novembro 10, 2012

"Para onde vai esse asno?", por Ikonotesk Grupo

PICICA: "É pouco provável que o asno suba em um barco e levante as amarras. Com toda certeza, Pivi fez que o colocassem no barco, afastou-o da beira da água e tirou fotos; fotos de verdade (não fotomontagens digitais). Por outro lado, A balsa da “Medusa”refere-se a um acontecimento real: o naufrágio da fragata Medusa na costa da atual Mauritânia, em julho de 1816. Ela retrata o momento em que um grupo de sobreviventes em uma pequena balsa percebe ao longe o brigue Argus. Para realizar essa obra, Géricault reuniu numerosos documentos, fez diversos desenhos e construiu um modelo em tamanho menor da balsa. O quadro pretende expor, por meio de uma reconstituição imaginária, um evento real. Ao contrário, a foto de Pivi é um registro visual fiel de uma realidade fictícia: ficar à deriva nas ondas não é a condição usual dos asnos. O asno flutuante é realista, mas enigmático. Afinal, o que pode significar essa construção de imagem?" 

CULTURA
Para onde vai esse asno?

Duas obras, duas épocas. Ao aproximar-se de A balsa da “Medusa”, de Théodore Géricault, o asno fotografado sobre um barco por Paola Pivi revela algumas características do mundo real: amorfo, fragmentado, resignado. Um mundo que numerosos artistas se contentam em refletir, sem instaurar uma distância crítica  

por Ikonotesk Grupo

(O asno de Paola Pivi em exposição no Centro Pompidou, em Paris)

Para onde vai a economia num espaço de especulação financeira? Para onde vai a democracia em um Estado que abdica de seu poder de intervenção econômica? E para onde vai esse asno colocado em um barco à deriva no mar?

Mistério.

Pelo menos no que se refere ao asno, sabe-se que foi Paola Pivi, artista de renome internacional, que em 2003 o colocou em um barco, fotografou e o vem mostrando para nós há anos, sem que possamos saber onde ele está.

Mas por que se interessar por um asno errante, quando parece que a época oferece outros temas de preocupação? Talvez porque, ao examiná-lo cuidadosamente, nossa visão ganharia acuidade, inclusive em relação a outras áreas de interesse.

Para fazer isso, devemos colocar lado a lado a fotografia de Pivi e a representação de outra embarcação: A balsa da “Medusa” (1818-1819),do pintor Théodore Géricault.

É pouco provável que o asno suba em um barco e levante as amarras. Com toda certeza, Pivi fez que o colocassem no barco, afastou-o da beira da água e tirou fotos; fotos de verdade (não fotomontagens digitais). Por outro lado, A balsa da “Medusa”refere-se a um acontecimento real: o naufrágio da fragata Medusa na costa da atual Mauritânia, em julho de 1816. Ela retrata o momento em que um grupo de sobreviventes em uma pequena balsa percebe ao longe o brigue Argus. Para realizar essa obra, Géricault reuniu numerosos documentos, fez diversos desenhos e construiu um modelo em tamanho menor da balsa. O quadro pretende expor, por meio de uma reconstituição imaginária, um evento real. Ao contrário, a foto de Pivi é um registro visual fiel de uma realidade fictícia: ficar à deriva nas ondas não é a condição usual dos asnos. O asno flutuante é realista, mas enigmático. Afinal, o que pode significar essa construção de imagem?

Em Pivi, o horizonte é vazio. Em Géricault, percebemos um barco a distância. Os passageiros da balsa, apesar de seu sofrimento, são ativos, agitam-se, enviam sinais, olham ao longe. O asno é passivo; seu olhar, fleumático. Os náufragos, mesmo à deriva, buscam um caminho que poderia colocá-los ao abrigo do perigo; sua vela está içada. Ao contrário, o barco e o asno estão sem piloto, não têm direção nem destino, deslocam-se na água ao sabor das correntes, mas não vão a lugar algum. O conceito misterioso do asno em um barco mostra esse espírito nômade: ausência de direção e de destino, em um mundo sem projeto, sem propósito, o concreto do asno em um universo supostamente abstrato, desapego e indiferença, características talvez de uma sabedoria primordial. Mas esse nomadismo não se aplica à economia, à sociedade, aos sentimentos, ao emprego e aos bens?


Os camarões noruegueses são descascados no Marrocos e vendidos na Alemanha. A água mineral irlandesa é distribuída em Stuttgart, na Alemanha, e a água mineral italiana é enviada a Sydney, na Austrália. Os botões dos pijamas fabricados e vendidos na Suíça são costurados em Portugal. Sim, para onde vai esse asno e para onde vão nossos postos de trabalho? O asno compreendeu: em seu barco sem amarras, ele sabe que é ilusório pensar em controlar seu destino, e não há uma meta a atingir. A racionalidade é uma ilusão: flutuemos, flutuemos, acompanhemos a instabilidade, o futuro é incerto.

Mas o asno não acabou de entregar sua mensagem. A obra combina uma encenação (artefato) a uma representação (a fotografia) que se considera autêntica. É uma das características do pós-modernismo: ele se apresenta como uma reunião de pensamentos e de atividades despedaçadas, espontâneas, fragmentadas, para se camuflar, por trás de uma aparência afavelmente modesta, o caráter doutrinário de uma abordagem que ataca as “ideologias” como totalitárias.

Isso não teria relação com a doutrina liberal, que contesta dirigismo e centralismo em benefício da constelação fragmentada e dispersa das instituições financeiras privadas? O fragmentismo intervém na economia e no espaço social como um preceito primordial: tudo deve ser temporário e desagrupado. Viva o inclassificável, o movente, o que está fora do centro... Mais classes sociais, mais a multidão, as tribos, os ajuntamentos excêntricos. Uma parte da arte contemporânea amplia essa linha de pensamento instituída como princípio formal.

Assim, Claude Lévêque instalou dois grandes pneus de trator nos escritórios de um banco.1 Sua presença é suficiente: é inútil indagar sobre o porquê. As coisas enunciam sua verdade pela simples presença e somos confrontados com a evidência delas: não há nenhuma necessidade de teoria, de causalidade ou de generalização. Se nos situamos nesse plano, uma locomotiva, uma árvore, uma taça, mas também um conceito ou um desejo e, por que não, uma cotação da Bolsa, quando eles se manifestam para nós, exprimem igualmente por sua presença sua verdade, e é desnecessário se perguntar sobre sua pertinência: importa apenas sua imanência. Reencontramos esse princípio, próprio das instalações de Lévêque, “bolsões de sensações”,2 aplicado ao sistema das validações financeiras, especialmente em operações da Bolsa chamadas autorrealizadoras: mais as cotações de um título sobem, mais esse título é comprado; mais ele é comprado, mais as cotações sobem. Acredita-se e valida-se uma verdade nascida de nossas projeções e que não mantém nenhuma relação com o valor econômico real do objeto visado.

Naturalmente, o mercado de ações não esperou Lévêque para desenvolver suas possibilidades. Mas o dispositivo doutrinal da arte contemporânea conforta, valoriza, estetiza esse sistema de pensamento. A retórica lírica sobre a criatividade e a arte libertadora, ainda muito disseminada, faz sorrir. A arte pode contribuir para a emancipação da mesma forma como pode colaborar para a alienação. Uma obra não é apenas uma expressão desse ou daquele artista. Toda expressão artística se desenvolve em circunstâncias históricas, refere-se a um quadro conceitual, fornece descrições, antecipa afirmações e formula propostas. O quadro pós-moderno pode propor obras que expressem rigorosamente a visão de mundo dos artistas e seu alicerce teórico; mas essa visão de mundo está em ressonância com a ordem existente.


Ikonotesk Grupo
Coletivo de artistas plásticos


Ilustração: Herminie Philippe / AFP / Getty Images

1 Claude Lévêque, La rumeur des batailles [O rumor das batalhas], Lab-Labanque, Béthune, 2008.
2 Dossiê de imprensa do Frac-Haute Normandie a propósito de Down the street [Descendo a rua], de Claude Lévêque, 2008.



Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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