dezembro 08, 2014

"Direito e cultura política totalitária", por José Paulo Bandeira

PICICA: "No Brasil, a história do Direito pode ser abordada pela dialética estabelecida entre um simulacro de cultura política liberal sustentada pela comunidade jurídica – sintetizada nas Constituições liberais – e as culturas políticas oligárquica e totalitária. Oliveira Viana designou o simulacro de liberalismo pelo significante efetivo “idealismo de nossa elite” (Vianna: 10-11). Florestan Fernandes concebeu a cultura política totalitária como um conceito de política clausewitzniano invertido: a política brasileira é a guerra por outros meios (Silveira. 2000: 30). Trata-se de um conceito realizado como significante-prático pela cultura política totalitária getulista, pela cultura totalitária militar e pela cultura totalitária lulo-stalinista no século XXI. Em Florestan, o Estado autocrático burguês faz da burguesia brasileira o sujeito histórico da cultura política totalitária (Fernandes: 218). Já a cultura política liberal só existe como ficção (simulacro) sustentada pela comunidade jurídica idealista e pelo parlamento no momento da confecção das Constituições liberais. Ao tecer Constituições liberais, o parlamento funcionou como significante da política como simulacro de simulação. No discurso político, o parlamento se realizou como uma manifestação do inconsciente político brasileiro. A prática do judiciário é um sincretismo mau temperado de simulacro de liberalismo com culturas políticas oligárquica e totalitária. No entanto, a comunidade jurídica parece acreditar que o Direito brasileiro é um direito positivo que continua a tradição do Direito liberal brasileiro. Como no Brasil a comunidade científica não considera isso uma coisa séria, o país ignora totalmente o fundo do buraco no qual está vivendo."

Direito e cultura política totalitária


A contraciência dialética da política faz laço com a linhagem das contraciências como a etnologia e a psicanálise (Foucault: 391). Na superfície discursiva dela, o Direito é apropriado como um objeto dialético
I
Partindo de Marx, o notável marxista russo Pasukanis definiu o Direito como um particular sistema de relações sociais (Pasukanis: 8): “Acaso las relaciones económicas son reguladas por los conceptos jurídicos? No surgen, por el contrario, las relaciones jurídicas de las relaciones económicas?” (Marx. 1975: 13) Para Marx, é impossível pensar o Direito sem a determinação sobre ele da lógica do valor e das formas do capital. O direito como objeto de uma contraciência marxista da política só se tornou possível na sociedade burguesa. Só esta gerou todas as condições necessárias para que o significante jurídico fosse plenamente determinado pelas relações sociais. No entanto, Marx também pensou o Direito como uma forma ideológica, como uma dimensão fundamental da superestrutura na história universal das civilizações. Trata-se de fazer a crítica desta ideologia marxista sobre o Direito. A dialética do direito é um modo de construí-lo como objeto de conhecimento contracientífico. Trata-se de um movimento contrário ao pensamento jurídico que o toma como um objeto autotélico. O pensamento jurídico vê o direito como uma atividade ou faculdade capaz de determinar por si mesma a própria finalidade, os próprios objetivos e o sentido de sua existência. O problema maior da comunidade jurídica é conceber o Direito como um fenômeno autoexplicativo, como algo que tem sentido por si mesmo. O significante heterônomo é ex abrupto conjurado pelas comunidades jurídicas. Assim, o Direito torna-se a ideologia do Direito da comunidade jurídica. Trata-se da lógica fetichista da mercadoria existindo por meio dos significantes ideológicos do Direito. O maior dos neokantianos, Hans Kelsen definiu o direito como autoexplicativo por ser um conjunto de normas. Isso é o que o distingue da lógica da facticidade. Ele subscreve que: “O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, é recebido pelo fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, de forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação” (Kelsen: 4). Trata-se de uma concepção autotélica do direito que atribui a ele uma autonomia absoluta em relação ao capitalismo como um significante fatal da história universal; e também uma autonomia absoluta em relação ao modo de produção especificamente capitalista. Kelsen concebe o direito como fetichismo da norma. Como lógica fetichista do direito, a norma ocupa o lugar da mercadoria no fetichismo da mercadoria. Concebido como relação social, o direito deixa de trabalhar no cérebro dos vivos como fetichismo da “norma-mercadoria”.
Para conceber a existência objetiva do direito não é suficiente conhecer o seu conteúdo normativo. É necessário saber se este conteúdo normativo é realizado no mundo da vida pelas relações sociais. Para a comunidade jurídica autotélica, no limite de sua atividade puramente técnica nada existe além das normas (Pusakanis: 57); ela pode identificar o Direito com a norma sem se interrogar sob a constante tensão entre validade e facticidade no exercício do poder jurídico. Para ela, basta que a lei estatal seja o supremo princípio normativo, ou, para empregar a expressão técnica, a fonte do Direito. Tal lei é o Bem supremo. Isso é a ética da comunidade jurídica autotélica, que prova que o Direito não escapa da lógica heterônoma.
A comunidade jurídica autotélica não consegue conceber que todos os elementos existentes na relação jurídica, inclusive o próprio sujeito, não são criados pela norma. Na história universal, a existência de uma economia mercantil e monetária é naturalmente a condição a priori sem a qual todas as normas concretas não possuem qualquer significado. Esta condição torna possível que o sujeito do direito possua um substrato material na pessoa do sujeito econômico egoísta que a lei não cria, mas que encontra posto diante de si. Onde não existe este substrato, a relação jurídica correspondente é, a priori, inconcebível (Pasukanis: 63-64). Acredito que tal formulação ilumina o funcionamento do significante-kelsen como arcano da comunidade jurídica autotélica.        
No entanto, tomar o Direito como forma determinada pelas relações sociais econômicas – lógica do valor e formas do capital – cria um problema grave: a concepção economicista do Direito. Este é a matriz simbólica do marxismo totalitário que existiu como totalidade acabada no populismo stalinista. Tal matriz nega a autonomia relativa do Direito em relação à estrutura econômica. Tal concepção economicista do direito foi objeto de um desenvolvimento teórico e ideológico pelo marxismo russo. Para Stucka, o Direito não se apresenta como uma relação social específica- dotado, portanto, de autonomia relativa -, mas como o conjunto de relações em geral, como um sistema de relações que correspondem aos interesses da classe dominante e que salvaguarda tal interesse pela violência organizada (Pasukanis: 53). Tal concepção economicista faz do Direito um mero instrumento da lógica do interesse da classe dominante. Trata-se da concepção instrumentalista do Direito, deste concebido como uma Coisa que a classe dominante põe e dispõe a serviço de sua dominação. Nesta perspectiva, ele jamais é concebido como uma dimensão da articulação hegemônica da relação Estado/sociedade. Ele é concebido como um instrumento da violência organizada do Estado (da classe dominante) sobre a sociedade. Trata-se de uma concepção despótica do Direito que funciona no sentido de transformá-lo em uma ideologia política a priori de “legitimação” da violência organizada do Urstaat, do Estado arcaico, do Estado despótico oriental (Marx. 1971: 436; 1985: 381). O Urstaat é o Estado impensável para o pensamento do direito positivo. Para este um Estado não submetido ao Direito é impossível. (Kelsen: 327). A concepção de Lenin de que o Estado é apenas a violência organizada de uma classe sobre outra toma o Direito como um simulacro do direito moderno. Para Lenin, o Estado democrático de direito (Kelsen: 328) é um impossível freudiano e pura simulação do Direito. Tal concepção é a denegação no inconsciente político russo do direito moderno, do Estado moderno como um fenômeno em choque – virtual e empírico - com o Urstaat, com o Estado absolutista. Assim, o Estado soviético se transformou na continuação do Estado absolutista tzarista por meio do socialismo realmente existente.
Marx havia escrito no seu Crítica ao Programa de Gotha que o direito burguês permaneceria no período de transição. A leitura economicista desta formulação de Marx aniquilou a concepção revolucionária e dialética da transição. O direito moderno (“burguês”) não é um modo efetivo de evitar, de esconjurar, de fazer a travessia do fantasma do Urstaat? Como um meio de prolongamento de um Estado de direito democrático, o direito moderno no período da transição socialista não significa a articulação do Estado socialista como avesso do Estado absolutista? Assim como a modernidade política, o direito moderno não é um significante da história universal da espécie humana que possibilita a travessia do fantasma do Urstaat? O marxismo totalitário operou uma ruptura radical com a modernidade política, com a ilustração e com o direito moderno. Por quê? Ele corroborou a ideia hegeliana de que a história é a repetição do discurso do mestre. Este articulou o Urstaat para além da história da civilização arcaica. 
O Direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de uma medida igual. Porém os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos distintos se não fossem desiguais) só podem medir-se pela mesma medida sempre e quando sejam tomados de um ponto de vista igual, sempre e quando tomados em um aspecto determinado. No período da transição, o direito igual se mede pelo mesmo rasero: o trabalho. Continua o direito moderno baseada na lógica do valor, na lógica do equivalente, tendo o trabalho como rasero. Na transição, o indivíduo existe como operário. Tal direito igual é um direito desigual para trabalho desigual. No fundo, todo direito é o direito da desigualdade. Para evitar o direito burguês, o direito não poderia ser igual, mas desigual. “No entanto, o direito não pode ser nunca superior à estrutura econômica nem ao desenvolvimento cultural da sociedade por ela condicionado” (Marx. 1975: 17).
Uma leitura possível de Marx, concebe a estrutura econômica e a cultura política da sociedade (mundo da vida) como os dois territórios (Lacan. 2009: 17) habitados por cadeias de significantes (econômicos, culturais) que articulam o Direito como significante dialético. Na sociedade comunista, o estreito horizonte do direito burguês é ultrapassado pela lógica de um “Direito” virtual que é o espectro do futuro: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Trata-se da reconstrução do significante Direito? A emancipação do direito moderno pressupõe uma sociedade na qual o trabalho exista ou como sublimação, ou seja regulado por um supereu cultural comunista que o torne um imperativo categórico: “trabalha”. Por isso Paul Lafargue escreveu o livro O direito à preguiça? Ele viu a transformação do Urstaat em um aparelho de Estado psíquico absolutista? Viu o fim da autonomia privada do indivíduo – o direito fundamental à liberdade de não fazer nada, se for o caso - como um caminho para um Urstaat socialista que já não é mais um Estado propriamente dito? O Urstaat sofre uma metamorfose na qual ele reinará como o fantasma arcaico em um processo de transubstanciação na sociedade comunista? Tratar-se-ia de um objeto dialético da contraciência lacaniana da política? O fantasma do Urstaat seria soberano virtualmente no inconsciente político da sociedade comunista estruturado como simulacro de simulação (Baudrillard: 177) de uma linguagem política? Seria a repetição do discurso do mestre pela lógica do “direito” comunista? O supereu despótico (“trabalha”) seria o supereu do discurso do mestre na sociedade comunista? A emancipação pressupõe também a concepção de uma natureza humana vulgarmente rousseauniana. Nesta, não existe o estado de guerra freudiano. Na sociedade comunista, o reino da necessidade está livre da pulsão de morte. Pois, tal pulsão é um epifenômeno da sociedade capitalista ou então, apenas das sociedades de classes.
A trilha do marxismo totalitário aberta por Marx ainda não foi suficientemente iluminada para que se possa fundar uma contraciência marxista da política.  No entanto, Marx estabelece um conceito dialético do Direito definido a partir de dois aspectos que podem ser antagônicos. Estes podem ser ocupados ou pela estrutura econômica, ou pela cultura (política). Neste caso trata-se de reconstruir Marx a partir da dialética hegeliana, seguindo a clareira aberta por Lacan a partir da qual se pode penetrar na floresta da contraciência lacaniana da política.
Marx é um ponto de inflexão na história intelectual do Direito. Com ele, torna-se possível pensar o Direito como um significante da história universal. A emergência do Direito faz pendant com a sobredeterminação do Urstaat na cadeia de significantes do inconsciente político na história universal. Do mundo moderno como platô, o significante Direito só pode ser lido a partir da forma mercantil do capital na civilização greco-romana. A lógica da troca de equivalentes é determinante na articulação da forma do Direito. O direito privado é o núcleo mais sólido do universo jurídico. Nele, o sujeito do direito – a “pessoa” em contraposição à coisa jurídica (o escravo) – encontra uma ancoragem na personalidade concreta do sujeito econômico egoísta, do proprietário, ou seja, do titular na lógica do interesse privado. É precisamente no direito privado que o pensamento jurídico move-se com segurança e liberdade. Nele, as construções do direito adquirem formas mais acabadas e mais equilibradas. O Aulus Aegerius no lugar do semblante (Lacan. 2009: 24) e a sombra clássica de Numerius Negidius (autor e réu no processo romano, respectivamente) tem como motor o antagonismo da lógica dos interesses privados. Tal antagonismo é tanto a condição lógica da forma jurídica, a priori, quanta a causa empírica da existência efetiva da “superestrutura” do Direito. Trata-se de um momento da história universal de acumulação de significantes. Tudo que é discurso – trata-se do inconsciente político funcionando no discurso do direito– só pode dar-se como semblante. Nele só se constrói o que é chamado de significante. O significante é idêntico ao status específico do semblante. O inconsciente político e seu funcionamento podem ser olhados pelo corpo despedaçado da história universal em meio aos numerosos significantes que percorrem o mundo. A linguagem do inconsciente político vem aos pedaços na história universal, ou seja, uma acumulação de significantes por um processo de acaso. Isso basta para acabar com toda a ilusão evolutiva ou (Lacan. 2009: 17) também teleológica da história universal. A necessidade não é uma categoria da história universal, quando esta é lida como história do inconsciente político. Os significantes  Aulus Aegerius Numerius Negidius fazem parte de uma acumulação de significantes, de um processo ao acaso, de um inconsciente político do discurso do direito. Trata-se de um aparelho de significantes que não necessita da Ideia no sentido de Platão (Lacan. 2009: 26) O discurso está além ou aquém da doxa e da episteme. Se a cultura é produção de significação (Foucault: 392) - como doxa ou ancorada na episteme (cultura científica) -, o discurso é a produção de intersignificação (Lacan. 2009: 10). Isso não deve ser entendido como produção de intersubjetividade - o mundo como síntese de possíveis fatos constituído por uma comunidade de interpretação cujos membros se entendem entre si sobre algo no mundo no interior de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente (Habermas. 1997. v. I: 11-12).     
A interrogação que não para de se inscrever no pensamento marxista é a seguinte: por que o direito privado surge na antiguidade romana, se a forma do capital mercantil existia em todo o Ocidente da antiguidade? “Era impraticável ignorar a existência de mercados numa época em que a economia grega tinha se tornado dependente do comércio atacadista e do capital de empréstimo” (Polanyi: 68). O marxismo economicista inscreve o direito na estrutura simbólica como um poder fáctico, como um significante determinado pela facticidade da lógica do valor. Como fazer a abstração do significante direito como um poder fáctico e como determinismo econômico na produção do direito? O conceito dialético do direito de Marx faz isso?
O dinheiro é o significante universal fático da lógica do valor – da cadeia de significantes econômicos – que articula o capital mercantil. Trata-se de um poder fáctico simultâneo à lógica do interesse privado. Os significantes deste território econômico são articulados por uma lógica antagônica à lógica dos significantes do território da cultura política res publicana que sustenta um poder público. O direito privado romano é constituído por uma cadeia de significantes jurídicos no processo de expulsão (Lacan. 2009: 17) dos significantes privados e públicos que atravessaram as fronteiras que os continham em direção ao território do Direito. Eles são expulsos de volta para seus territórios, mas deixam as suas lógicas que vão constituir os significantes jurídicos. A mercadoria é expulsa do território do Direito, mas a lógica que a sustenta – a da troca de equivalentes mediada pelo significante universal – permanece no território do Direito articulando o significante parceiros iguais em relação à lei, sendo a lei o significante universal. O Aulus Aegerius e Numerius Negidius são significantes constituídos pela expulsão de significantes públicos da cultura política res publicana, funcionando na cultura jurídica romana. A lógica pública – que reconstitui o antagonismo privado como uma forma da cultura política na superfície política – articula o Autor e o Réu como significantes no território jurídico. Ela reconstitui o significante ius naturale que se relaciona com o significante acquitas. Acquitas é uma intersignificação que pode ser traduzida por equiparação, isto é: um tratamento igual dado a coisas e ou relações iguais. É aquilo que obriga a reconhecer aquilo que é idêntico no substrato das coisas (relações entre homens que possam ser tratadas como coisas equivalentes) para além do vário e do acidental. O ius civile se articula em ruptura com tal lógica? Não existe na cultura política res publicana romana a distinção entre o Direito privado - representando uma relação entre sujeitos em pé de igualdade, sujeitos que tem juridicamente o mesmo valor – e o Direito público como uma relação entre um sujeito dominante e um sujeito dominado - uma relação de superioridade/subordinação entre dois sujeitos na qual um tem mais valor jurídico que o outro. Em determinado período da história da República, patrícios e plebeus encontraram através da cultura política res publicana um equilíbrio de antagonismos no território do Direito. Segundo Kelsen, a relação típica do Direito público é a que existe entre o Estado e o súdito. Neste caso, trata-se do Direito funcionando através do discurso do mestre; o direito funciona como relação de “poder” ou de “domínio”, como poder fáctico (Kelsen: 296). {O direito existe determinado pela facticidade, pela lei da causalidade (Kelsen: 3). No entanto é preciso pensar a facticidade não como lógica factual. Pensá-la como lógica do artefato (Lacan. 2009: 12).
(A distinção entre fato e artefato pode ser pensada pela distinção entre “natureza em si” e “natureza objetiva” de Marx. Ele concebe a natureza em si como um substrato do qual o espírito depende contingentemente. O espírito tem como pressuposto a natureza que é o seu fundamento. Hegel considerava o espírito como fundamento absoluto da natureza. Marx supõe algo parecido a uma natureza em si que tem prioridade sobre o mundo humano, uma natureza que precede à história humana como fato. Ao mesmo tempo a natureza se media a si mesma através do processo reprodutivo que representa o trabalho social. O trabalho social cria as condições fácticas da reprodução possível da vida social (e para Habermas as condições transcendentais da possível objetividade dos objetos da experiência). É simultaneamente um processo natural que regula nosso intercâmbio material com a natureza e é mais que um processo natural - uma operação transcendental que constitui o mundo. Portanto, embora pressupondo a natureza como algo existente em si, o homem tem acesso à natureza dentro da dimensão histórica iluminada pelo processo de trabalho. A expressão natureza objetiva se refere não a natureza em si, mas a natureza que se constitui objetiva para nós já transformada pelo poder do controle técnico sobre ela (MacCarthy: 140-141). Trata-se da natureza como artefato. Na teoria do direito materialista a distinção entre fato natural e artefato (fato jurídico) é mantida (Kelsen: .307). Mais adiante, veremos como ela é essencial para pensar a prisão como poder fáctico. Este seria da lógica factual ou da lógica artefatual? Fáctico ou artefáctico? A prisão como campo de concentração é a facticidade real, sumamente real, que o real é mais hipócrita ao promovê-la do que a língua (Lacan. 2003: 263).  A facticidade real é fato ou artefato? Pergunta retórica? A prisão é um poder específico que pode não ser um poder do Estado, quando ela não está subsumida ao poder do Estado, não observa normas (jurídicas) que a regulam (Kelsen: 305). Trata-se de um poder inanimado, poder morto, poder espectral anterior ao poder animado, ao poder vivo como instrumento do poder do Estado. Quando a lógica do espectro governa a prisão como campo de concentração, trata-se de uma lógica factual ou artefatual, lógica fáctica ou artefáctica? O espectro encontra-se na lógica factual-virtual. Isso significa o simulacro de vida humana na cadeia de significantes que fazem o Estado existir e funcionar. Como artefato, o Estado, como pessoa-agente não é uma realidade, mas uma construção auxiliar do pensamento jurídico. Assim, a questão de saber se uma certa função é função do Estado não pode ser dirigida `a existência de um fato (Kelsen: 307).
O campo de concentração é um significante fáctico da cultura política totalitária. No século XX, a cultura política totalitária – em suas grandes matrizes imaginárias (Stalinista e nazista) – subsumiu o populismo do século XIX, originariamente russo e americano. A matriz simbólica totalitária é a repetição do discurso do mestre como vontade de instalar o Urstaat. O fantasma do Urstaat pilota a cultura política totalitária no mundo da vida. O campo de concentração nazista se apoia na destruição das raças inferiores para garantir a supremacia da raça eleita. No Brasil, a prisão funciona como campo de concentração? A prisão não é o lugar da raça historicamente inferior, um lugar de negros e, por metonímia, dos mestiços como “raça” inferior, como quer certa antropologia brasileira? “A “raça” é um conceito científico elaborado pela reflexão sobre a dinâmica das relações sociais, quando se manifestam estereótipos, intolerâncias, discriminações, segregações ou ideologias raciais” (Ianni: 205). [Com a globalização, “Juntamente com os movimentos migratórios, o desemprego cíclico e estrutural, a formação da subclasse, a terceiro-mundialização das grandes cidades, não só nos países dominantes, justamente com tudo isso desenvolve-se o racismo” (Ianni: 177). A globalização é o motor da cultura política totalitária na Europa e em outras regiões. Mas o “narcisismo das pequenas diferenças constitui a estrutura existencial da racialização das relações humanas (Freud: 136)]. A mestiçagem já foi objeto de reflexão importante no Brasil do século XX e eleita como o pensamento mais democrático da cultura brasileira. A lógica da prisão não é a lógica do discurso do mestre que faz da senzala uma prisão durante à noite ou durante o dia? A senzala não é o equivalente do campo de concentração no Brasil colonial e imperial? A prisão brasileira não é a senzala do século XXI?  Como campo de concentração-senzala, a prisão brasileira é o significante fáctico que sobredetermina a cadeia de significantes jurídicos que articula a ordem jurídica brasileira. Se a população é constituída pelos indivíduos que pertencem ao Estado, se ela é o domínio pessoal da vigência da ordem jurídica do Estado (Kelsen: 303, 30 5), a população carcerária pertence ao domínio fáctico do Urstaat virtual. Portanto, a ordem jurídica é, assim, sobredeterminada pela cultura política totalitária brasileira do século XXI - pilotada pelo fantasma do Urstaat no mundo da vida-  como vontade de instituir um Estado arcaico: Estado despótico capitalista.
Na civilização arcaica, a facticidade do discurso do mestre constitui a lógica artefatual da produção artesanal. Na antiguidade grega-romana, a facticidade do discurso do mestre é a lógica da produção escultural (arte factus). O discurso do capitalista é o discurso do senhor moderno como lógica da produção manufatureira complexa - lógica científica da produção da grande indústria. No Império, quando Ulpiano distinguia entre jus publicum e jus privatum pensava a esfera pública enquanto lugar da ação, do encontro de homens livres que se governam. Ele pretendia esconjurar o fantasma do Urstaat invocando a cultura política res publicana?  O direito romano res publicano não é típico, pois o Autor e o Réu não se encontram numa relação de dominação/subordinação. Eles não se encontram em uma relação fáctica articulada pelo direito, mas em uma relação legítima. Somente uma contraciência jurídica da política poderia investigar o fundo desta distinção entre Direito privado e Direito público na cultura política res publicana. Trata-se de uma investigação sobre o funcionamento do inconsciente político do discurso do direito. O marxismo totalitário a considera uma investigação inútil?   A partir do supracitado, o conceito de direito de Marx pode ser pensado como objeto da contraciência lacaniana da política. Lacan deixou uma trilha para a constituição deste campo a partir do materialismo dialético (Lacan. 2009: 27).
A autonomia relativa do direito em relação ao capital pode ser homóloga à autonomia relativa do Estado em relação ao modo de produção capitalista? Marx mostrou o funcionamento concreto da lógica da autonomia relativa no 18 Brumário de Luís Bonaparte. A reconstrução do conceito de direito pode seguir este caminho explorado por Marx na análise concreta de uma situação concreta. No texto Crítica ao Programa de Gotha, há um enunciado sustentando que o direito burguês deve sobreviver na transição socialista. Trata-se da existência do direito moderno em uma sociedade na qual o capital mercantil deixou de funcionar. O marxismo de Lenin quase funda uma cultura política anarquista anterior à revolução de 1917. Nela, o direito burguês é concebido como uma “sobrevivência”, como uma necessidade histórica: “Em relação à distribuição dos produtos de consumo, o direito burguês pressupõe, como é natural, também inevitavelmente um Estado burguês, pois o direito nada é sem um aparelho capaz de obrigar à observação das normas do direito. Daí decorre que no comunismo subsiste até um certo ponto não só o direito burguês mas também o Estado burguês, sem burguesia” (Lénine: 509). Lenin concebe o Estado burguês como aparelho ditatorial, como Urstaat, como violência organizada. Há uma incompreensão abissal em relação ao Estado. Se o Urstaat é um aparelho de captura do excedente e um poder sem limite, isso não quer dizer que o Estado na civilização arcaica seja o reino absoluto da violência. Pois o Urstaat é também um artefato produzido pelo discurso do mestre (Lacan. 2009: 25). Isso é a dominação arcaica fáctica – discursiva -, uma dominação não-legítima que não se sustenta apenas pela violência física. Talvez signifique violência simbólica, se isso não nos põe na trilha do mal-entendido.  O discurso do mestre é um artefato do universo do mito (Lacan. 2009: 17) e da técnica de dominação dos homens pela linguagem do inconsciente político. Trata-se de um instrumento de conhecimento e de construção do mundo dos objetos como forma simbólica. Ele é a produção do mundo da vida como intersignificação. Na sua forma mais acabada, o discurso do mestre é o poder simbólico como construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem axiomática. O sentido imediato do mundo (em particular do mundo social) supõe o conformismo lógico de Durkheim, ou seja, “uma concepção homogénea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância das inteligências” (Bourdieu: 9). O conformismo lógico não é a aplicação de uma certa violência simbólica sobre o mundo da vida e sobre o cérebro humano?
Lenin não percebe que o direito moderno (burguês) é também um modo de evitar o Urstaat. Para ele, o Estado democrático de direito é uma mera ficção da filosofia de Kant. Os direitos fundamentais – liberdade, direito à vida etc.- não são a evidência de que o direito moderno tece suas armas na cultura política liberal contra a existência despótica do Estado absolutista? Os direitos liberais clássicos à dignidade do homem, à vida e integridade física da pessoa, à liberdade etc. constituem interpretações e configurações do direito geral à liberdade no sentido de um direito a iguais liberdades subjetivas (Habermas. 1997. v. I: 162-163). A liberdade não é um significante cujo sentido encontra-se em seu antagonismo à servidão voluntária do discurso do mestre que articula o Urstaat? Sobre o direito positivo, é preciso sublinhar que ele não se encontra simplesmente à disposição de objetivos do poder do Estado capitalista como um medium sem estrutura interna própria (Habermas. 1997. v. I: 259). O direito positivo é portador de uma autonomia relativa em relação ao poder capitalista no Estado capitalista. A lógica da separação dos poderes estatais garante à comunidade jurídica uma autonomia relativa ao poder do capital exercido no legislativo e no executivo. As contradições das frações do capital no bloco no poder se refletem no aparelho de Estado sustentando o princípio da separação da autonomia entre os poderes. Tal dialética põe e repõe o judiciário como um poder que deve ser neutro em relação à hegemonia de uma fração do capital sobre as outras frações e ao jogo de forças delas. O judiciário deve ser o lugar do equilíbrio geral dos antagonismos entre as frações do capital e outras classes. No entanto, em certas situações críticas ele pode ser ocupado por uma determinada fração de classe        
A razão reflexiva de Marx pode ser a crítica do direito moderno, mas o seu pensamento não é uma superfície na qual há um deslocamento do marxismo totalitário para um marxismo inoculado pela cultura política liberal? Esse enunciado não transforma o pensamento de Marx em um objeto da contraciência dialética da política? Trata-se de um pensamento no qual o marxismo totalitário é suspenso pela incidência da lógica dos significantes do inconsciente político liberal nele. O direito moderno e o Estado moderno são produtos da revolução burguesa. Marx a concebe como tragédia histórica. A revolução moderna é o estado de revolução política permanente trágica para desarticular o Urstaat, como Sade enunciou: “A insurreição (contra o Urstaat), pensavam esses sábios legisladores (gregos), não é um estado moral; ela deve, no entanto, ser o estado permanente de uma república” (Sade: 175). A cultura política romana res publicana não quer sustentar um estado de revolução política permanente para evitar o Urstaat? O Império não advém, quando o estado de revolução permanente não para de não se inscrever no inconsciente político romano? Quando a República se torna um artefato do Real não integrável ao inconsciente político romano? Shakespeare estabeleceu na tragédia Júlio César a república como artefato do Real no episódio do assassinato de César:
Bruto. – Sim. Só nós devemos responder pelo que acabamos de fazer. (volta Trebônio).
Cássio. – Onde está Antônio?
Trebônio. – Fugiu, atemorizado, para casa. Homens, mulheres e crianças estão aterrorizados, gritam e correm como se fora o dia do juízo final.
Brutos. – Dai-nos a conhecer vossa vontade, Fados! Que devemos morrer, já sabemos! Só o instante e os dias que restam é o que importa ao homem (Skakespeare: 443).
Ao assassinar César, os conspiradores descobriram que seu ato não é interpretado pela elite republicana e o povo romano como um ato da revolução política permanente. Como insurreição contra o tirano. Descobriram o quê? A revolução republicana permanente contra o Urstaat (articulado pela tirania, uma figura clássica aristotélica do discurso do mestre) não para de não se inscrever no inconsciente político romano da antiguidade. O assassinato de César é um ato político da ordem do Real que não pode ser integrado ao inconsciente político como insurreição republicana permanente contra o Urstaat. Isso significa a falta do significante insurreição res publicana no inconsciente político romano. Este acontecimento é a metamorfose do povo romano res publicano (livre) em povo-súdito (ancilar) do discurso do mestre que instauraria o Império. No lugar do gozo da liberdade, encontra-se o gozo escravo: ‘captura-me”. Gozo que remete para o Urstaat imperial como aparelho de captura do excedente no território econômico da contraciência dialética da política. Por homologia entre o excedente econômico e o objeto a (mais-gozar), isso remete também para o gozo como objeto da contraciência lacaniana da política. Trata-se do mais-gozar do senhor na reconstrução lacaniana da dialética fenomenológica do reconhecimento. Tal dialética faz funcionar o inconsciente político do discurso do mestre pela prática da dominação espetacular “pão e circo”.         
Só o estado de revolução política permanente seria capaz de sustentar a modernidade política como um modo de evitar o Urstaat, de fazê-lo adormecer. A modernidade política é o avesso do Estado absolutista. O direito moderno ocupa um lugar central na modernidade política como significante-mestre da cultura política liberal. Nesta como direito fundamental, o direito à propriedade não funciona como um modo de garantir a autonomia privada do indivíduo em relação ao Estado absolutista? Ele não se enlaça metonimicamente à cadeia de significantes do direito sobredeterminada pelo significante liberdade? Existe uma discussão na comunidade jurídica que contrapõe aos direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, constitucionalmente garantidos, deveres jurídicos correspondentes por parte do Estado democrático de não violar, através de leis, a igualdade ou liberdade que forma o conteúdo dos direitos supracitados. O Estado não deve interferir na superfície individual assim protegida através de leis pelas quais esta superfície seja reduzida ou aniquilada. Uma outra corrente de pensamento não quer atribuir à pessoa jurídica do Estado o dever jurídico do mesmo Estado de garantir a igualdade e a liberdade dos cidadãos (que são reduzidos à condição de súditos). Para tal pensamento jurídico, a garantia à igualdade e liberdade traduz apenas uma exigência ético-política da garantia constitucional supracitada, dirigida à ordem jurídica (Kelsen: 318-319). Tal exigência ético-política da garantia constitucional supracitada vai ser sustentada por quais sujeitos? A lógica de que não é possível atribuir dever jurídico ao Estado – pois ele não tem como se autopunir – significa uma janela para o Estado democrático de direito se tornar uma cidadela expugnável à cultura política totalitária.          
A forma mercantil do capital articula a forma jurídica pela lógica do valor, pela troca de equivalentes. Em última instância, tal forma de capital remete para as relações dos produtores de mercadorias entre si que engendram a mais desenvolvida, universal e acabada mediação jurídica. Portanto, toda a teoria geral do direito e toda a jurisprudência “pura” aparecem como uma descrição unilateral que abstrai de todas as outras condições das relações dos homens que aparecem como proprietários de mercadorias. Como significante universal no circuito da lógica do valor, o dinheiro torna possível a forma do direito. No entanto, como poder fáctico, o poder do dinheiro não determina absolutamente o Direito. É possível evitar o determinismo econômico na produção do discurso do direito. Se bem que somos tentados na era do modo de produção especificamente capitalista a ver o discurso do direito como uma continuação da economia capitalista por outros meios. Assim, pelo economicismo, o Direito é um significante fáctico, um poder despótico. Tal concepção do Direito sustenta o Urstaat do socialismo realmente existente e uma concepção marxista totalitária da política. Na antiguidade, Aristóteles já fizera a distinção entre poder fáctico (poder despótico) e poder justo (legítimo). Este é o poder articulado pela lei justa, aquele pela lei despótica. O Direito pode ter uma existência efetiva como poder legítimo. Na era moderna, o Estado democrático de direito surge como um significante articulado pelo discurso do direito legítimo. O homo sub specie iuris articula a política pelo direito para além da política in nuce. Para Weber, “política” significaria a tentativa de participar do poder ou de influenciar a distribuição do poder, seja entre vários Estados, seja dentro de um Estado entre os grupos de pessoas que este abrange (Weber: 526). Trata-se de uma elaboração da concepção de política de Maquiavel: a política como técnica para conquistar o poder e para conservá-lo. A sociologia da política weberiana não parece ignorar nem a descoberta de Maquiavel da irracionalidade originária da existência humana como sujeito político (Lefort: 206). O discurso do direito moderno faria da política uma prática inteiramente racional? O homo specie iures cria um disfarce para a política in nuce. Mas ele não aponta para uma articulação da política pelo direito moderno capaz de esconjurar o Urstaat, o Estado absolutista através do Estado democrático de direito? Na escola do pensamento político realista, Clausewitz definiu a guerra como a continuação da política de Estado por outros meios (Clausewitz: 65). “Cada um tenta, por meio de sua força física, submeter o outro à sua vontade; o seu objetivo imediato é o de abater o adversário a fim de o tornar incapaz de toda e qualquer resistência. A guerra é pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade (Idem: 73). Em Napoleão, encontra-se a concepção de política como a continuação da guerra por outros meios. Segundo Anatole Rapaport, Napoleão transmitiu uma grande lição: o crédito da política e do poder reside na habilidade em conseguir a destruição física do inimigo (Idem: 15). Carl Schmitt definiu a política pela discriminação entre amigo e inimigo. O Inimigo é o outro, o estrangeiro, o equivalente do Estado estrangeiro (Schmitt: 51, 52). Para Schmitt, “Ao Estado como uma unidade essencialmente política pertence o jus belli, isto é, a possibilidade real de, num dado momento, determinar, em virtude de sua própria decisão, o inimigo, e combatê-lo” (Idem: 71). Tal concepção da política vê a política como a continuação da guerra por outros meios. Encontra-se em Shakespeare, o significante arcaico-moderno de tal concepção. Trata-se do Príncipe infame do drama histórico Ricardo III. O Príncipe infame é o arquétipo da concepção totalitária da política. No século XX, Stalin e Hitler são Ricardo III em carne e osso. A Ásia também teve seu Príncipe infame espetacular: Pol Pot. O fantasma da política totalitária tem como significante de corte o verbo matar o inimigo, ou os homens que estejam do lado do inimigo (Idem: 72)  
Schmitt se reporta à Platão na distinção que este faz entre dois tipos de inimigos (Polémios e ekhthrós), a distinção entre polémos (guerra) e stásis (sublevação, rebelião, “guerra civil”). A guerra entre gregos e bárbaros (inimigos naturais) é efetivamente uma guerra e a luta entre gregos são da ordem da stásis, ou seja, querelas intestinas (Derrida. 1994: 110-111). A ideia que domina é que um povo não pode fazer guerra a si mesmo e que uma “guerra civil”, que nunca é o dilaceramento de si, não pode visar a formação de um novo Estado. Para Schmitt, um Estado normal consiste sobretudo em produzir no interior dele e de seu território uma satisfação completa, estabelecer “tranquilidade, segurança e ordem”. Criar a situação normal que é a pressuposição para que as normas jurídicas possam valer, porque cada norma pressupõe uma situação normal e nenhuma norma pode ter validade para uma situação que frente a ela é totalmente anormal. No entanto, o Estado deve, em situações críticas, determinar o inimigo. Na Grécia, isso se fazia no direito político pela declaração de polémios. No direito romano, pelo significante hostis, declaração que entrava em vigor ipso facto ou vigorando em razão de leis especiais nas formas da justiça, ilimitadas ou ocultas sob paráfrases genéricas, mas sempre formas de desterro, de banimento, de proscrição, desamparo legal, colocação hors-la-loi, ou seja, formas de declaração de hostilidade dentro do Estado (Schmitt: 72). Tal concepção de política pode ser uma defesa do Estado democrático de direito? Esse realismo político não pressupõe a política determinada pelo estado de guerra freudiano? Trata-se da política como reino da pulsão de morte habitado pelas máquinas de guerra freudianas? A figura do Urstaat não se faz uma necessidade permanente para a defesa do Estado normal? Eis a concepção totalitária da política moderna que busca se legitimar nas fontes da cultura política da antiguidade: Grécia ou Roma.
Em Roma, o Direito - explicado pela forma mercantil do capital que instaura os sujeitos livres e iguais homólogos aos parceiros econômicos iguais na lógica da troca de equivalentes - significa a autonomia relativa do Direito em relação à determinação do modo de produção escravista sobre ele. A forma mercantil do capital é um significante subsumido à lógica do modo de produção escravista. Trata-se da subsunção necessária da cadeia dos significantes econômicos no inconsciente político do modo de produção escravista. Na antiguidade, para que a humanidade trabalhasse mais do que exigiam suas necessidades, para que uma parte de um Estado trabalhasse com a finalidade de manter a outra parte gratuitamente, só podia se recorrer aos escravos; por isso, introduziu-se o sistema geral da escravidão (Marx.1978: 59)    Então, como é possível a leitura dos sujeitos livres e iguais no direito privado romano?
Na era moderna, a liberdade é simplesmente a liberdade do operário de vender livremente a sua força de trabalho no mercado capitalista? Isso não ergue a concepção economicista do direito moderno? A subsunção formal e a subsunção real do trabalho ao capital eliminam a necessidade do poder político ser interior às relações de produção capitalistas. O poder político torna-se exterior às relações de produção. Trata-se da soberania da forma produtiva do capital na economia capitalista, seja do capital manufatureiro, seja do capital da grande indústria. O direito formal burguês – que regula as relações entre o privado e o público, entre o poder fáctico do dinheiro e o poder político, entre as relações econômicas e as relações políticas – tem como motor as lógicas capitalistas supracitadas. Na subsunção formal, a relação de superioridade e de subordinação substitui a escravidão, a servidão e a vassalagem, as formas patriarcais etc. A própria relação de produção capitalista gera nova relação de superioridade e subordinação que por sua vez produz também suas próprias expressões políticas (Marx. 1978: 59, 58). O capitalismo moderno é o lugar da autonomia do econômico em relação ao político. Na relação de produção, as relações de poder entre o capital e o trabalho dispensam a intervenção do Estado para garantir o funcionamento da economia. Além disso o econômico determina a forma política e a forma do Direito. Este aparece como forma ideológica. No entanto, ao regular a relação entre o capital e o trabalho, o Direito inscreve o Estado na relação de produção capitalista. Isso foi o resultado da luta de classes, das lutas do trabalho contra o poder fáctico do capital – poder despótico capitalista – no interior da relação de produção capitalista. A relação fáctica (despótica) entre o capital e o trabalho é articulado pelo direito e o sujeito capitalista assume a forma do homo sub specie iures no coração da relação de produção.   Assim, o direito formal burguês deixa de ser uma forma ideológica que habita somente o imaginário moderno. Ele se transforma no discurso do direito. Trata-se do Direito trabalhando na superfície simbólica das sociedades capitalistas. Trata-se do Direito inscrito no grande Outro, existindo como discurso do Outro. Além disso, o discurso do direito passa a disputar o lugar da soberania na relação de produção com o discurso do senhor capitalista.
Os direitos fundamentais – liberdade, direitos à vida e à propriedade – surgem antes do modo de produção especificamente capitalista. Eles surgem como um artefato ideológico ou simbólico? Ele surge em uma época na qual não havia o determinismo econômico do modo de produção capitalista sobre a superestrutura da sociedade. Tal determinismo produz o direito fáctico capitalista. O direito fáctico é uma produção artefatual das leis da causalidade do poder. O poder é um artefato. O direito emerge como um artefato discursivo em um campo estratégico de lutas políticas que não podem ser atribuídas a um Sujeito social: a burguesia. Nesse campo estratégico encontram-se uma pluralidade de sujeitos autônomos em relação a um determinismo de classe sobre eles. O intelectual que pilota tal campo estratégico não possuía adscrição sociológica de classe: ele não estava subsumido à lógica da sociedade de classe. Trata-se da época de ouro do intelectual ocidental, gerado na cultura moderna antes da soberania do modo de produção capitalista. Nesta época, a cultura moderna não é uma simples forma ideológica. A interrogação que possibilita a leitura deste campo estratégico é a seguinte: lutava-se contra o quê? A liberdade, os direitos à vida e à propriedade não significam a instauração de uma superfície política no mundo da vida em choque com o Urstaat? Não se tratava de uma luta apenas no plano imaginário. Mas de uma luta no campo simbólico. O direito moderno surge como um artefato que quer se inscrever como discurso do Outro. Que tem a vontade política de instaurar uma outra estrutura simbólica no inconsciente político ocidental - uma estrutura simbólica que seja a travessia do fantasma do Urstaat encarnado no Estado absolutista. Tal acontecimento tem como sintoma a política levada na superfície cultural, política virtual em relação à política in nuce. Trata-se da era da revolução moderna. Revolução trágica. Tragédia histórica. Marx mostrou a natureza virtual – a política articulada como ficção pela estética- dessa política na análise concreta de uma situação concreta (Marx. 1974: 336).                           
A partir do final do século XX, o poder tutelar fáctico do capitalismo corporativo mundial sobre os países produz uma transformação do direito, mesmo nos países do capitalismo tardio. “Assim como a cidadania tem sido principalmente tutelada, regulada ou administrada, também a soberania nacional passa a ser crescentemente tutelada, regulada ou administrada. Se, por um lado, é levado a limitar e orientar os espaços da cidadania, por outro lado, as estruturas globais de poder são levadas a limitar e orientar os espaços da soberania nacional” (Ianni: 17). O modo de produção flexível é o avatar do CCM no território do Direito. Ele é a vontade de que o discurso do senhor moderno (discurso do capitalista) ocupe de forma absoluta a lugar da soberania na relação de produção. Trata-se de uma desterritorialização da relação de produção capitalista articulada pelo discurso do direito. Na fase atual do capitalismo sob a soberania do capitalismo oligárquico mundial, tal capitalismo pode produzir, a longo prazo, um direito fáctico pelas leis da causalidade da soberania do discurso do capitalista sobre a política mundial. O sinthoma de tal transformação será o surgimento do Estado despótico capitalista como forma soberana inercial na cadeia de significantes da política mundial. O discurso do capitalista articulará o direito do Urstaat no século XXI? Na soberania do CCM sobre a economia e a política mundiais, o encaixe dos países ao globalismo se fazia pelas redes produtivas-científicas-tecnológicas-publicitárias-digitais. O direito capaz de regular o CCM tinha que lidar com os trabalhos científico, publicitário, digital. Este sujeito intelectual resistia à instalação do direito fáctico capitalista do modo de produção flexível. De qualquer modo, o CCM tinha que participar como classe hegemônica nos blocos de poder dos países. Se tratava de um poder hegemônico, de um poder articulado pela hegemonia. Este poder tinha que respeitar a articulação do Estado e da sociedade pelo direito. Ele não podia abolir definitivamente o Estado democrático de direito.
No capitalismo oligárquico mundial, o encaixe à sociedade capitalista se fará pelo poder fáctico da moeda, do dinheiro mundial como significante universal. O poder tutelar da oligarquia financeira mundial - sobre países, nações, cidades mundiais, espaços geopolíticos, continentes etc.-  articulará, organizará, ditará os processos históricos, políticos e culturais implodindo, de vez, a possibilidade do direito positivo se transformar em um direito procedimental. Nos blocos no poder, o poder tutelar da oligarquia financeira mundial substituirá, substitui, a soberania da articulação hegemônica da política (que sustenta o Estado democrático de direito) pela soberania do discurso do mestre. A forma do capital-dinheiro como capital fictício faz do discurso do capitalista uma cornucópia de irracionalidades econômicas. Por exemplo, “deve-se entender-se por acumulação do capital-dinheiro notadamente a acumulação desses direitos sobre a produção, acumulação segundo o preço de mercado, o valor capital ilusório dele” (Marx. 1985: 539). O domínio da riqueza imaginária (Marx. 1985: 549) sobre a riqueza real faz com que o capital fictício só possa ser integrado via imaginário ao inconsciente político capitalista.   A ilusão do valor do capital fictício é a fonte do funcionamento irracional do capitalismo global. Ele opera também uma subsunção absoluta da política à lógica privatista do inconsciente político capitalista pelo poder despótico do dinheiro mundial. O Estado despótico capitalista é o seu corolário.
No capitalismo oligárquico mundial, a lógica do jurista deve ser idêntica à lógica de Palmström: “deve ser assim porque é assim”. Isso pode ser o efeito de uma mudança histórica entre o Direito e a esfera econômica. O sistema de direito igualitário, abstrato e geral – adequado às estruturas econômicas do período clássico do capitalismo (os significantes jurídicos abarcavam a quase totalidade dos atos de circulação econômica das mercadorias) - resulta progressivamente inadequado na medida em que o sistema desenvolve sua tendência imanente à concentração oligárquica do capital e à centralização dos poderes no Estado despótico capitalista. A “evolução do capitalismo atual desbanca esquemas de interrelação social que não podem ser regulados por significantes como igualdade, generalidade e abstração jurídicas. É a era da miséria do Direito. A deterioração da função do Direito não é um fenômeno que corresponde, talvez, a uma exigência funcional do capitalismo oligárquico mundial? Neste, o Direito desenvolverá uma função marginal – que o torne guarda-noturno do sistema – sem penetrar na vida da corporação oligárquica capitalista mundial, sem levar a cabo qualquer controle dos aparelhos públicos ou privados do Estado despótico capitalista. O “Sistema capitalista” tem um interesse geral sendo definido nos vários elos da cadeia política mundial oligárquica: o Direito deve atuar em zonas substancialmente irrelevantes. Na relação entre Direito e política, esta não deve mais ser articulada pelo Direito. O consenso ou pacto político entre as elites oligárquica e totalitária deve operar a articulação da política simultaneamente com a lógica do simulacro de simulação. Estudado por Florestan Fernandes, o modelo político brasileiro deve servir de paradigma para a política mundial (Silveira. 2000: 24). A comunidade jurídica será obrigada a ver e exercer o Direito não como produto do desenvolvimento econômico e político, ou seja, o Direito como relação social. Ele deverá ser vivido pela comunidade política como modelo jurídico em função do qual se leve a cabo a organização artefáctica da realidade como um paradigma que permita conjugar as interrelações humanas. Assim, o processo de abstração jurídica tende ao autotélico cortando todo nexo genético com a estrutura econômica e com a estrutura política. É inevitável que o raciocínio jurídico se torne tautológico. A comunidade jurídica será levada a acreditar que a ciência jurídica não pode existir e funcionar como contraciência jurídica da política, pois esta teria que ser um campo transdisciplinar pilotado por um ecletismo bem temperado. O corolário disso é que o jurista é um tipo de máquina de guerra jurídica heideggeriano, um tipo humano que usa a técnica do Direito – exercício das operações lógicas jurídicas – como aparelho de Estado que exerce a violência via direito fáctico (despótico) sobre a população. Este é o sentido da técnica moderna como ferramenta, um meio diante do qual o homem pode ser senhor ou escravo. (Ou seja, ela é a materialização do discurso do mestre). A técnica é também um modo decidido de interpretação do mundo que pode determinar toda a atitude do homem e suas possibilidades (Heidegger: 45). Pode determinar toda a atitude da população e suas possibilidades como escravo do Direito, funcionando como discurso do mestre. Por que vias a comunidade jurídica pode deixar de ser uma máquina de guerra jurídica heideggeriana do discurso do direito como discurso do mestre? Numa leitura habermasiana, a técnica moderna exige um tipo de atividade implicando a dominação, seja sobre a natureza, seja sobre a sociedade. A atividade racional por relação a um fim é em virtude de sua estrutura o exercício do controle (Habermas. 1973: 5). Assim, a técnica não ocupa por metonímia um lugar na cadeia dos significantes da cultura política totalitária?    
No mundo contemporâneo, a comunidade jurídica pode funcionar como parte do aparelho de Estado psíquico. O sujeito deste aparelho é a população. Trata-se do aparelho do discurso do mestre que regerá – já rege – o Direito no capitalismo oligárquico mundial através do Estado despótico capitalista. Desde Kant em diante, o princípio de que o Direito deve ocupar-se de comportamentos e não de intenções se converteu em um postulado fundamental (Barcellona: 43). No Direito oligárquico/totalitário, este princípio será abolido – já está sendo abolido em países da América Latina – repetindo a função do Urstaat como escultor da população que deve sofrer com o sentimento de culpa se vier a se rebelar contra o Estado despótico capitalista. No lugar do povo-nação, o Urstaat - como escultor – fabricará o povo como artefato freudiano. A mais fraca intenção de se rebelar deve ser julgada sem misericórdia, sem complacência, para fazer retornar a pulsão de morte liberada pelos rebeldes contra si. A produção do contemporâneo revela-se pela dialética do Urstaat com as máquinas de guerra freudianas se apossando do mundo da vida.                                
O capital mercantil existia em toda a antiguidade greco-romana. No entanto como totalidade abstrato-formal, o Direito só se desenvolve em Roma. Então, o capital não ocupa o aspecto principal na dialética que cria o Direito em Roma. Ele ocupa o aspecto secundário. O aspecto principal é ocupado pela política republicana. Mas não se trata da política in nuce como luta entre patrícios e plebeus. Trata-se da cultura política res publicana. Esta sustenta a articulação da política pela distinção entre privado/público, entre poder privado e poder público, entre a lógica privada e a lógica pública do inconsciente político. Trata-se da emergência da linguagem política como simulacro de simulação. Em Roma, o Estado não é um epifenômeno do modo de produção escravista. A cultura política res publicana sustenta a autonomia relativa do Estado em relação ao modo de produção escravista. Trata-se de um acontecimento histórico extraordinário que levou Freud a afirmar que o Estado romano não poderia ser explicado pela psicologia do indivíduo ou pela psicologia do grupo (Freud: 137). O Direito surge em Roma como um significante dialético cujo movimento é determinado pelo antagonismo entre a cultura política res publicana e o capital mercantil. No aspecto principal, o direito romano é o resultado de um equilíbrio de antagonismos entre a lógica privada e a lógica pública do inconsciente político. A linguagem do inconsciente político ocidental - estruturada como simulacro de simulação - surge na cadeia de significantes políticos em Roma. Se a cultura política foi sobredeterminada pelo discurso res publicano, seria o caso de pensar nesta cidade-estado, o Direito articulando a política como simulacro de simulação. Tal concepção do Direito é totalmente estranha à filosofia burguesa do Direito que considera a relação jurídica como uma forma natural e eterna de qualquer relação humana. Já Habermas vê o Direito tendo como motor a cultura política, quando ela é suficientemente desacoplada da estrutura de classes (Habermas. 1997. v. I: 219). Em Roma, a cultura   res publicana é desacoplada da estrutura de classe do modo de produção escravista. Só isso permitiu que ela ocupasse o aspecto principal na dialética do significante Direito.
A cultura política moderna surge em uma época na qual a sociedade de classes ainda não determinava a política e, por extensão, a própria cultura política. Esta desponta virtualmente antes do poder fáctico do modo de produção capitalista se transformar em um determinismo econômico na articulação da sociedade capitalista. A cultura política moderna surge como um artefato da insurreição permanente contra o Urstaat, o Estado absolutista, por dentro e por fora dele.     
A propósito, se a Grécia é o momento da metabolização do significante Ocidente, Roma é o momento da produção da cadeia de significantes que articula o Ocidente. Trata-se da lei da qualidade hegeliana – transformação da quantidade em qualidade – que assinala uma ruptura – salto qualitativo -  entre Roma e Grécia. A filosofia, a cultura política, a pólis e o Direito gregos constituem uma fonte metabólica da vida romana. Mas eles não criaram o Ocidente. Em Roma, a cultura política, o Direito e a política res publicanos criaram o Ocidente como rede de significantes que contribuem para gerar um ponto de inflexão na história universal da espécie humana. Então, a história universal pode ser concebida como a dialética do inconsciente político – estruturado como um simulacro de simulação de linguagem política – com as experiências vividas – como artefato – no mundo da vida. No centro do mundo da vida encontra-se a cultura política res publicana.
Se a Grécia é o momento da metabolização do significante Ocidente, Roma é o momento da produção da cadeia de significante que articula o Ocidente. Trata-se da lei da qualidade hegeliana que distingue Roma da Grécia. O salto qualitativo que gerou o Ocidente não foi obra da filosofia, da cultura política ou do Direito gregos, mas da cultura política res publicana e do direito romano que se apropriou da metabolização grega do significante Ocidente.   

A cultura política liberal faz parte de uma dialética, ao lado da rede de causalidades econômicas capitalista, da constituição do Direito moderno. O valor é o significante universal da episteme moderna (Foucault: 214-215). No entanto, não é o significante-mestre que funda a modernidade política. No aspecto principal da dialética do direito, encontra-se a cultura política moderna. Não deve ser deduzido da lógica do valor significantes como liberdade e o direito à vida. Mesmo a propriedade é um significante dos direitos fundamentais que não é só determinado pela lógica econômica. A propriedade é a condensação da lógica econômica e da lógica da cultura política moderna. Liberdade, direito à vida e propriedade são significantes do Direito articulados pela cultura política moderna em choque com o Urstaat na forma do Estado absolutista. Na monarquia absolutista, a produção de normas jurídicas individuais no direito privado- articulação da autodeterminação com a propriedade privada – não sustenta uma clareira no interior do Estado absolutista em choque com o Urstaat? Trata-se de uma forma de produção de normas jurídicas individuais adequada ao sistema econômico capitalista, que corresponde ao princípio da autodeterminação e tem, neste sentido, caráter democrático (Kelsen: 299).
Na dialética concreta que funda a era moderna, o Direito tem no aspecto principal a cultura política moderna e no aspecto secundário a lógica da troca de equivalentes ou lógica mercantil. No modo de produção especificamente capitalista, a lógica do capital produtivo assume o aspecto principal e a cultura política liberal o aspecto secundário. A subsunção real do trabalho ao capital explica a passagem do direito moderno revolucionário para o direito positivo. Habermas vai além: “As realizações sistêmicas da economia e do aparelho de Estado, que se realizam através do dinheiro e do poder administrativo, também devem permanecer ligadas, segundo a autocompreensão constitucional da comunidade jurídica, ao processo integrador da prática social de autodeterminação dos cidadãos” (Habermas. V. I: 63). A relação entre lógica capitalista e lógica jurídica guarda uma homologia até em relação ao Estado como pessoa-agente do Direito. Marx definiu o capitalista como personificação do capital. Segundo Kelsen, o indivíduo só é considerado órgão do Estado quando é chamado ao exercício de uma função definida pela ordem jurídica nacional, ao exercício desta função através de um processo determinado da ordem jurídica. Aí, ele é a personificação do Direito. Também, “Na medida em que a função é referida à unidade da ordem jurídica e, assim, é atribuída à comunidade constituída por esta ordem jurídica, ao Estado, na medida em que ela é representada como função do Estado, esta ordem jurídica é personificada. O Estado, como ordem social, é a ordem jurídica nacional (para a distinguir da internacional) acima definida. O Estado, como pessoa, é a personificação desta ordem” (Kelsen: 309).   
A subsunção real do trabalho ao capital explica também a forma da separação entre o poder econômico e o poder político, entre a sociedade civil e o Estado etc. A subsunção real do trabalho ao capital significa que a sustentação do Estado moderno não se baseia na cultura política liberal. A materialização do Direito formal – por exemplo, direito do trabalho – significa que a cultura política liberal deixa de ocupar a posição central no aspecto secundário da dialética do Direito. A cultura política social (do Estado do bem-estar) ocupa a posição central do aspecto secundário da dialética do Direito no século XX. Habermas acreditava que a cultura política procedimental poderia substituir a cultura política social nas sociedades do capitalismo tardio. Nestas, o Direito faria a articulação da política como mediação entre o sistema político, a esfera política pública, a sociedade civil e as biografias individuais do mundo da vida (Habermas. 1997: v. I: 41; v. II: 85, 86, 92). A cultura política procedimental sustentaria uma lógica capaz de articular autonomia privada e autonomia pública, cidadã, às biografias privadas do mundo da vida. Isso seria fundamental - na formação da opinião e da vontade apoiadas nos direitos fundamentais - para a liberdade de opinião e reunião e no direito de fundar sociedades e associações (Habermas. 1997. v. II: 101). A cultura política procedimental é, simultaneamente, virtual e empírica. Mas sua soberania sobre a superfície da política permanece como “fato” virtual. A cultura política procedimental poderia retomar os significantes do direito fundamental como um modo de domesticar o Estado absolutista no século XXI (Habermas. 1977. v. II: 178). Tal cultura política procedimental teria como motor o agir comunicacional, o poder comunicacional, que se articula na sociedade civil, no mundo da vida e se direciona para a esfera pública política até alcançar o centro do sistema político, o poder de decisão política. O poder comunicacional só existe se a razão procedimental – a razão reflexiva como prática discursiva, argumentativa – for soberana na superfície política (Habermas. 1997: v. I: 276). Seria uma superfície na qual o inconsciente político não existiria. A política deixaria de existir como simulação na era da soberania do simulacro de simulação?
A cultura política comunicacional seria o modo de conter o Urstaat que desperta aceleradamente na Europa e nos EUA no século XXI? Poulantzas abordou este ressurgimento do Urstaat (“Estado autoritário”) na Europa da década de 1970 (Poulantzas: 271). Na Alemanha e nos EUA, Habermas evoca a cultura política procedimental como um modo de conter o Urstaat que instala a insegurança jurídica generalizada e que desarticula o agir comunicacional como motor da sociedade civil (Habermas. 1997. v. II: 101-102). Trata-se da desarticulação da democracia procedimental que engendra a política como superfície agenciada por uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma como modo discursivo de socialização da política implantada através do medium do Direito (Habermas. 1997. v. II: 55). Habermas é um marxista ocidental que duela com o marxismo totalitário. Sua obra é a mais clara experiência de travessia biográfica individual do fantasma do Urstaat no mundo Ocidental.
II
Como história da estrutura simbólica, a história política do Brasil se subdivide em dois grandes períodos. Durante mais de três séculos, ela foi a história da soberania da cultura política oligárquica que atravessou o Brasil colonial, o Império e abarcou a República Velha. A “Revolução de 1930” determina o fim da soberania da cultura política oligárquica sobre a política. A estrutura simbólica deixa de sustentar tal soberania. Para os historiadores, marxistas e cientistas políticos trata-se de um mistério, pois tal fenômeno não encontra explicação em processos econômicos ou político consistentes. O delírio acadêmico tomou conta da universidade com os significantes “Estado de compromisso”, crise prolongada de hegemonia entre 1930-1964 (Pereira: 125-127), burguesia industrial como sujeito da revolução burguesa brasileira etc. A comunidade intelectual tem que se resignar com a única explicação verdadeiramente positiva: A Revolução de 1930 foi obra de uma luta entre oligarquias estaduais. Chefe oligárquico de tal revolução, Getúlio Vargas é o significante que gera um furo na estrutura simbólica com sua ditadura revolucionária. O governo revolucionário governa o país sem a presença da oligarquia brasileira. Getúlio seria o grau zero da soberania da cultura política oligárquica, durante um breve momento histórico. Mas esta história não estabelece apenas uma relação negativa com estrutura simbólica que deixa de funcionar pela soberania da cultura política oligárquica. Getúlio foi o demiurgo da cultura política totalitária brasileira. Assim, abra-se um longo período histórico no qual tal cultura política vai se realizar como soberania frente a cultura política oligárquica. As conjunturas políticas podem ser periodizadas pela dialética entre tais culturas políticas associadas ao processo econômico. O espectro de populismo na década de 1930 e a “democracia populista’ (democracia despótica) a partir de 1950 são fenômenos políticos oriundos de um sincretismo bem brasileiro de cultura política totalitária com cultura política oligárquica. O significante despótico da democracia populista assinala que tal democracia é uma produção também da cultura política totalitária. Tal cultura realiza a partir da estrutura simbólica a presença do discurso do Outro (discurso do mestre) na política brasileira. Em 1950, Getúlio representa através do populismo o fantasma do Urstaat na política pela simples existência da democracia despótica. Como já foi enunciado, no século XX, o populismo se transformou em um fenômeno de realização do discurso do mestre na política. O populismo é pilotado pelo fantasma do Urstaat que se condensa na vontade política de erguer o Urstaat.
1964 aparece para a historiografia como um ponto de inflexão da história política. O marxismo toma como signo do período inaugurado pelo golpe de Estado civil-militar o termo ditadura militar. A ciência política argentina “fala” de autoritarismo burocrático. Tais “conceitos” perdem o essencial de tal período histórico. 1964 significa a produção da história pela soberania da cultura política totalitária em sua versão militar. O AI 5 (Ato Institucional) entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968. Este é o significante produzido pela cultura política totalitária que originou um Urstaat militar. Carlos Esteves Martins se referiu à política do governo Costa e Silva como populismo nacionalista (Martins: 197). Foi o único autor que concebeu a política militar como artefato da cultura política totalitária. O governo autocrático de José Sarney é outro fenômeno produzido pela cultura política totalitária, agora na versão civil. A tirania de Collor é um momento luminar da cultura política totalitária (Silveira: 2013). O voto obrigatório da Constituição de 1988 é um efeito da cultura política totalitária sobre a República democrática vigente. Trata-se de uma ideia contida no Projeto de Constituição getulista enviado à Assembleia Constituinte em 1933 (Dias: 462) que foi recusada pela Assembleia Constituinte que fez a Constituição de 1934. A modificação da Constituição de 1988 que permitiu a reeleição para presidente da República é a passagem ao ato totalitário do liberal FHC que acabou por definir a política no século XXI. Quando o PT e Lula se apossaram do poder federal, eles passaram a governar o país através de um sincretismo ou amálgama de repetição lúdica do populismo getulista (lulismo) com populismo stalinista (PT). Com Lula e o PT, a cultura política totalitária fez e desfez a política brasileira do século XXI. A cultura política totalitária lulo-petista significa uma mudança qualitativa em relação ao populismo getulista. O stalinismo petista é uma retomada do stalinismo do PCB da década de 1950 com passagem pelo populismo stalinista cubano. José Dirceu é o significante mais claro e evidente desta cultura política totalitária.
No Brasil, a história do Direito pode ser abordada pela dialética estabelecida entre um simulacro de cultura política liberal sustentada pela comunidade jurídica – sintetizada nas Constituições liberais – e as culturas políticas oligárquica e totalitária. Oliveira Viana designou o simulacro de liberalismo pelo significante efetivo “idealismo de nossa elite” (Vianna: 10-11). Florestan Fernandes concebeu a cultura política totalitária como um conceito de política clausewitzniano invertido: a política brasileira é a guerra por outros meios (Silveira. 2000: 30). Trata-se de um conceito realizado como significante-prático pela cultura política totalitária getulista, pela cultura totalitária militar e pela cultura totalitária lulo-stalinista no século XXI. Em Florestan, o Estado autocrático burguês faz da burguesia brasileira o sujeito histórico da cultura política totalitária (Fernandes: 218). Já a cultura política liberal só existe como ficção (simulacro) sustentada pela comunidade jurídica idealista e pelo parlamento no momento da confecção das Constituições liberais. Ao tecer Constituições liberais, o parlamento funcionou como significante da política como simulacro de simulação. No discurso político, o parlamento se realizou como uma manifestação do inconsciente político brasileiro. A prática do judiciário é um sincretismo mau temperado de simulacro de liberalismo com culturas políticas oligárquica e totalitária. No entanto, a comunidade jurídica parece acreditar que o Direito brasileiro é um direito positivo que continua a tradição do Direito liberal brasileiro. Como no Brasil a comunidade científica não considera isso uma coisa séria, o país ignora totalmente o fundo do buraco no qual está vivendo.      
Entre nós, a relação entre episteme e Direito tem assombrado a comunidade jurídica. Há sinais de que o não funcionamento de um direito científico na prática estatal pesa como chumbo no cérebro da comunidade jurídica. Seria uma aquisição extraordinária para a ciência se a comunidade jurídica tecesse o Direito como objeto de uma contraciência jurídica da política. Isso seria um modo de diminuir a influência das culturas políticas oligárquica e totalitária no Direito e também um modo de evitar que ele faça parte da lógica do simulacro que sobredetermina a política in nuce. O simulacro de esfera jurídica liberal (Silveira. 2000: 24) faz do Direito moderno um artefato do inconsciente político.
O ministro Gilmar Mendes acredita que o STF está a caminho de se tornar uma corte bolivariana. O bolivarianismo é a mais nova versão de populismo totalitário na América Latina. Sua influência sobre a política mundial já capturou o partido Podemos de Pablo Iglesias que aparece como uma alternativa aos partidos da oligarquia política híbrida na Espanha. A cultura política totalitária progride na Europa e não deve ser desprezado como um fenômeno periférico o domínio do criptonazista Victor Orban sobre a política na Hungria. Um fenômeno extremo como o Aurora Dourada grego é parte da cadeia de significantes populistas que fazem da Europa uma superfície política aberta à intervenção da cultura política totalitária. O populismo é a alternativa à crise do modelo oligárquico híbrido e um golpe de Estado permanente na cultura política procedimental do mundo da vida europeu? A política brasileira e a política mundial aparecem – factualmente – como duas superfícies; mas constituem – artefatualmente – uma única superfície. Trata-se de um espaço abstrato, uma coleção arbitrária de “objetos homogêneos” que não são necessariamente objetos no sentido comum do termo, senão que podem ser fenômenos, estados, funções (Eidelsztein: 22). Trata-se de uma concepção topológica da mundialização da política. A banda de Möbius não implica descontinuidade (Eidelsztein: 63). Na “topologia” lacaniana, o esquema “L” é parecido com a banda de Möbius. Trata-se de uma aparência superficial, pois as estruturas são essencialmente distintas no esquema “L”. Neste, há descontinuidade (Eidelsztein : 61-63).      
No século XIX, Joaquim Nabuco usou o termo simulacro de democracia para definir a política brasileira. No século XX, Oliveira Vianna viu a política, entre nós, como uma superfície moldada pela cultura política oligárquica e pela lógica do simulacro. Se o inconsciente político é linguagem política como simulacro de simulação, há um laço social entre ele e a política. Florestan Fernandes concebeu a modernidade política brasileira como simulacro (Silveira. 2000: 23). O século XXI revelou a política sob a soberania virtual da cultura populista totalitária em uma superfície que aparece dominada pela lógica do simulacro liberal.  No Brasil, a cultura política totalitária teve como demiurgo Getúlio Vargas no plano da biografia individual. Ela concebe a política como a guerra por outros meios. Como biografia pública, o Estado autocrático burguês é o artefato que a reproduz de modo ampliado (Fernandes: 264; Silveira. 2000: 32). Este Urstaat burguês é o artefato mais sublime da cultura política totalitária entre nós. Ele tem um papel importante na metamorfose da República democrática de 1988 em uma democracia despótica. Há uma linha de força que faz a junção entre a política brasileira e a política mundial. Trata-se da junção da cultura política totalitária com a lógica do simulacro. A história política – nacional ou mundial - é nosso referencial perdido, ela é nosso mito (Baudrillard: 69).    
A comunidade jurídica é parte do aparelho de Estado psíquico que tem como sujeito a população, se esta for composta pelos indivíduos que pertencem ao Estado, pois a população do Estado é o domínio pessoal de vigência da ordem jurídica do Estado (Kelsen: 304). Trata-se do aparelho psíquico do discurso do mestre que regerá, ou já rege em muitos países, o Direito sob a soberania do capitalismo oligárquico mundial e do artefato dele: o Estado despótico capitalista. A partir de  Kant, o princípio de que o Direito deve ocupar-se de comportamentos e não de intenções se converteu em um postulado fundamental. No Direito oligárquico-totalitário em tela, tal princípio kantiano é abolido. Disso resulta a montagem do Urstaat como escultor da população que deve sofrer com o sentimento de culpa por se encontrar em um estado de rebelião permanente, mesmo que seja virtual, contra o Estado despótico capitalista. No lugar do povo-nação, o trabalho de escultor do Urstaat manufatura uma espécie de povo-freudiano. A menor intenção de se rebelar deve ser julgada sem misericórdia para fazer retornar a pulsão de morte liberada pelos rebeldes contra si. O aparelho de Estado psíquico tem um papel crucial nesta dinâmica política. A prisão brasileira é um artefato equivalente ao campo de concentração como parte do aparelho psíquico do discurso do mestre. Ela é o significante fáctico que sobredetermina a cadeia de significantes do direito brasileiro, incluindo a comunidade jurídica; ela transforma o Direito em um instrumento despótico de um poder artefáctico que é alimentado pelos fluxos da pulsão de morte da elite. A prisão é a expressão estética grotesca do inconsciente político brasileiro. Nesta superfície política, a comunidade jurídica vê o Direito como simples técnica jurídica e se comporta como uma máquina de guerra jurídica heideggeriana.    

III
Com o globalismo, a história da natureza e a história da espécie humana instauram a contradição principal do aspecto principal da dialética da história universal, na medida em que a Terra além de ser um ente astronômico transforma-se em um ser histórico (Ianni: 29). Com o globalismo, a contradição entre o trabalho e o capital passa a ocupar o aspecto secundário da contradição principal na história universal. Isso é a causalidade da rede de significantes econômicos que explica a ausência da luta de classes como lugar central na política mundial. No aspecto principal da contradição principal da dialética da história universal, encontra-se agora a contradição sociedade versus natureza (Ianni: 28). Infelizmente, Octávio Ianni não especificou que a contradição sociedade versus natureza é a contradição entre uma cultura política produtivista (economicista) ou cultura política totalitária e a história da natureza como fonte de recursos naturais finitos, fonte de uma produção de riqueza finita. Ianni é parte do marxismo brasileiro subjugado pela dialética oca, um significante equivalente à ideologia oca (Adorno: 140). O ambientalismo dos naturalistas é a forma mais acabada de uma cultura política que se opõe à cultura política totalitária. Um Direito ambiental - que seja um artefato em defesa da natureza contra a cultura política totalitária produtivista - deve atuar efetivamente na proposta dos naturalistas de reservar uma parte do planeta para as espécies não humanas. A cultura totalitária é uma concepção de política que define a natureza pela cultura da guerra. A natureza é o inimigo que deve ser aniquilado, consumido até a última gota. Qual forma de Direito é adequada a este estado de insurreição permanente da espécie humana contra a natureza no capitalismo oligárquico mundial? Um Direito que transforma a comunidade jurídica em uma máquina de guerra jurídica heideggeriana contra a natureza. A destruição da Floresta Amazônica pela oligarquia rural capitalista se apoia amplamente em um Direito que tem como guardiã a máquina de guerra jurídica heideggeriana como expressão da cultura política totalitária no mundo da vida.  
O globalismo inaugura um novo ciclo da história, quando esta se movimenta como história universal (Ianni: 249). Neste sentido, ele recria a relação da população com o território. Trata-se de uma realidade na qual o local e o nacional, a identidade e o fundamentalismo, o povo-nação e o povo freudiano, a sociedade nacional e a sociedade mundial são simultaneamente desintegradas ou integradas em novas formações políticas. A globalização da economia capitalista, compreendendo a formação de centros decisórios extra e supranacionais, debilita ou mesmo anula possibilidades de estratégias nacionais. “As condições para a formulação e implementação de projetos nacionais são drasticamente afetadas pela globalização. Ou melhor, os projetos nacionais somente se tornam possíveis, como imaginação e execução, desde que contemplem as novas e poderosas determinações “externas”, transnacionais e propriamente globais” (Ianni: 115, 113).  O globalismo não significa homogeneização. Ele é um universo de diversidade, de tensão e antagonismo. As mesmas forças envolvidas na globalização são o motor ou causa de forças adversas que, em alguns casos, parecem a repetição do antigo de um modo novo e lúdico. A cultura populista totalitária é um exemplo perturbador desta dialética. O globalismo parece reinventar a cultura política totalitária na dialética entre o território nacional e a mundialização (desterritorialização) deste. Tal cultura seria o sintoma de uma reterritorialização do território nacional na política mundial? Mas não se trata mais da nação-moderna, mas da nação metabolizada pela mundialização. A nação torna-se um simulacro de nação-moderna. Como simulacro de Estado moderno, o Estado-nação é parte da extensão da lógica do simulacro a vastos espaços das “relações inter-nacionais”. Neste sentido, a ideia de que o direito soberano é o direito nacional torna-se um problema dilacerante em uma política mundial anárquica que não se deixa regular pelo direito internacional. Como destituir a soberania da cultura totalitária produtivista em uma política mundial na qual o Direito é tragado pela lógica do simulacro? O inconsciente político produtivista parece ser o motor localizado no aspecto principal da contradição entre a natureza e a espécie humana capitalista. Pedaços de uma comunidade jurídica mundial poderiam deixar de se comportar como máquina de guerra heideggeriana e a partir de uma contraciência jurídica da política mundial mobilizar uma contraofensiva à soberania da cultura política totalitária? A comunidade jurídica italiana - que fez a mais impressionante contraofensiva ao domínio das máfias na política da Itália - não são um exemplo palpável para o estabelecimento de uma comunidade jurídica mundial? A mundialização do Direito é uma conclusão lógica derivada da contradição principal da política mundial, a saber: a contradição entre a natureza e a sociedade.     
É possível pensar a reinvenção da cultura política totalitária na dialética nação versus globalização na política mundial. Na Europa e na América Latina, as várias versões do populismo são apenas o sintoma de uma vontade de poder cujo horizonte de sentido é a transição da soberania do capitalismo corporativo mundial para o capitalismo oligárquico mundial. Um Direito nacional não é uma forma superestrutural adequada ao Estado que corresponde a esta fase do capitalismo. Qual seria o Direito adequado ao Estado despótico capitalista? Um Direito que tem que lidar com uma cultura política totalitária que articula a política mundial de modo irregular, fragmentado e contraditório de uma sociedade mundial prenhe de diversidade, desigualdade, heterogeneidade, tensões e contradições. Trata-se de uma sociedade atravessada pela não-contemporaneidade de sua matriz espaço-temporal. “O tempo está desarticulado, consertado e desconcertado, ao mesmo tempo desregrado e louco. O mundo está fora dos eixos, o mundo se encontra deportado, fora de si mesmo, desajustado” (Derrida. 1993: 42). O antagonismo fatal entre a história da natureza e a história da espécie é o motor que anuncia que o tempo enlouqueceu. Se o Direito positivo é também o produto do processo civilizatório ocidental - base de uma matriz tempo-espacial onde o tempo está articulado, regrado e concertado - como pensar o Direito em um processo contracivilizatório de um tempo enlouquecido? O processo contracivilizatório mergulha o planeta na dialética diabólica na qual o Urstaat e suas máquinas de guerra jurídicas heideggerianas enfrentam as máquinas de guerras freudianas no deserto da política mundial. Trata-se do fim do capitalismo como processo civilizatório (Ianni: 241).   

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Fonte: José Paulo Bandeira

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