novembro 19, 2012

"Pela Palestina", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Há quem diga que os palestinos não existiam antes de Israel. Fale que eles não passavam de gentes dispersas, de forma selvagem, por aquelas terras. Há quem veja algo de mal nisso, afirmando ou rebatendo tal afirmação, mas o fato é que essa afirmação é verdadeira: os palestinos simplesmente viviam ali e pouco importava qualquer palestinidade. Sua existência é fruto da resistência ao poder, ao déspota que veio de longe, e engendrou pela negação da vida vivida naquelas terras uma subjetividade: eis aí que emerge o palestino, do mau encontro com a colonização no seu auge tecnológico, trazida de maneira tão irônica quanto cruel justamente pelo povo que foi a maior vítima dela, cuja chegada negou-lhes a vida.

Do mesmo modo que o índio não era índio antes do mau encontro com os europeus -- portanto, os índios sempre foram minoria e, por isso, índio é ontologicamente minoritário -- o palestino só é palestino depois do mau encontro com Israel, isto é, só aí que a territorialidade da Palestina é fixada, não antes. A Palestina não desaparece, apesar de todos os poderosos esforços para tanto, pois ela, ironicamente, nasceu de uma invasão. E os judeus, trazidos pelas mãos do sionismo em fuga, encontram-se diante de uma outra encruzilhada: a saída sempre esteve em reconhecerem a sua própria orientalidade no processo de retorno -- como diria Ury Avnery -- não em reafirmarem a identidade com o fenômeno que os vitimou, qual seja, o ocidentalismo; enquanto o fizerem, serão os romanos ou gregos voltando, mas jamais os judeus."

Pela Palestina

"Como os palestinos poderiam ser “parceiros legítimos” em conversações de paz, se não têm país? Mas como teriam país, se seu país lhes foi roubado? Os palestinos jamais tiveram escolha, além da rendição incondicional. Só lhes ofereceram a morte. No conflito Israel-Palestina, as ações dos israelenses são consideradas retaliação legítima (mesmo que seus ataques sejam desproporcionais); e as ações dos palestinos são, sem exceção, tratadas como crimes terroristas. Um palestino morto jamais interessa tanto, nem tem o mesmo impacto, que um israelense morto (...) O conflito Israel-Palestina é um modelo que determinará como o ocidente enfrentará, doravante, os problemas do terrorismo, também na Europa (...) Esse conflito é uma estranha espécie de chantagem, da qual o mundo jamais escapará, a menos que todos lutemos para que os palestinos sejam reconhecidos pelo que são: “parceiros genuínos” para conversações de paz. De fato, estão em guerra. Numa guerra que não escolheram".
(Gilles Deleuze, artigo publicado no Le Monde de 7 de Abril de 1978, tradução do inglês de Caia Fittipaldi -- retirado daqui)




O artigo em questão tem mais de 34 anos, no entanto, ele se mantém incrivelmente atual, o que afirma seu tom profético: e a profecia, em verdade, nada tem a ver com a transcendência, mas com a capacidade de descrever os movimentos reais e, portanto, suas tendências. Pouco mudou naquela região: aquele estágio do massacre sofrido pelos palestinos determinou, de fato, o modo que o Ocidente enfrenta o "terrorismo". Nestes momentos de crise, nos quais a problemática contínua da questão Israel-Palestina vem à tona, é natural que os trechos deste artigo rodem a rede, o que deixa tudo claro: não, nunca foi um conflito, sempre foi Israel sobre e contra a Palestina.

A forma como se estrutura a atual contenda entre israelenses e palestinos não é mesmo conflitual: agora, a exemplo da violência de três anos atrás, trata-se de um massacre. A Palestina não detém força aérea, marinha de guerra ou tropas regulares. Gaza é praticamente um gueto. Israel tem o que de mais moderno existe no mundo em termos bélicos. A proeminência do complexo bélico-industrial israelense é tamanha que consome os recursos do próprio país. O saldo de mortos palestinos é uma evidência clara: o bebê de onze meses morto recentemente em um ataque da força aérea de Israel a Gaza é prova cabal. 

Desta vez, outro item também não é diferente: a indiferença da cobertura midiática ocidental é proporcional a indiferença israelense pela vida dos palestinos. Mas a Palestina é resistência. Para além da catástrofe e do romantismo: se o "índio" era, para muito além da Índia real, a definição genérica para "homem colonizável" dos europeus, "palestino" é muito mais do que uma nacionalidade ou uma etnia, mas uma subjetividade decorrente da resistência à colonização incessante da máquina ocidental -- e sua fantástica desconsideração em relação ao outro. Não é que somos todos palestinos, mas devimos palestinos quando resistimos a esse processo de avanço incivilizado da civilização.


Sem dúvida, este é o paradoxo israelense: Israel é o avanço e o auge da civilização no Oriente Médio e, portanto, é seu antagonista, pois eleva as contradições daquela noção romana -- que mais tarde engrossou o caldo do que seria a cultura ocidental e, em último caso, a cultura global -- ao extremo. Ser civilizado é ser oposto a selvagem, é estar para lá do acaso da vida natural, ou em ligação com a natureza, para habitar tecnologicamente e, portanto, estar sujeito a uma Lei.

Israel é o auge da tecnologia porque, dentre outras coisas, se estrutura em torno de uma língua morta recriada tecnologicamente, por ambientes tecnologicamente viabilizados pelo melhor que a tecnologicamente pode oferecer e, também, por tudo o que há de mais moderno em tecnologias sociais, políticas e informacionais -- mas o corte principal está entre o eu e o outro, a maneira como a tecnologia aparta por ser incapaz de criar critérios para distinguir o molar do molecular (como diria o próprio Deleuze), o que pertence ao mundo dos grandes números, das multidões reduzidas a estatísticas, ao mundo das singularidades, de nós mesmos enquanto humanos.

O rompimento pretenso que a civilização sempre promoveu do homem em relação à natureza -- que jamais resta superada mas estará sempre bem ali, atualíssima -- é inviável, seja das relações do homem com o homem ou dele próprio com o ecossistema (o que se tornou tragicamente claro nos últimos anos). A civilização, como os próprios Estados nação que ela forjou, é inimiga de si própria por não reconhecer a alteridade: é sempre nós (civilizados) e os outros (selvagens), mas enquanto os últimos se bastam a si próprios, os civilizados vivem às custas deles. O selvagem simplesmente é, livre e sem rótulos, ele só passa a ser selvagem por obra e graça da civilização.


Justamente por ser tão civilizado é que Israel é ele mesmo inimigo da civilização, uma vez que sua estratégia sempre girou em torno da destruição das instituições alheias, financiamento de grupos religiosos para minar grupos árabes laicos (como no caso do Hamas, financiado para enfraquecer a laica Fatah) e pela destruição física da civilização ou bolsões civilizacionais dos seus adversários (como o caso do Líbano). 

O paradoxo de Israel é o paradoxo da civilização ele mesmo, de sua insustentável leveza que o faz tender contra si mesmo a se devorar. Israel engendra seus inimigos, não é que ele crie inimigos selvagens, mas que ele traz um paradigma civilizatório -- copiável até como forma de resistência a ele mesmo -- que ele devora e não aceita -- nem pode aceitar -- sua universalização pelos outros: ele engendra, assim, inimigos irracionais que servem ao seu discurso, mas que podem liquida-lo tal como fizeram os romanos com os "bárbaros".

Há quem diga que os palestinos não existiam antes de Israel. Fale que eles não passavam de gentes dispersas, de forma selvagem, por aquelas terras. Há quem veja algo de mal nisso, afirmando ou rebatendo tal afirmação, mas o fato é que essa afirmação é verdadeira: os palestinos simplesmente viviam ali e pouco importava qualquer palestinidade. Sua existência é fruto da resistência ao poder, ao déspota que veio de longe, e engendrou pela negação da vida vivida naquelas terras uma subjetividade: eis aí que emerge o palestino, do mau encontro com a colonização no seu auge tecnológico, trazida de maneira tão irônica quanto cruel justamente pelo povo que foi a maior vítima dela, cuja chegada negou-lhes a vida.

Do mesmo modo que o índio não era índio antes do mau encontro com os europeus -- portanto, os índios sempre foram minoria e, por isso, índio é ontologicamente minoritário -- o palestino só é palestino depois do mau encontro com Israel, isto é, só aí que a territorialidade da Palestina é fixada, não antes. A Palestina não desaparece, apesar de todos os poderosos esforços para tanto, pois ela, ironicamente, nasceu de uma invasão. E os judeus, trazidos pelas mãos do sionismo em fuga, encontram-se diante de uma outra encruzilhada: a saída sempre esteve em reconhecerem a sua própria orientalidade no processo de retorno -- como diria Ury Avnery -- não em reafirmarem a identidade com o fenômeno que os vitimou, qual seja, o ocidentalismo; enquanto o fizerem, serão os romanos ou gregos voltando, mas jamais os judeus.
Fonte: O Descurvo

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