PICICA: "O filme de Abel Ferrara inicia com um
trecho de uma entrevista com Gérard Depardieu, o ator que interpreta o
protagonista do filme (o senhor Devereaux). Na entrevista, o ator
francês é interpelado pelas razões que o motivaram a aceitar o papel no
filme. Ele responde que fez essa escolha porque detesta o protagonista e
por não ser capaz de compreender os sentimentos que movem este
personagem. Essa cena inaugural, que aparece antes mesmo que os
créditos, tem um papel importante na construção discursiva do filme."
O filme de Abel Ferrara inicia com um
trecho de uma entrevista com Gérard Depardieu, o ator que interpreta o
protagonista do filme (o senhor Devereaux). Na entrevista, o ator
francês é interpelado pelas razões que o motivaram a aceitar o papel no
filme. Ele responde que fez essa escolha porque detesta o protagonista e
por não ser capaz de compreender os sentimentos que movem este
personagem. Essa cena inaugural, que aparece antes mesmo que os
créditos, tem um papel importante na construção discursiva do filme. É
por meio dela que se introduz uma cisão entre o personagem e o
espectador. Mais do que um julgamento moral diante daquilo que Devereaux
faz, o filme é um esforço de descrição daquilo que há de propriamente
incompreensivo (e, em algum sentido, monstruoso) em suas ações. Esse
esforço descritivo ganha ainda mais sentido quando se lembra que o filme
é inspirado numa situação real, a acusação de estupro ocorrida
recentemente contra Dominik Strauss Kahn, ex-presidente do FMI e
possível candidato à presidência da França. Devereaux é a versão
cinematográfica desse personagem, representando a profunda vinculação
entre poder e capital que torna possível a afirmação de um manifestação
do desejo que se torna insaciavelmente predatório. Tudo em Devereaux é
desejo, um desejo que não conhece limites. A insaciabilidade desse
desejo o configura numa (im)potência maquínica. O desejo não enxerga
nada, exceto corpos, que se transformam em peças que podem ser devoradas
e assimiladas por essa voracidade irrefreável. Pode-se dizer, assim,
que o desejo que move Devereaux funciona como uma espécie de
(im)potência dessubjetivante. Não há indivíduos, vontades ou relações
diante dele. Existem apenas corpos que podem ser sexualmente submetidos.
O alcance desse mecanismo é tal que o próprio sujeito-Devereaux é
sugado por sua voracidade: ele não mede as consequências ou efeitos de
suas ações (como o risco de perder a chance de ser presidente da
França), anulando a si próprio. Não há uma preocupação com o outro que
está diante dele, como tampouco uma preocupação séria com as
consequências que essas ações terão para si. Porém, se o desejo funciona
como esse mecanismo de anulação das subjetividades, o capital e o poder
funcionam como as contrapartidas desse processo. Quando o desejo
insaciável traz consequências imprevistas e mesmo catastróficas para o
sujeito desejante, é o capital que torna possível a reconstituição do
campo de hierarquias sociais e a configuração de diferentes formas de
subjetividade. No caso, a diferença é sempre muito nítida entre o
predador e aqueles que sofrem a voracidade do seu desejo. De um lado o
sujeito Devereaux, do outro as mulheres que ele objetifica, enquanto as
violenta e as humilha. E estas não encontram nenhum espaço de justiça
para recuperar a posição de sujeito da qual foram retiradas. Assim, a
denúncia feita pela camareira, vítima de estupro, acaba sendo arquivada
sem uma punição efetiva. E mesmo o momento do processo quando ele é
provisoriamente encarcerado, acaba se constituindo apenas num
contratempo provisório, uma espécie de acomodação entre a
dessubjetivação do desejo e a subjetivação do capital. A violência desse
processo é afirmada pelo próprio Devereaux, quando ele reflete sobre a
sua condição e se recusa a dobrar seu próprio desejo. Como ele explica,
não existe ninguém capaz de salvar ninguém. Em outros termos, Devereaux
enxerga claramente a existência de um universo desprovido de qualquer
possibilidade de redenção, afirmando apenas uma ordem baseada no
confronto entre a voragem desse desejo insaciável e a resistência de
suas presas. E é esse ser que se lança integralmente nesse movimento
predatório que se torna incompreensivo para o espectador. Não existe
satisfação ou prazer que dê conta de explicar o que lhe motiva. Por essa
razão, há sempre uma aproximação entre Devereaux e uma imagem de
monstruosidade. Uma monstruosidade que se vale da ausência mesma de
redenção no mundo. Por isso, o filme gira em torno daquela recusa
inaugural. Contra esse desejo que não encontra limites, o único gesto
possível é a recusa odiosa enunciada por Depardieu.
Fonte: Ensaios Ababelados
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