que se pendurasse na janela o lençol manchado de sangue logo após a noite de núpcias. Mais importante do que destacar esses fatos é a pergunta: por que a virgindade sempre foi tão valorizada ? Sem pretensão de avançar numa psicologia de botequim, completo: por que o prazer foi tão dura e longamente censurado ?

Essas reflexões vadias surgem na esteira de uma notícia intensamente circulada nas redes virtuais de comunicação. Mereceu matérias em jornais, suscitou debates na televisão, bombou nas redes sociais. Uma jovem catarinense de 20 anos colocou em leilão sua “película dérmica”. Depois de uma disputa acirrada, um japonês arrematou o minifúndio de poucos milímetros quadrados por R$ 1,5 milhão. As regras para consumação do negócio parecem roteiro de uma cirurgia: uma hora de duração, intimidade limitada (beijo, nem pensar), pagamento combinado com antecedência. A mocinha, que se diz leitora de Shakespeare (como as misses de antigamente diziam, invariavelmente, que liam O pequeno príncipe e apreciavam Somerseth Maugham ...), planejou fazer no ar o que outras prostitutas, a preços mais acessíveis, fazem há séculos em terra. Depois de receber o michê milionário, talvez descole um convite da Playboy ou se candidate ao próximo BBB. Está tendo seus minutinhos de fama, na gloriosa companhia de popozudas desfrutáveis. Se quiser aumentar o lucro, pode fazer uma cirurgia de reconstrução do hímen, vendendo depois uma nova intimidade biônica.

É curioso que isso aconteça em plena era da socialização dos métodos contraceptivos e da liberalização dos costumes. É comum namorados dormirem nas casas dos pais. A descoberta do sexo saiu da clandestinidade. Carlos Zéfiro ficou démodé, atropelado por sites de sexo explícito. Talvez tenha sobrado a velha curiosidade pelo mistério das profissionais. Que tipo de talento erótico, qual habilidade rara teriam as prostitutas ? Será possível transformar uma relação comercial num encontro amoroso ? A verdade é que houve uma sofisticação do negócio e os bordéis cercados por tapumes entraram em declínio.

Não é de hoje que a prostituição, condenada pelos eternos “defensores da família”, é tolerada. A Igreja Católica, por exemplo, a considerava, segundo Nickie Roberts (As prostitutas na História, editora Rosa dos Tempos), “uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus”.

Aprendemos, dolorosamente, que os religiosos tinham seus próprios métodos para “drenar” o desejo e as fantasias que nem a autoflagelação conseguia eliminar. Voyeurismo, pedofilia, amores secretos, famílias não assumidas.

São Gabriel da Cachoeira, na região do Alto Rio Negro, abriga a maior população indígena do Brasil, com 22 etnias. Lá, é possível comprar a virgindade de uma indiazinha de 10, 12 anos por uma caixa de bombons, um celular velho ou uma nota de R$ 20. Entre os acusados por esse comércio abjeto, há comerciantes locais, um ex-vereador, dois militares do Exército e um motorista, segundo reportagem da Folha de S. Paulo. Todos brancos, parte da elite daquela região miserável. Praticamente não há investigação policial e as meninas não têm qualquer tipo de apoio médico ou psicológico. Depois de ouvir dez meninas, a promotora local disse que “é uma coisa animalesca e triste”. As vítimas são ameaçadas de morte se denunciarem os criminosos. Coisas do Brasil profundo. Como nas aldeias ninguém tem biotipo europeu, acesso à internet ou valor de mercado, o assunto não vai invadir redes sociais, nem criar a expectativa da ruptura do hímen da jovem prostituta catarinense. Pobreza não vende.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.
Fonte: Carta Maior

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