PICICA: "Este texto opera com uma
hipótese: a junção da crise hídrica com a crise brasileira. Ele procura
atribuir um sentido positivo à ideia de ficção política. Trata-se de concebê-la
como da ordem do lógico-empírico."
Crise política lacaniana: São Paulo
Este texto opera com uma
hipótese: a junção da crise hídrica com a crise brasileira. Ele procura
atribuir um sentido positivo à ideia de ficção política. Trata-se de concebê-la
como da ordem do lógico-empírico.
I
Habermas assinala que para fazer
um diagnóstico do presente há de adotar-se um ponto de vista “evolutivo” de uma
explicação de um passado situado no futuro. Jamais esquecendo que a tradição
pesa como chumbo no cérebro dos vivos. O diagnóstico só tem sentido em um marco
de uma formação discursiva da vontade
ilustrada, isto é, em uma argumentação na qual é preciso justificar por que
em determinadas situações determinados sujeitos deveriam escolher determinadas
estratégias e normas de ação em lugar de outras.
Como ciência do Real, a ciência
dialética da política se move na história universal evitando a simples narração
ou a teorização da história. A narração intervém na história universal através
do significante tradição. Mas só se concebermos a tradição como algo para além
do hábito, do costume. É preciso concebê-la como lógica do espectro do passado,
como lógica do simulacro político. A ciência política em tela concebe a
história universal como a instalação ex
nihilo do inconsciente político, de formas de racionalidade e de lógica do
simulacro político. O inconsciente político não é criado por um
significante-mestre – como no caso do inconsciente do campo freudiano –, ao
contrário, ele é instalado ex nihilo,
parcialmente, como cadeia de significantes. O inconsciente político é
articulado em uma matriz espaço-temporal. Ele tem uma história. O funcionamento
da cadeia significante opera pela sobredeterminação. Na história universal, o Urstaat sobredetermina o inconsciente
político na aurora da civilização arcaica. Os trabalhos de hidráulica (drenar
água de terrenos encharcados, irrigação) são parte da lógica de um aparelho de
captura do excedente nos grandes vales aluviais do Egito ou da Mesopotâmia. O
significante riqueza (=excedente) está associado diretamente ao Urstaat. Segundo Godelier, este
dispositivo se instala quando o aproveitamento de dados naturais impõe a
cooperação em grande escala das comunidades particulares com o fim de realizar
grandes trabalhos de interesse geral que estão além da capacidade das forças dessas
comunidades, tomadas separadamente como indivíduos particulares. Outros
significantes vão fazer parte da história universal. Para Marx, a ciência real
da economia moderna só começa quando a análise teórica se desloca do processo
de circulação para o de produção, quando o capital assume uma forma racional,
pois “o capital de juros é também a forma arcaica do capital” (Marx: 388). O
capital surge como uma forma econômica irracional. Se o Urstaat opera na história como um significante de conservação do
modo de produção (Marx: 381), o capital comercial atua como um significante
dissolvente dos modos de produção (Marx: 382). Trata-se ainda de uma forma de
capital quase irracional. Na história universal, o inconsciente político é uma
cadeia cuja inteligibilidade depende desta dialética do significante. Além do
capital dissolvente, outros significantes dissolventes participam de tal
dialética, como o estado de guerra freudiano e a anarquia branca. Mas não é só
o Urstaat que atua no sentido da
conservação e da estabilização da cadeia gerando ordem externa, com o uso da
violência sem limite, e ordem interna através da criação do aparelho de Estado
psíquico. Neste espaço, ele faz uma junção com o sistema de parentesco. Se há
um deslocamento no lugar da sobredeterminação, por exemplo, para o capital
comercial, a cadeia passa a funcionar pela dialética negativa dissolvente dos
modos de produção. Mas como assinala Marx, esta ação dissolvente depende, antes
de mais nada, da solidez e da estrutura interna do antigo modo de produção. Na era
moderna, o lugar da sobredeterminação é ocupado pelo modo de produção
capitalista que faz pendant entre o capital moderno e o Estado moderno. Fazer
pendant significa inscrever no inconsciente político duas formas racionais,
como duas metades semelhantes, que vão dominar a política mundial. O Estado
moderno é uma forma da história universal que introduz no Estado a ideia e a
prática do uso da violência legítima. Se o Urstaat
é um poder sem limite, o Estado moderno é o avesso disso, pois ele é um poder
com limite, um poder cujo limite é dado pelo discurso do direito moderno. O Urstaat é uma forma de dominação
não-legítima, pois ele é uma articulação do discurso do senhor. Este é uma
forma de poder despótica que articula, primariamente, a relação senhor-escravo.
Trata-se de um poder não-legítimo. Desde a antiguidade arcaica, tal forma de
poder despótica existe como um significante da história universal (Marx: 381).
O Urstaat é um significante
não-periódico da história universal, ele faz o inconsciente político existir
como uma cadeia volátil. Na era moderna, ele é o conceito da noção descritiva totalitarismo, por exemplo. A sociologia
da dominação concebe três tipos de dominação legítima (tradicional,
carismática, racional-legal) e um tipo de dominação não-legítimo (cidade). A
falta nesta sociologia é a dominação despótica, dominação não-legítima. No
século XXI, tal forma (Urstaat)
parece estar despertando em São Paulo. A crise hídrica tem algo a ver com isso?
II
Para o diretor metropolitano da
Sabesp (Companhia de Saneamento do Estado de São Paulo), Paulo Mossato, a crise
da água em 2015 deve ser, pelo menos, igual a de 2014. Segundo a Sabesp os
reservatórios têm 93% de probabilidade de chegar ao início do próximo
período de estiagem com os mesmos 10% de capacidade de seu volume útil
observado em 2014. Para o El Pais,
embora Alkcmin siga negando, 31 das 645 cidades paulistas já adotaram o
racionamento de água por causa da crise hídrica, segundo o levantamento pelo
jornal SPTV no último mês de setembro. E as torneiras também estão secas em
diversas outras cidades do estado e em dezenas de bairros da capital paulista,
em uma espécie de racionamento branco. Antônio Carlos Zuffo é professor da
Unicamp e especialista em hidrologia. Para ele, São Paulo está à beira de um desabastecimento
por conta desse permanente gerenciamento de risco que vem sendo feito desde
2014. O governo está agindo irracionalmente, pois deveria estar fazendo um
controle chamado Curvas de Aversão a Risco (CAR). Isso significa que o volume
mensal do reservatório deveria
ser calculado e, baseado nesse volume, o governo deveria estabelecer a
quantidade de água que poderia ser retirada para a distribuição (El Pais.
02/10/2014. Política).
O governo de São Paulo não age
como um aparelho de um Estado moderno, como um Estado racional. O PSDB - que se
apresenta como o partido mais moderno brasileiro- é pautado por um agir
irracional. Ele temia que a crise hídrica pudesse acabar com duas décadas de
controle do estado. Assim, ele faz um racionamento branco que atinge apenas
certas camadas pobres da população. A ficção política projeta um cenário no
qual São Paulo pode se tornar um laboratório da história universal no
século XXI. Neste cenário, o que aconteceria, especialmente, com a cidade de
São Paulo?
A partir de Marx começou a ser
possível pensar a história universal como articulação da história da natureza
com a história da espécie humana. A reprodução da vida humana está
irrevogavelmente vinculada à reprodução material da vida. A história da
natureza é a base da história natural da espécie humana. A história natural põe
e repõe o velho problema da necessidade humana que uma sociedade moderna
possuída pela crença na onipotência da técnica científica tendia a denegar.
Na civilização arcaica, o Urstaat
estava associado à técnica do controle da água. A água é transformada em uma riqueza
como objeto do aparelho de captura do excedente. O Estado é esta forma da
história universal que surge na dialética da história da espécie humana com a
história da natureza. Trata-se de uma forma técnica, de um significante
semirracional que sobredeterminaria a cadeia de significantes do inconsciente
político da civilização arcaica. O Urstaat é esta forma de dominação não-legítima.
Trata-se de um poder sem limite no uso da violência, e de um aparelho de
captura não legítimo do excedente, da riqueza. Mesmo sendo uma forma que surge
baseada em uma lógica do interesse geral, ele é uma articulação do discurso do
mestre, de um discurso despótico gerado na relação senhor-escravo. A lógica
despótica é a lógica do interesse privado do senhor que transforma o ser humano
em escravo, em coisa do mestre. Tal discurso faz a lógica privada do
inconsciente político subsumir a lógica pública, a lógica do interesse geral.
Trata-se portanto da dominação não-legítima arcaica. Esta figura do Urstaat não emerge na crise hídrica de
São Paulo?
Por causa da eleição, o PSDB age
irracionalmente colocando seu interesse privado de conservar o poder na frente
do interesse público racionamento da
água. O PSDB agencia a figura do Urstaat
no lugar do Estado moderno. Ele não se comporta como um partido moderno, mas
como um partido oligárquico-burguês. Ele não é regulado pela lógica do
interesse público, mas pela lógica do interesse privado partidário, pela lógica
do privatismo oligárquico, ou seja, pela lógica da apropriação privada da
riqueza pública (água). O discurso do mestre oligárquico articula o PSDB
tornando-o uma repetição burguesa do Brasil colonial. Assim, o PSDB mostra que
ele é capaz de governar o Urstaat
para enfrentar, se necessário, o estado de guerra freudiano, a anarquia branca,
a crise de hegemonia... Ele se torna uma figura do Brasil profundo, do Brasil determinado
pelo inconsciente político colonial. E como associação política do século XXI,
ele age como o partido burguês brasileiro cuja racionalidade, ou falta de
racionalidade, é determinada pela lógica da oligarquia política híbrida.
No plano nacional, o PSDB é o
partido que se beneficiou de uma aceleração histórica na construção do Urstaat. No início de setembro, Carlos
Montenegro, dono do Ibope, disse que Marina Silva ganharia a eleição de Dilma
Rousseff por uma diferença de 20 milhões de votos válidos (UOL). Para ele,
Aécio Neves no segundo turno era da ordem do impossível. Ele tinha esquecido
que a política brasileira é como nuvem? Setembro foi o mês de uma vasta e
intensa operação para “desconstruir” Marina Silva. Formado pelo governo
federal, PT, PSDB, Organizações Globo, Folha de São Paulo, Ibope , DataFolha e
quejandos, o “comitê central” da oligarquia política híbrida” é o semblante de
um fenômeno político que se repete no Brasil: o Príncipe infame. É verdade que, inicialmente, setores ilustrados do
aparelho de comunicação se entusiasmaram com o carisma de Marina Silva e uma
fração liberal do capital saudou Marina como uma alternativa à vontade de hegemonia
do capitalismo de Estado. Esta fração do capital identifica o Urstaat pelo avanço do capitalismo de
Estado no Brasil. No entanto, a lógica
do interesse geral da oligarquia política híbrida se impôs avassaladoramente. O
Príncipe infame é um significante forjado por uma materialidade política
volátil que desencadeou uma campanha infame para aniquilar Marina. A campanha
infame repetiu a campanha de Collor contra Lula da eleição de 1989. No entanto,
há uma diferença em relação ao Príncipe infame Collor de Mello. Em 2014, o
Príncipe infame é uma figura do estado de guerra freudiano na política
brasileira. Tal Príncipe significou a defesa, em um momento grave, do interesse
geral da oligarquia política híbrida. Ele foi para a batalha para evitar o fim
do modelo político em tela. Sua lógica diabólica reflete a lei de todo
significante político: a lei da volatilidade. No primeiro turno, PT e PSDB se
uniram contra a possibilidade do fim do reinado da oligarquia política híbrida.
O interesse geral desta se materializou em uma vontade infame:
Glócester (Ricardo III) – Labor
bendito, meu soberano senhor! Se há alguém nesta nobre assembleia que, por um
falso informe ou suspeita injusta, me acreditava seu inimigo; se
involuntariamente, ou num momento de raiva, cometi alguma ação que ofenda aos
que aqui estão presentes, desejo fazer uma amigável
conciliação. Ter uma inimizade, é para mim a morte! Odeio isto e desejo o amor de todos os homens de bem.
Começo por vós, senhor, e peço-vos uma paz sincera, que pagarei com meu perpétuo serviço (Shakspeare: 602).
A campanha infame consistiu em
inculcar na população a queda paulatina de Marina nas pesquisas do Ibope e do
DataFolha. Tais institutos trabalhavam a possibilidade de Aécio Neves ir para o
segundo turno com Dilma. Por que isso foi um passo gigantesco na construção do Urstaat? A ida de Aécio para o segundo
turno significa que as urnas não são livres; que a eleição é dominada,
distorcida, pelos dispositivos de poder da oligarquia política híbrida. Dilma
venceu com 41, 58% dos votos válidos (43, 2 milhões de leitores); Aécio obteve
33, 56% dos votos (34, 8 milhões); Marina 21, 32% (22,1 milhões de eleitores);
19% se abstiveram. Estes 19% ou são o voto niilista, ou são o voto daqueles que
não se inscrevem simbolicamente na política. 88 milhões de eleitores votaram
pela continuidade do modelo político. Sua decisão é o motor de uma reprodução
ampliada do Urstaat. O discurso do
mestre articula o Urstaat através da
transformação do eleitor em escravo político de tal discurso. O eleitor
tornou-se coisa de um senhor, ou
seja, do Urstaat. Este é o comitê da
oligarquia política híbrida. No segundo turno, o eleitor-coisa vai decidir quem
será o seu senhor nos próximos quatro anos, quem vai dirigir o Urstaat no mergulho em águas profundas da
crise brasileira. O eleitor-coisa vai decidir entre duas vias políticas. Ou ele
escolhe o simulacro de populismo getulista, ou seja, o populismo oligárquico
pós-moderno que é essencialmente a vontade de repetir o capitalismo de Estado
como posição hegemônica no bloco no poder. (O populismo petista é uma junção de
populismo russo com populismo getulista. O populismo russo é a matriz simbólica
do estalinismo. O populismo petista só é inteligível como objeto político pela
lógica do simulacro). Ou o eleitor-coisa escolhe a burguesia oligárquica do
sudeste: o neoliberalismo autárquico. Tanto o Urstaat populista (estalinista) quanto o Urstaat burguês (neoliberal autárquico) estão
sujeitos à metamorfose, ao serem rearticulados como Estado despótico capitalista.
A crise brasileira do século XXI
pode produzir uma transformação na matriz simbólica espaço-temporal. Pode
ocorrer um deslocamento histórico-temporal na política com a transição do
Brasil colonial para o Brasil do século XIX. Neste século, o principal problema
político foi a conservação da unidade do país, ou seja, evitar a desintegração
do Império. Pedro II foi o significante individual que arquitetou a
autoconstrução do Urstaat imperial
com o sentido claro de evitar a lógica do pior. A desintegração geopolítica do
Brasil foi o que caracterizou a crise brasileira do século XIX. A crise
brasileira do século XXI põe e repõe (repetição) o problema da unidade do país.
A produção do contemporâneo brasileiro se caracteriza pela virtual
desintegração da República.
Se Marina não partir para a
construção da Rede Sustentabilidade, o espartaquismo marinista (rebelião dos
escravos) deixará de ser uma alternativa à oligarquia política híbrida na crise
brasileira. O caminho para a construção do partido luxemburguista pós-moderno não
é uma linha reta!
III
O Estado, o capital, a guerra, o
estado de guerra freudiano, o aparelho de Estado psíquico e a anarquia branca
são significantes materiais da história universal. O Estado despótico (Urstaat) é um aparelho de captura do
excedente e um poder sem limite que sobredetermina a cadeia destes
significantes na aurora da civilização arcaica. Ele é uma dominação
não-legítima. A questão da legitimidade do Estado é uma obra esboçada na Atenas
da época clássica. Nesta, o discurso da filosofia se institucionaliza na
cidade-estado. Com ele são postas sistematicamente em questão e submetidas a
exame a pretensão de legitimidade das interpretações míticas e religiosas do
mundo. No entanto, a cidade-estado é determinada, em última instância, pelo
modo de produção escravista. Esta determinação significa a articulação dela
pelo discurso do mestre. A cidade-estado é determinada, em última instância,
pelo inconsciente político da antiguidade clássica. Para Freud, o Estado romano
não foi uma obra fundada no amor – no discurso do mestre – embora a religião
fosse do interesse do Estado e este se achasse impregnado dela (Freud: 137). A
República romana é uma forma racional de Estado impregnado pela religião, ou
seja, uma forma racional que faz pendant com a lógica do credo quia absurdum. Na era moderna, ocorre a institucionalização
de discursos nos quais se supunha que deviam ser postas continuamente em
questão e submetidas a exame as pretensões de legitimidade vinculadas a
questões práticas e decisões políticas. Neste momento, na Inglaterra do século
XVII e depois no continente e nos EUA (com precursores, certamente, nas cidades
renascentistas do Norte da Itália), emergiu o espaço público burguês e em
conexão com ele as formas representativas de governo – a democracia burguesa.
Como um poder com limite, ou seja, articulado pelo direito moderno, o Estado é
o uma obra da época moderna. Ele é o significante Estado como monopólio legítimo
do uso da força. Weber fez uma sociologia sobre a gênese do Estado moderno. Mas
o guia mais seguro para concebê-lo é certamente a crítica da economia política.
Nesta, o modo de produção capitalista é uma produção ex nihilo. Se desconsiderarmos a lógica teleológica da burguesia
como classe-Sujeito da história moderna, o capital moderno é uma produção ex nihilo. O Estado moderno também é uma
produção ex nihilo. O método de Marx
é a chave para compreender a produção da cadeia de significantes, em geral.
Na era moderna, o Estado emerge
como um fenômeno de pacificação da sociedade ocidental, como um fenômeno do
“processo civilizatório”. Ele aparece como uma técnica capaz de jogar para a
periferia da cadeia de significantes o estado de guerra freudiano e extirpar da cadeia
de significantes a anarquia branca. O Estado moderno também não produz o
aparelho de Estado psíquico. A civilização moderna tem que se articular no
espaço psíquico com o supereu cultural freudiano. O discurso do mestre é
substituído pela hegemonia. Para Hegel, a era moderna se define pela emergência
do Estado-ético ou Estado-hegemônico, um Estado regulado pelo uso da razão. Ele
representa o fim da história política universal. Em algum momento do século XX,
o fim da história universal chegou ao fim. O totalitarismo é a emergência do
inconsciente político na política moderna. Ele transforma o Estado racional em
um fenômeno da lógica do insignificante. Em algum momento da história do século
XX, a história da natureza objetiva lança o planeta em direção ao reino da
necessidade. No início, o ecologismo foi uma vontade de potência de um discurso
que foi institucionalizado amplamente, inclusive, no âmbito do capital, dos governos, das instituições multilaterais, das
universidades, etc. Um discurso que introduziu uma racionalidade no tratamento
da questão ambiental. Mas acabou saturando a política mundial ao tornar-se um
discurso milenarista. Com ele, o fim da história retorna como fim da vida na
Terra. Félix Guattari confessou seu medo de que a ecosofia fosse transformada
em uma ideologia degradadora da natureza, do socius, da psique
(Guattari: 15, 28). Para evitar isso, a ecosofia
deveria, em cada foco existencial parcial, fazer da práxis ecológica um
esforço
para detectar os vetores potenciais de subjetivação e de singularização.
Então,
como ela se transformou em uma ideologia milenarista saturando a
estrutura de
comunicação mundial? É preciso entender o fenômeno da ecosofia
ideológica no
sentido de Baudrillard. Para ele, cada fato - político, histórico,
cultural - está dotado de uma energia cinética que o arranca de seu
espaço e o projeta no
hiperespaço. Neste, os fatos supracitados perdem todo o sentido, uma vez
que jamais regressarão. A
sociedade em rede digital é um acelerador de partículas que quebram
definitivamente a órbita referencial das coisas (Baudrillard: 9).
Baudrillard
não foi capaz de conceber a perda de sentido como objeto a (objeto da pulsão). Isso jogaria o pensamento de Baudrillar para
a órbita lacaniana. Assim seria possível pensar o pós-modernismo com a crise
política lacaniana. Esta permite pensar o poder que produz a ausência de
sentido como um agenciamento de pulsões (objeto a), como um significante material que desarticula o RSI (Real/Simbólico/Imaginário)
a partir subsunção dele ao Real. O mecanismo básico do capitalismo mundial –
Capitalismo Mundial Integrado (CMI) – é a foraclusão da lógica do sentido como
articulação da política mundial. Com o CMI a política pode se transformar em
uma categoria do Real. Assim a política se revela como fenômeno não integrado
ao inconsciente político. Trata-se da política para além do inconsciente
político.
No “Ocidente” do século XXI, São
Paulo surge como uma possível fusão da história da natureza com a história da
espécie humana na crise política lacaniana. Na concepção tecnicista da
natureza, esta deve ser o objeto da realização das pulsões e vontades humanas.
Trata-se da natureza objetivada pelo trabalho social; da natureza sob domínio
da razão instrumental. O ecologismo é uma luta sem quartel contra tal concepção
de natureza. Mas ao cair no milenarismo, ele acabou funcionado como um discurso
capaz de domar na espécie humana o medo do fim da vida na Terra, de acostumar a
espécie humana com a ideia de queda, com a imagem do abismo. Em relação à crise
ambiental, a política mundial é inercial.
São Paulo está à beira do abismo?
Os jornais e especialistas na questão hídrica dizem que sim. O governador do
PSDB – reeleito com 57, 3% de votos válidos- diz que não. O eleitor confiou na
palavra do governador. Para ele, o ato de fala de Alckmin é verdadeiro. Não se
trata de uma ação estratégica guiada pela mentira, pelo engodo, pelo despistar,
pela manipulação, pelo pacto de silêncio mafioso. Uma estratégia para ganhar a
eleição no primeiro turno. No debate do dia 30/09/2014, o candidato da
FIESP/PMDB Paulo Skaf declarou: “o problema não é a falta de água, é a falta de
obras. Com obras não falta água nem em áreas do deserto”. Este ato de fala não
sugere que a política paulista de 2014 aponta para a foraclusão do significante
crise paulista? Trata-se de uma
articulação da crise hídrica com a crise brasileira (Silveira. 2014). A
crise política lacaniana é a foraclusão do significante crise brasileira na política
- local ou nacional. A crise é o Real que não para de se não se inscrever no
Simbólico. Ela faz do governo um dos impossíveis freudianos. Ela é a ausência
do significante capaz de submeter o inconsciente político ao uso da razão
ilustrada. Única via para evitar a lógica do pior. No Camboja, o Kmer Vermelho
evacuou Phnom Pehn em nome do comunismo. A cidade era uma árvore de corrupção
capitalista que deveria ser arrancada pela raiz. Na “marcha da morte” para o
interior do país, uma parcela substancial da população morreu. O Kmer Vermelho
foi a versão asiática e “comunista” do Príncipe infame. A crise paulista não
pode tomar de assalto o lugar do Kmer Vermelho? O Kmer Vermelho não pode
significar para São Paulo a crise do Estado, a desintegração da cidade? A
junção da crise paulista com a crise brasileira pode tornar o Estado um
aparelho ineficaz no enfrentamento com o estado de guerra freudiano e com a
anarquia branca que emergirão por causa da crise política lacaniana. O reino da
necessidade pode desintegrar o estado.
Quando a anarquia se instalou na
Rússia depois da revolução bolchevique, o governo de Lenin instalou o “terror
vermelho”. Tratou-se do primeiro esboço de Urstaat
socialista, do Estado como um poder sem limite. Tal poder funcionava através
dos tribunais revolucionários e das comissões extraordinárias – acima dos
sovietes –, julgando sumariamente e fuzilando, inclusive, os intelectuais.
Trata-se de uma época sob o domínio do estado de guerra freudiano (o lumpesinato
tomou de assalto as grandes cidades, inclusive realizando um atentado quase
letal contra Lênin); sob o choque da guerra civil de classe; sob o choque do
banditismo coletivo. Era do Exército insurgente anarquista de Makhno e da
revolução quase anarquista de Kronstad; dos Exécitos brancos de Deniken,
Kolchak e quejandos. O Urstaat
planificado construído por Stalin bebeu nesta fonte leninista do terror
vermelho, quando a necessidade histórica exigiu a destruição dos camponeses. Se
São Paulo for assolada por condições históricas com a mesma potência
destruidora da Rússia bolchevique, causa empírica do Urstaat leninista, como o Estado paulista vai reagir? Ao enfrentar
a multidão de junho de 2013, o governo paulista agiu como esboço de Urstaat.
São Paulo é um momento da crise
brasileira como junção da história da natureza com a história da espécie
humana. Mas trata-se também da forma geopolítica da crise política lacaniana
que torna o ato de governar impossível. O governo reage à crise como uma figura
irracional do inconsciente político regulado pelo discurso do mestre. Ao lidar
com a natureza objetiva, um partido moderno (PSDB) fracassa como política
pautada pela racionalidade. Ele funciona como sinthoma da crise política lacaniana. No poder
federal, o PSDB vai enfrentar a crise brasileira como um partido moderno ou
como um partido regulado pelo discurso do mestre? Ele vai conceber o Urstaat
burguês como a única via
política para dobrar a crise brasileira? Ele vai adotar a tecnologia
desenvolvida pela oligarquia no Brasil colonial que tratava a política
pelo
agenciamento do Real? Ele vai usar as pulsões do inconsciente político
da
população como a pedra angular de uma política agenciada pelo discurso
do
mestre? Ele vai acabar com o fluxo, cada vez mais fraco, de
racionalidade que
ainda sustenta a possibilidade ou do Estado-hegemônico, ou do Estado
moderno?
As pulsões da população não inscritas no simbólico são os significantes
foracluídos do grande Outro. A foraclusão é a rejeição de um
significante
primordial para fora do universo simbólico do sujeito-população. O
Nome-do-Pai
é o conceito da função paterna, o significante fundamental, justamente
aquele
que fica foracluído na psicose. Ele não é integrado no inconsciente como
no
recalque. A psicose mergulha a cadeia de
significantes no Real. Se os
significantes da cadeia simbólica retornam no Real sem serem integrados
no
inconsciente político, isso quer dizer que o Real se confunde com um
alhures do
sujeito político. Nesta situação política, no lugar do ato de fala
racional, a
política passa a ser o império que se exprime através de gestos,
alucinações, delírios, sugestão, funções e ritos fáticos (Malinovski)
etc. Na estrutura da comunicação do espaço público, a lógica do credo quia absurdum faz do discurso do
mestre o dispositivo de articulação da política. A lógica foi descrita por Freud
de um modo simples. Escreve Freud - Acho
que agora posso ouvir uma voz (objeto a, ou objeto parcial da pulsão) solene me
repreendendo: “É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo
contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo” (Freud: 132).
A crise brasileira é o
significante fundamental foracluído do inconsciente político brasileiro. Ele é
o significante do campo da ciência política lacaniana homólogo ao significante
Nome-do-Pai do campo freudiano. Por que isso é fundamental? Porque a sua
simbolização torna possível o governo como uso da razão ilustrada. Isso evita o
domínio da política pelo inconsciente político ou, simplesmente, pelo Real. A
foraclusão do significante crise brasileira – ele não é integrado ao
inconsciente político, retornado no Real – determina que governar é impossível.
Trata-se da política subsumida ao Real
das alucinações, dos delírios e do credo
quia absurdum; da política que usa o objeto a para tapar o buraco no grande Outro; da política articulada pelo
discurso do mestre, articulada pela voz e o olhar do mestre. O objeto a tapa o buraco no Simbólico, tal objeto
se realiza como vida das pulsões que faz a desarticulação do RSI. A crise
política lacaniana é o Real como desarticulação do RSI. Gilberto Freyre
concebeu a história brasileira marcada pelo supereu do Pai oligárquico. Isso
significa um fio de racionalidade. Mas a desarticulação do RSI sustenta o poder
despótico do discurso do mestre como um poder sem limite, um poder
não-legítimo. Trata-se de uma situação que pode ser caracterizada por uma
montagem que significa a ausência de lógica racional. A crise lacaniana pode
ser definida pelo deslocamento dos significantes dissolventes – estado de
guerra freudiano, anarquia branca, crise hídrica, crise econômica orgânica, crise
de hegemonia etc. – para um ponto de condensação ou fusão - a foraclusão do
significante crise brasileira da estrutura de comunicação pública. A rejeição
do significante crise brasileira equivale em termos de potência de
desintegração da República à rejeição dissolvente do Nome-do-Pai no
inconsciente freudiano.
A crise política lacaniana ou
crise brasileira tem sua raiz na era FHC. Possuído pelo neoliberalismo autárquico,
FHC não entendeu que a única saída para o Brasil era o encaixe do país no capitalismo corporativo mundial.
Para
completar tal quadro desalentador, a desintegração do capitalismo
moderno
autárquico no século XXI significa a perda de uma forma racional de
capitalismo
que ocupava uma posição hegemônica no bloco no poder. Trata-se de uma
forma de racionalidade antinômica ao domínio da estrutura simbólica pelo
discurso do
mestre oligárquico na crise brasileira republicana.
Um espectro do passado ronda São
Paulo e o Brasil. O espectro da crise de desintegração do Império do século
XIX. Tal tradição pesa como chumbo na política brasileira do século XXI. Ela
quer se repetir pela lógica do simulacro. Para São Paulo, a lógica do espectro
significa a desintegração do estado. Para o país, ela significa a desintegração
da República.
A crise política lacaniana está
instalada na política mundial pela foraclusão da lógica dos espectros do
futuro. Ao foracluir irreversivelmente a luta de classes do centro da política mundial, o
capitalismo oligárquico mundial foi além da modernidade. Ele produziu a
rejeição da razão ilustrada no inconsciente político dos povos. Trata-se da
foraclusão de toda e qualquer emancipação? Esta tornou-se uma categoria do
Real?
BIBLIOGRAFIA
BAUDRILLARD, Jean. A ilusão do fim. A greve dos acontecimentos.
Portugal: Terramar. 1992
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus.
1991
FREUD. Obras completas. O mal-estar na civilização. RJ: Imago. 1974
MARX. O capital. Livro 3. v. V. Cap. XX. Observações históricas sobre o
capital mercantil. SP: Difel. 1985
SHAKESPEARE. Obras completas. v. III. Ricardo III.RJ: Nova Aguilar. 1988
SILVEIRA. http://politicajosepaulobandeira.blogspot.com.br/2014/09/crise-brasileira-critica-da-razao.html
UOL: http://glamurama.uol.com.br/Fonte: José Paulo Bandeira
Nenhum comentário:
Postar um comentário