PICICA: "A Justiça telemidiatizada não soluciona o problema do pão da população, mas pode contribuir muito para a fermentação do circo. Por quê? Porque não se pode esquecer que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa (alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Nietzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximado da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer."
JULGAMENTO DO MENSALÃO
A telemidiatização da Justiça
Por Luiz Flávio Gomes em 06/11/2012 na edição 719
Se o STF flertava – já há algum tempo – com sua incondicionada adesão à
era do populismo penal midiático, típico da sociedade do espetáculo
(Debord), agora não existe mais dúvida. Sejam todos bem-vindos ao mundo
do espetáculo judicial telemidiático. Como funciona a Justiça
telemidiatizada? Não quero valorar, apenas descrever.
Em primeiro lugar, já não podemos falar em processo, sim, em teleprocesso. Não temos mais juízes, sim, telejuízes. Não mais sessões, sim, telesessões. Não mais votos, sim, televotos. Não mais o público, sim, teleaudiência. Se no campo das democracias populistas latino-americanas o que prepondera é o telepresidente, na era da Justiça telemidiatizada o que temos é o telerelator, telerevisor etc.
Não há dúvida que com o telejulgamento ganhamos em espetáculo (estética), mas corre-se sempre o risco de se perder em segurança, porque o poder dos holofotes pode fazer da prudência, do equilíbrio e da sensatez estrelas que brilham pela ausência.
Outro paradigma
A Justiça se tornou muito mais percebida. Agora conta com teleaudiência, com rating. Para usar um bordão famoso, nunca na história deste país os ministros se tornaram conhecidos pelos seus nomes, que estão se transformando em marcas (estrelas midiáticas) e, dessa forma, começam a ter um alto valor político-mercadológico.
A espetacularização da Justiça populista não é uma vara mágica que resolva seus conhecidos problemas, ao contrário, a telejustiça é muito mais morosa e, tal como uma telenovela, gasta um semestre para desenvolver o enredo de um teleprocesso (prejudicando o andamento de centenas de outros).
O STF, na sua nova função de telejulgador populista, está lavando a alma do povo brasileiro (disse um órgão midiático). E também nos proporciona (como toda televisão) tele-entretenimento, com acalorados “bate-bocas”, entrecortados por suaves e inteligentes telemensagens de Ayres Britto do tipo “o voto minerva me enerva”.
A Justiça telemidiatizada não soluciona o problema do pão da população, mas pode contribuir muito para a fermentação do circo. Por quê? Porque não se pode esquecer que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa (alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Nietzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximado da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer.
O STF acaba de se sucumbir definitivamente às racionalidades da sociedade do espetáculo. Resta saber se ainda vão remanescer lampejos de serenidade para impedir que princípios jurídicos clássicos como o da legalidade, proibição de retroatividade da lei penal mais severa etc., não se tornem meros tigres de papel.
Na medida em que a Justiça começa a se comunicar diretamente com a opinião pública, valendo-se da mídia, ganham notoriedade tanto os rasteiros anseios populares de justiça (cadeia para todo mundo, prisão preventiva imediata, recolhimento sem demora dos passaportes dos condenados, fim dos recursos, ignorem a justiça internacional) como a preocupação de se usar uma retórica populista, bem mais compreensível pelo “povão” (“réus bandidos”, “políticos bandoleiros”, “a pena não pode ficar barata”, “Vossa Excelência advogado para o réu” etc.).
Frenesi generalizado, porque agora o paradigma é outro, é o emotivo, o voluntarista, o performático. O telejuiz deixa de ser um terceiro equidistante para se transformar num ator midiático, daí a lógica dos reiterados pedidos – entre eles – de réplica e tréplica, que denotam perfil de parte (falando com o seu público).
Mundo melhor
O maior temor, nesse contexto, é o de que esses novos personagens da telejustiça deixem de cumprir o sagrado papel democrático de balança contramajoritária. Não poucas vezes, como sublinha com frequência o ministro Gilmar Mendes, para fazer justiça o juiz tem que decidir contra a vontade da maioria. Mas como contrariar a maioria quando a telejustiça assume a lógica das democracias populistas de opinião?
São novos megadesafios para os novos supertelejuízes, que ainda devem recordar que, no campo do direito penal, a convicção de que a voz do povo é a voz de Deus constitui um risco incomensurável. As balizas da justiça, quando deixadas sob o comando do povo ou da pura emoção, ficam totalmente cegas (a história de Jesus Cristo que o diga).
Aos tradicionais quatro “pês” que habitam nossas cadeias (pobre, preto, prostituta e policiais) a telejustiça está agregando uma quinta categoria, constituída dos políticos e seus satélites orbitais (banqueiros, bicheiros, construtores, dirigentes petistas, tucanos privataristas etc.). Não há como não reconhecer que os teleprocessos são altamente politizados. Mas nem por isso devem revigorar nossa memória, como bem sublinhou Tarso Genro, sobre a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, da era stalinista, que dizia: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov”. Será que a era da telejustiça protagonizada por supertelejuízes será capaz de nos proporcionar um mundo melhor e mais justo?
***
[Luiz Flávio Gomes é doutor em direito penal, fundou a rede de ensino LFG; foi promotor de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.professorlfg.com.br]
Em primeiro lugar, já não podemos falar em processo, sim, em teleprocesso. Não temos mais juízes, sim, telejuízes. Não mais sessões, sim, telesessões. Não mais votos, sim, televotos. Não mais o público, sim, teleaudiência. Se no campo das democracias populistas latino-americanas o que prepondera é o telepresidente, na era da Justiça telemidiatizada o que temos é o telerelator, telerevisor etc.
Não há dúvida que com o telejulgamento ganhamos em espetáculo (estética), mas corre-se sempre o risco de se perder em segurança, porque o poder dos holofotes pode fazer da prudência, do equilíbrio e da sensatez estrelas que brilham pela ausência.
Outro paradigma
A Justiça se tornou muito mais percebida. Agora conta com teleaudiência, com rating. Para usar um bordão famoso, nunca na história deste país os ministros se tornaram conhecidos pelos seus nomes, que estão se transformando em marcas (estrelas midiáticas) e, dessa forma, começam a ter um alto valor político-mercadológico.
A espetacularização da Justiça populista não é uma vara mágica que resolva seus conhecidos problemas, ao contrário, a telejustiça é muito mais morosa e, tal como uma telenovela, gasta um semestre para desenvolver o enredo de um teleprocesso (prejudicando o andamento de centenas de outros).
O STF, na sua nova função de telejulgador populista, está lavando a alma do povo brasileiro (disse um órgão midiático). E também nos proporciona (como toda televisão) tele-entretenimento, com acalorados “bate-bocas”, entrecortados por suaves e inteligentes telemensagens de Ayres Britto do tipo “o voto minerva me enerva”.
A Justiça telemidiatizada não soluciona o problema do pão da população, mas pode contribuir muito para a fermentação do circo. Por quê? Porque não se pode esquecer que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa (alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Nietzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximado da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer.
O STF acaba de se sucumbir definitivamente às racionalidades da sociedade do espetáculo. Resta saber se ainda vão remanescer lampejos de serenidade para impedir que princípios jurídicos clássicos como o da legalidade, proibição de retroatividade da lei penal mais severa etc., não se tornem meros tigres de papel.
Na medida em que a Justiça começa a se comunicar diretamente com a opinião pública, valendo-se da mídia, ganham notoriedade tanto os rasteiros anseios populares de justiça (cadeia para todo mundo, prisão preventiva imediata, recolhimento sem demora dos passaportes dos condenados, fim dos recursos, ignorem a justiça internacional) como a preocupação de se usar uma retórica populista, bem mais compreensível pelo “povão” (“réus bandidos”, “políticos bandoleiros”, “a pena não pode ficar barata”, “Vossa Excelência advogado para o réu” etc.).
Frenesi generalizado, porque agora o paradigma é outro, é o emotivo, o voluntarista, o performático. O telejuiz deixa de ser um terceiro equidistante para se transformar num ator midiático, daí a lógica dos reiterados pedidos – entre eles – de réplica e tréplica, que denotam perfil de parte (falando com o seu público).
Mundo melhor
O maior temor, nesse contexto, é o de que esses novos personagens da telejustiça deixem de cumprir o sagrado papel democrático de balança contramajoritária. Não poucas vezes, como sublinha com frequência o ministro Gilmar Mendes, para fazer justiça o juiz tem que decidir contra a vontade da maioria. Mas como contrariar a maioria quando a telejustiça assume a lógica das democracias populistas de opinião?
São novos megadesafios para os novos supertelejuízes, que ainda devem recordar que, no campo do direito penal, a convicção de que a voz do povo é a voz de Deus constitui um risco incomensurável. As balizas da justiça, quando deixadas sob o comando do povo ou da pura emoção, ficam totalmente cegas (a história de Jesus Cristo que o diga).
Aos tradicionais quatro “pês” que habitam nossas cadeias (pobre, preto, prostituta e policiais) a telejustiça está agregando uma quinta categoria, constituída dos políticos e seus satélites orbitais (banqueiros, bicheiros, construtores, dirigentes petistas, tucanos privataristas etc.). Não há como não reconhecer que os teleprocessos são altamente politizados. Mas nem por isso devem revigorar nossa memória, como bem sublinhou Tarso Genro, sobre a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, da era stalinista, que dizia: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov”. Será que a era da telejustiça protagonizada por supertelejuízes será capaz de nos proporcionar um mundo melhor e mais justo?
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[Luiz Flávio Gomes é doutor em direito penal, fundou a rede de ensino LFG; foi promotor de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.professorlfg.com.br]
Fonte: Observatório da Imprensa
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