PICICA: "No Brasil, a história do Direito pode
ser abordada pela dialética estabelecida entre um simulacro de cultura política
liberal sustentada pela comunidade jurídica – sintetizada nas Constituições
liberais – e as culturas políticas oligárquica e totalitária. Oliveira Viana
designou o simulacro de liberalismo pelo significante efetivo “idealismo de
nossa elite” (Vianna: 10-11). Florestan Fernandes concebeu a cultura política
totalitária como um conceito de política clausewitzniano invertido: a política
brasileira é a guerra por outros meios (Silveira. 2000: 30). Trata-se de um
conceito realizado como significante-prático pela cultura política totalitária getulista,
pela cultura totalitária militar e pela cultura totalitária lulo-stalinista no
século XXI. Em Florestan, o Estado autocrático burguês faz da burguesia
brasileira o sujeito histórico da cultura política totalitária (Fernandes:
218). Já a cultura política liberal só existe como ficção (simulacro)
sustentada pela comunidade jurídica idealista e pelo parlamento no momento da
confecção das Constituições liberais. Ao tecer Constituições liberais, o
parlamento funcionou como significante da política como simulacro de simulação.
No discurso político, o parlamento se realizou como uma manifestação do
inconsciente político brasileiro. A prática do judiciário é um sincretismo mau
temperado de simulacro de liberalismo com culturas políticas oligárquica e
totalitária. No entanto, a comunidade jurídica parece acreditar que o Direito
brasileiro é um direito positivo que continua a tradição do Direito liberal
brasileiro. Como no Brasil a comunidade científica não considera isso uma
coisa séria, o país ignora totalmente o fundo do buraco no qual está
vivendo."
Direito e cultura política totalitária
A contraciência dialética da
política faz laço com a linhagem das contraciências como a etnologia e a
psicanálise (Foucault: 391). Na superfície discursiva dela, o Direito é
apropriado como um objeto dialético
I
Partindo de Marx, o notável
marxista russo Pasukanis definiu o Direito como um particular sistema de relações
sociais (Pasukanis: 8): “Acaso las relaciones económicas son reguladas por los
conceptos jurídicos? No surgen, por el contrario, las relaciones jurídicas de
las relaciones económicas?” (Marx. 1975: 13) Para Marx, é impossível pensar o
Direito sem a determinação sobre ele da lógica do valor e das formas do
capital. O direito como objeto de uma contraciência marxista da política só se
tornou possível na sociedade burguesa. Só esta gerou todas as condições necessárias
para que o significante jurídico fosse plenamente determinado pelas relações
sociais. No entanto, Marx também pensou o Direito como uma forma ideológica,
como uma dimensão fundamental da superestrutura na história universal das
civilizações. Trata-se de fazer a crítica desta ideologia marxista sobre o
Direito. A dialética do direito é um modo de construí-lo como objeto de
conhecimento contracientífico. Trata-se de um movimento contrário ao pensamento
jurídico que o toma como um objeto autotélico. O pensamento jurídico vê o
direito como uma atividade ou faculdade capaz de determinar por si mesma a
própria finalidade, os próprios objetivos e o sentido de sua existência. O
problema maior da comunidade jurídica é conceber o Direito como um fenômeno
autoexplicativo, como algo que tem sentido por si mesmo. O significante
heterônomo é ex abrupto conjurado
pelas comunidades jurídicas. Assim, o Direito torna-se a ideologia do Direito
da comunidade jurídica. Trata-se da lógica fetichista da mercadoria existindo
por meio dos significantes ideológicos do Direito. O maior dos neokantianos,
Hans Kelsen definiu o direito como autoexplicativo por ser um conjunto de
normas. Isso é o que o distingue da lógica da facticidade. Ele subscreve que: “O
sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, é recebido
pelo fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu
conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, de forma que o ato pode ser
interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de
interpretação” (Kelsen: 4). Trata-se de uma concepção autotélica do direito que atribui a ele
uma autonomia absoluta em relação ao capitalismo como um significante fatal da
história universal; e também uma autonomia absoluta em relação ao modo de produção
especificamente capitalista. Kelsen concebe o direito como fetichismo da norma.
Como lógica fetichista do direito, a norma ocupa o lugar da mercadoria no
fetichismo da mercadoria. Concebido como relação social, o direito deixa de
trabalhar no cérebro dos vivos como fetichismo da “norma-mercadoria”.
Para conceber a existência
objetiva do direito não é suficiente conhecer o seu conteúdo normativo. É
necessário saber se este conteúdo normativo é realizado no mundo da vida pelas
relações sociais. Para a comunidade jurídica autotélica, no limite de sua
atividade puramente técnica nada existe além das normas (Pusakanis: 57); ela
pode identificar o Direito com a norma sem se interrogar sob a constante tensão
entre validade e facticidade no exercício do poder jurídico. Para ela, basta
que a lei estatal seja o supremo princípio normativo, ou, para empregar a
expressão técnica, a fonte do Direito. Tal lei é o Bem supremo. Isso é a ética
da comunidade jurídica autotélica, que prova que o Direito não escapa da lógica
heterônoma.
A comunidade jurídica autotélica
não consegue conceber que todos os elementos existentes na relação jurídica,
inclusive o próprio sujeito, não são criados pela norma. Na história universal,
a existência de uma economia mercantil e monetária é naturalmente a condição a priori sem a qual todas as normas
concretas não possuem qualquer significado. Esta condição torna possível que o
sujeito do direito possua um substrato material na pessoa do sujeito econômico
egoísta que a lei não cria, mas que encontra posto diante de si. Onde não
existe este substrato, a relação jurídica correspondente é, a priori, inconcebível (Pasukanis:
63-64). Acredito que tal formulação ilumina o funcionamento do
significante-kelsen como arcano da comunidade jurídica autotélica.
No entanto, tomar o Direito como
forma determinada pelas relações sociais econômicas – lógica do valor e formas
do capital – cria um problema grave: a concepção economicista do Direito. Este
é a matriz simbólica do marxismo totalitário que existiu como totalidade
acabada no populismo stalinista. Tal matriz nega a autonomia relativa do Direito
em relação à estrutura econômica. Tal concepção economicista do direito foi
objeto de um desenvolvimento teórico e ideológico pelo marxismo russo. Para
Stucka, o Direito não se apresenta como uma relação social específica- dotado,
portanto, de autonomia relativa -, mas como o conjunto de relações em geral,
como um sistema de relações que correspondem aos interesses da classe dominante
e que salvaguarda tal interesse pela violência organizada (Pasukanis: 53). Tal
concepção economicista faz do Direito um mero instrumento da lógica do
interesse da classe dominante. Trata-se da concepção instrumentalista do
Direito, deste concebido como uma Coisa que a classe dominante põe e dispõe a
serviço de sua dominação. Nesta perspectiva, ele jamais é concebido como uma
dimensão da articulação hegemônica da relação Estado/sociedade. Ele é concebido
como um instrumento da violência organizada do Estado (da classe dominante)
sobre a sociedade. Trata-se de uma concepção despótica do Direito que funciona
no sentido de transformá-lo em uma ideologia política a priori de “legitimação” da violência organizada do Urstaat, do Estado arcaico, do Estado
despótico oriental (Marx. 1971: 436; 1985: 381). O Urstaat é o Estado
impensável para o pensamento do direito positivo. Para este um Estado não
submetido ao Direito é impossível. (Kelsen: 327). A concepção de Lenin de que o
Estado é apenas a violência organizada de uma classe sobre outra toma o Direito
como um simulacro do direito moderno. Para Lenin, o Estado democrático de
direito (Kelsen: 328) é um impossível freudiano e pura simulação do Direito. Tal
concepção é a denegação no inconsciente político russo do direito moderno, do
Estado moderno como um fenômeno em choque – virtual e empírico - com o Urstaat, com o Estado absolutista.
Assim, o Estado soviético se transformou na continuação do Estado absolutista
tzarista por meio do socialismo realmente existente.
Marx havia escrito no seu Crítica ao Programa de Gotha que o
direito burguês permaneceria no período de transição. A leitura economicista
desta formulação de Marx aniquilou a concepção revolucionária e dialética da
transição. O direito moderno (“burguês”) não é um modo efetivo de evitar, de esconjurar,
de fazer a travessia do fantasma do Urstaat?
Como um meio de prolongamento de um Estado de direito democrático, o direito
moderno no período da transição socialista não significa a articulação do Estado
socialista como avesso do Estado absolutista? Assim como a modernidade
política, o direito moderno não é um significante da história universal da
espécie humana que possibilita a travessia do fantasma do Urstaat? O marxismo totalitário operou uma ruptura radical com a
modernidade política, com a ilustração e com o direito moderno. Por quê? Ele
corroborou a ideia hegeliana de que a história é a repetição do discurso do
mestre. Este articulou o Urstaat para
além da história da civilização arcaica.
O Direito só pode consistir, por
natureza, na aplicação de uma medida igual. Porém os indivíduos desiguais (e
não seriam indivíduos distintos se não fossem desiguais) só podem medir-se pela
mesma medida sempre e quando sejam tomados de um ponto de vista igual, sempre e
quando tomados em um aspecto determinado. No período da transição, o direito igual
se mede pelo mesmo rasero: o
trabalho. Continua o direito moderno baseada na lógica do valor, na lógica do
equivalente, tendo o trabalho como rasero. Na transição, o indivíduo existe
como operário. Tal direito igual é um direito desigual para trabalho desigual.
No fundo, todo direito é o direito da desigualdade. Para evitar o direito
burguês, o direito não poderia ser igual, mas desigual. “No entanto, o direito
não pode ser nunca superior à estrutura econômica nem ao desenvolvimento cultural
da sociedade por ela condicionado” (Marx. 1975: 17).
Uma leitura possível de Marx,
concebe a estrutura econômica e a cultura política da sociedade (mundo da vida)
como os dois territórios (Lacan. 2009: 17) habitados por cadeias de
significantes (econômicos, culturais) que articulam o Direito como significante
dialético. Na sociedade comunista, o estreito horizonte do direito burguês é ultrapassado
pela lógica de um “Direito” virtual que é o espectro do futuro: “De cada qual,
segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Trata-se da
reconstrução do significante Direito? A emancipação do direito moderno pressupõe
uma sociedade na qual o trabalho exista ou como sublimação, ou seja regulado
por um supereu cultural comunista que o torne um imperativo categórico:
“trabalha”. Por isso Paul Lafargue escreveu o livro O direito à preguiça? Ele viu a transformação do Urstaat em um aparelho de Estado
psíquico absolutista? Viu o fim da autonomia privada do indivíduo – o direito
fundamental à liberdade de não fazer nada, se for o caso - como um caminho para
um Urstaat socialista que já não é
mais um Estado propriamente dito? O Urstaat
sofre uma metamorfose na qual ele reinará como o fantasma arcaico em um
processo de transubstanciação na sociedade comunista? Tratar-se-ia de um objeto
dialético da contraciência lacaniana da política? O fantasma do Urstaat seria soberano virtualmente no
inconsciente político da sociedade comunista estruturado como simulacro de
simulação (Baudrillard: 177) de uma linguagem política? Seria a repetição do
discurso do mestre pela lógica do “direito” comunista? O supereu despótico
(“trabalha”) seria o supereu do discurso do mestre na sociedade comunista? A
emancipação pressupõe também a concepção de uma natureza humana vulgarmente
rousseauniana. Nesta, não existe o estado de guerra freudiano. Na sociedade
comunista, o reino da necessidade está livre da pulsão de morte. Pois, tal
pulsão é um epifenômeno da sociedade capitalista ou então, apenas das
sociedades de classes.
A trilha do marxismo totalitário
aberta por Marx ainda não foi suficientemente iluminada para que se possa fundar uma
contraciência marxista da política. No
entanto, Marx estabelece um conceito dialético do Direito definido a partir de
dois aspectos que podem ser antagônicos. Estes podem ser ocupados ou pela
estrutura econômica, ou pela cultura (política). Neste caso trata-se de reconstruir
Marx a partir da dialética hegeliana, seguindo a clareira aberta por Lacan a
partir da qual se pode penetrar na floresta da contraciência lacaniana da
política.
Marx é um ponto de inflexão na
história intelectual do Direito. Com ele, torna-se possível pensar o Direito
como um significante da história universal. A emergência do Direito faz pendant com a sobredeterminação do Urstaat na cadeia de significantes do
inconsciente político na história universal. Do mundo moderno como platô, o
significante Direito só pode ser lido a partir da forma mercantil do capital na
civilização greco-romana. A lógica da troca de equivalentes é determinante na
articulação da forma do Direito. O direito privado é o núcleo mais sólido do
universo jurídico. Nele, o sujeito do direito – a “pessoa” em contraposição à
coisa jurídica (o escravo) – encontra uma ancoragem na personalidade concreta
do sujeito econômico egoísta, do proprietário, ou seja, do titular na lógica do
interesse privado. É precisamente no direito privado que o pensamento jurídico
move-se com segurança e liberdade. Nele, as construções do direito adquirem
formas mais acabadas e mais equilibradas. O Aulus
Aegerius no lugar do semblante (Lacan. 2009: 24) e a sombra clássica de Numerius Negidius (autor e réu no
processo romano, respectivamente) tem como motor o antagonismo da lógica dos
interesses privados. Tal antagonismo é tanto a condição lógica da forma
jurídica, a priori, quanta a causa
empírica da existência efetiva da “superestrutura” do Direito. Trata-se de um
momento da história universal de acumulação de significantes. Tudo que é
discurso – trata-se do inconsciente político funcionando no discurso do
direito– só pode dar-se como semblante. Nele só se constrói o que é chamado de
significante. O significante é idêntico ao status específico do semblante. O
inconsciente político e seu funcionamento podem ser olhados pelo corpo
despedaçado da história universal em meio aos numerosos significantes que
percorrem o mundo. A linguagem do inconsciente político vem aos pedaços na
história universal, ou seja, uma acumulação de significantes por um processo de
acaso. Isso basta para acabar com toda a ilusão evolutiva ou (Lacan. 2009: 17) também
teleológica da história universal. A necessidade não é uma categoria da
história universal, quando esta é lida como história do inconsciente político. Os
significantes Aulus Aegerius e Numerius Negidius fazem parte de uma
acumulação de significantes, de um processo ao acaso, de um inconsciente
político do discurso do direito. Trata-se de um aparelho de significantes que
não necessita da Ideia no sentido de Platão (Lacan. 2009: 26) O discurso está
além ou aquém da doxa e da episteme. Se a cultura é produção de significação
(Foucault: 392) - como doxa ou ancorada na episteme (cultura científica) -, o
discurso é a produção de intersignificação (Lacan. 2009: 10). Isso não deve ser
entendido como produção de intersubjetividade - o mundo como síntese de
possíveis fatos constituído por uma comunidade de interpretação cujos membros
se entendem entre si sobre algo no mundo no interior de um mundo da vida
compartilhado intersubjetivamente (Habermas. 1997. v. I: 11-12).
A interrogação que não para de se
inscrever no pensamento marxista é a seguinte: por que o direito privado surge
na antiguidade romana, se a forma do capital mercantil existia em todo o
Ocidente da antiguidade? “Era impraticável ignorar a existência de mercados
numa época em que a economia grega tinha se tornado dependente do comércio
atacadista e do capital de empréstimo” (Polanyi: 68). O marxismo economicista
inscreve o direito na estrutura simbólica como um poder fáctico, como um
significante determinado pela facticidade da lógica do valor. Como fazer a
abstração do significante direito como um poder fáctico e como determinismo
econômico na produção do direito? O conceito dialético do direito de Marx faz
isso?
O dinheiro é o significante
universal fático da lógica do valor – da cadeia de significantes econômicos –
que articula o capital mercantil. Trata-se de um poder fáctico simultâneo à lógica
do interesse privado. Os significantes deste território econômico são
articulados por uma lógica antagônica à lógica dos significantes do território
da cultura política res publicana que
sustenta um poder público. O direito privado romano é constituído por uma
cadeia de significantes jurídicos no processo de expulsão (Lacan. 2009: 17) dos
significantes privados e públicos que atravessaram as fronteiras que os continham
em direção ao território do Direito. Eles são expulsos de volta para seus
territórios, mas deixam as suas lógicas que vão constituir os significantes
jurídicos. A mercadoria é expulsa do território do Direito, mas a lógica que a
sustenta – a da troca de equivalentes mediada pelo significante universal –
permanece no território do Direito articulando o significante parceiros iguais
em relação à lei, sendo a lei o significante universal. O Aulus Aegerius e Numerius
Negidius são significantes constituídos pela expulsão de significantes
públicos da cultura política res
publicana, funcionando na cultura jurídica romana. A lógica pública – que
reconstitui o antagonismo privado como uma forma da cultura política na
superfície política – articula o Autor e o Réu como significantes no território
jurídico. Ela reconstitui o significante ius
naturale que se relaciona com o significante acquitas. Acquitas é uma
intersignificação que pode ser traduzida por equiparação, isto é: um tratamento
igual dado a coisas e ou relações iguais. É aquilo que obriga a reconhecer
aquilo que é idêntico no substrato das coisas (relações entre homens que possam
ser tratadas como coisas equivalentes) para além do vário e do acidental. O ius civile se articula em ruptura com
tal lógica? Não existe na cultura política res
publicana romana a distinção entre o Direito privado - representando uma
relação entre sujeitos em pé de igualdade, sujeitos que tem juridicamente o
mesmo valor – e o Direito público como uma relação entre um sujeito dominante e
um sujeito dominado - uma relação de superioridade/subordinação entre dois
sujeitos na qual um tem mais valor jurídico que o outro. Em determinado período
da história da República, patrícios e plebeus encontraram através da cultura
política res publicana um equilíbrio
de antagonismos no território do Direito. Segundo Kelsen, a relação típica do
Direito público é a que existe entre o Estado e o súdito. Neste caso, trata-se
do Direito funcionando através do discurso do mestre; o direito
funciona como relação de “poder” ou de “domínio”, como poder fáctico (Kelsen:
296). {O direito existe determinado pela facticidade, pela lei da causalidade
(Kelsen: 3). No entanto é preciso pensar a facticidade não como lógica factual.
Pensá-la como lógica do artefato (Lacan. 2009: 12).
(A distinção entre fato e
artefato pode ser pensada pela distinção entre “natureza em si” e “natureza
objetiva” de Marx. Ele concebe a natureza em si como um substrato do qual o
espírito depende contingentemente. O espírito tem como pressuposto a natureza
que é o seu fundamento. Hegel considerava o espírito como fundamento absoluto
da natureza. Marx supõe algo parecido a uma natureza em si que tem prioridade
sobre o mundo humano, uma natureza que precede à história humana como fato. Ao
mesmo tempo a natureza se media a si
mesma através do processo reprodutivo que representa o trabalho social. O
trabalho social cria as condições fácticas da reprodução possível da
vida
social (e para Habermas as condições transcendentais da possível
objetividade
dos objetos da experiência). É simultaneamente um processo natural que
regula
nosso intercâmbio material com a natureza e é mais que um processo
natural -
uma operação transcendental que constitui o mundo. Portanto, embora
pressupondo a natureza como algo existente em si, o homem tem acesso à
natureza
dentro da dimensão histórica iluminada pelo processo de trabalho. A
expressão
natureza objetiva se refere não a natureza em si, mas a natureza que se
constitui objetiva para nós já transformada pelo poder do controle
técnico
sobre ela (MacCarthy: 140-141). Trata-se da natureza como artefato. Na
teoria
do direito materialista a distinção entre fato natural e artefato (fato
jurídico) é mantida (Kelsen: .307). Mais adiante, veremos como ela é
essencial
para pensar a prisão como poder fáctico. Este seria da lógica factual ou
da
lógica artefatual? Fáctico ou artefáctico? A prisão como campo de
concentração
é a facticidade real, sumamente real, que o real é mais hipócrita ao
promovê-la
do que a língua (Lacan. 2003: 263). A
facticidade real é fato ou artefato? Pergunta retórica? A prisão é um
poder
específico que pode não ser um poder do Estado, quando ela não está
subsumida
ao poder do Estado, não observa normas (jurídicas) que a regulam
(Kelsen: 305).
Trata-se de um poder inanimado, poder morto, poder espectral anterior ao
poder
animado, ao poder vivo como instrumento do poder do Estado. Quando a
lógica do espectro
governa a prisão como campo de concentração, trata-se de uma lógica
factual ou
artefatual, lógica fáctica ou artefáctica? O espectro encontra-se na
lógica factual-virtual.
Isso significa o simulacro de vida humana na cadeia de significantes que
fazem
o Estado existir e funcionar. Como artefato, o Estado, como
pessoa-agente não é
uma realidade, mas uma construção auxiliar do pensamento jurídico.
Assim, a
questão de saber se uma certa função é função do Estado não pode ser
dirigida
`a existência de um fato (Kelsen: 307).
O campo de concentração é um
significante fáctico da cultura política totalitária. No século XX, a cultura
política totalitária – em suas grandes matrizes imaginárias (Stalinista e
nazista) – subsumiu o populismo do século XIX, originariamente russo e
americano. A matriz simbólica totalitária é a repetição do discurso do mestre
como vontade de instalar o Urstaat. O
fantasma do Urstaat pilota a cultura
política totalitária no mundo da vida. O campo de concentração nazista se apoia
na destruição das raças inferiores para garantir a supremacia da raça eleita.
No Brasil, a prisão funciona como campo de concentração? A prisão não é o lugar
da raça historicamente inferior, um lugar de negros e, por metonímia, dos
mestiços como “raça” inferior, como quer certa antropologia brasileira? “A
“raça” é um conceito científico elaborado pela reflexão sobre a dinâmica das
relações sociais, quando se manifestam estereótipos, intolerâncias,
discriminações, segregações ou ideologias raciais” (Ianni: 205). [Com a
globalização, “Juntamente com os movimentos migratórios, o desemprego cíclico e
estrutural, a formação da subclasse, a terceiro-mundialização das grandes
cidades, não só nos países dominantes, justamente com tudo isso desenvolve-se o
racismo” (Ianni: 177). A globalização é o motor da cultura política totalitária
na Europa e em outras regiões. Mas o “narcisismo das pequenas diferenças
constitui a estrutura existencial da racialização das relações humanas (Freud:
136)]. A mestiçagem já foi objeto de reflexão importante no Brasil do século XX
e eleita como o pensamento mais democrático da cultura brasileira. A lógica da
prisão não é a lógica do discurso do mestre que faz da senzala uma prisão
durante à noite ou durante o dia? A senzala não é o equivalente do campo de
concentração no Brasil colonial e imperial? A prisão brasileira não é a senzala
do século XXI? Como campo de
concentração-senzala, a prisão brasileira é o significante fáctico que
sobredetermina a cadeia de significantes jurídicos que articula a ordem
jurídica brasileira. Se a população é constituída pelos indivíduos que
pertencem ao Estado, se ela é o domínio pessoal da vigência da ordem jurídica
do Estado (Kelsen: 303, 30 5), a população carcerária pertence ao domínio fáctico
do Urstaat virtual. Portanto, a ordem
jurídica é, assim, sobredeterminada pela cultura política totalitária
brasileira do século XXI - pilotada pelo fantasma do Urstaat no mundo da vida- como vontade de instituir um Estado arcaico:
Estado despótico capitalista.
Na civilização arcaica, a
facticidade do discurso do mestre constitui a lógica artefatual da produção
artesanal. Na antiguidade grega-romana, a facticidade do discurso do mestre é a
lógica da produção escultural (arte
factus). O discurso do capitalista é o discurso do senhor moderno como
lógica da produção manufatureira complexa - lógica científica da produção da
grande indústria. No Império, quando Ulpiano distinguia entre jus publicum e jus privatum pensava a esfera pública enquanto lugar da ação, do
encontro de homens livres que se governam. Ele pretendia esconjurar o
fantasma do Urstaat invocando a cultura política res publicana? O direito
romano res publicano não é típico,
pois o Autor e o Réu não se encontram numa relação de dominação/subordinação. Eles
não se encontram em uma relação fáctica articulada pelo direito, mas em uma
relação legítima. Somente uma contraciência jurídica da política poderia
investigar o fundo desta distinção entre Direito privado e Direito público na
cultura política res publicana. Trata-se
de uma investigação sobre o funcionamento do inconsciente político do discurso
do direito. O marxismo totalitário a considera uma investigação inútil? A
partir do supracitado, o conceito de direito de Marx pode ser pensado como
objeto da contraciência lacaniana da política. Lacan deixou uma trilha para a
constituição deste campo a partir do materialismo dialético (Lacan. 2009: 27).
A autonomia relativa do direito
em relação ao capital pode ser homóloga à autonomia relativa do Estado em
relação ao modo de produção capitalista? Marx mostrou o funcionamento concreto
da lógica da autonomia relativa no 18
Brumário de Luís Bonaparte. A reconstrução do conceito de direito pode
seguir este caminho explorado por Marx na análise concreta de uma situação concreta.
No texto Crítica ao Programa de Gotha,
há um enunciado sustentando que o direito burguês deve sobreviver na transição
socialista. Trata-se da existência do direito moderno em uma sociedade na qual
o capital mercantil deixou de funcionar. O marxismo de Lenin quase funda uma
cultura política anarquista anterior à revolução de 1917. Nela, o direito
burguês é concebido como uma “sobrevivência”, como uma necessidade histórica: “Em
relação à distribuição dos produtos de consumo, o direito burguês pressupõe,
como é natural, também inevitavelmente um Estado burguês, pois o direito nada é
sem um aparelho capaz de obrigar à observação das normas do direito. Daí
decorre que no comunismo subsiste até um certo ponto não só o direito burguês
mas também o Estado burguês, sem burguesia” (Lénine: 509). Lenin concebe o
Estado burguês como aparelho ditatorial, como Urstaat, como violência organizada. Há uma incompreensão abissal em
relação ao Estado. Se o Urstaat é um
aparelho de captura do excedente e um poder sem limite, isso não quer dizer que
o Estado na civilização arcaica seja o reino absoluto da violência. Pois o
Urstaat é também um artefato produzido pelo discurso do mestre (Lacan. 2009:
25). Isso é a dominação arcaica fáctica – discursiva -, uma dominação não-legítima
que não se sustenta apenas pela violência física. Talvez signifique violência
simbólica, se isso não nos põe na trilha do mal-entendido. O discurso do mestre é um artefato do
universo do mito (Lacan. 2009: 17) e da técnica de dominação dos homens pela
linguagem do inconsciente político. Trata-se de um instrumento de conhecimento
e de construção do mundo dos objetos como forma simbólica. Ele é a produção do
mundo da vida como intersignificação. Na sua forma mais acabada, o discurso do
mestre é o poder simbólico como construção da realidade que tende a estabelecer
uma ordem axiomática. O sentido imediato do mundo (em particular do mundo
social) supõe o conformismo lógico de Durkheim, ou seja, “uma concepção
homogénea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a
concordância das inteligências” (Bourdieu: 9). O conformismo lógico não é a
aplicação de uma certa violência simbólica sobre o mundo da vida e sobre o
cérebro humano?
Lenin não percebe que o direito
moderno (burguês) é também um modo de evitar o Urstaat. Para ele, o Estado democrático de direito é uma mera
ficção da filosofia de Kant. Os direitos fundamentais – liberdade, direito à
vida etc.- não são a evidência de que o direito moderno tece suas armas na
cultura política liberal contra a existência despótica do Estado absolutista?
Os direitos liberais clássicos à dignidade do homem, à vida e integridade
física da pessoa, à liberdade etc. constituem interpretações e configurações do
direito geral à liberdade no sentido de um direito a iguais liberdades
subjetivas (Habermas. 1997. v. I: 162-163). A liberdade não é um significante
cujo sentido encontra-se em seu antagonismo à servidão voluntária do discurso
do mestre que articula o Urstaat?
Sobre o direito positivo, é preciso sublinhar que ele não se encontra
simplesmente à disposição de objetivos do poder do Estado capitalista como um medium sem estrutura interna própria
(Habermas. 1997. v. I: 259). O direito positivo é portador de uma autonomia
relativa em relação ao poder capitalista no Estado capitalista. A lógica da
separação dos poderes estatais garante à comunidade jurídica uma autonomia
relativa ao poder do capital exercido no legislativo e no executivo. As
contradições das frações do capital no bloco no poder se refletem no aparelho
de Estado sustentando o princípio da separação da autonomia entre os poderes.
Tal dialética põe e repõe o judiciário como um poder que deve ser neutro em
relação à hegemonia de uma fração do capital sobre as outras frações e ao jogo
de forças delas. O judiciário deve ser o lugar do equilíbrio geral dos
antagonismos entre as frações do capital e outras classes. No entanto, em
certas situações críticas ele pode ser ocupado por uma determinada fração de
classe
A razão reflexiva de Marx pode
ser a crítica do direito moderno, mas o seu pensamento não é uma superfície na
qual há um deslocamento do marxismo totalitário para um marxismo inoculado pela
cultura política liberal? Esse enunciado não transforma o pensamento de Marx em
um objeto da contraciência dialética da política? Trata-se de um pensamento no
qual o marxismo totalitário é suspenso pela incidência da lógica dos
significantes do inconsciente político liberal nele. O direito moderno e o
Estado moderno são produtos da revolução burguesa. Marx a concebe como tragédia
histórica. A revolução moderna é o estado de revolução política permanente trágica
para desarticular o Urstaat, como
Sade enunciou: “A insurreição (contra o Urstaat), pensavam esses sábios
legisladores (gregos), não é um
estado moral; ela deve, no entanto, ser o estado permanente de uma república”
(Sade: 175). A cultura política romana res
publicana não quer sustentar um estado de revolução política permanente
para evitar o Urstaat? O Império não
advém, quando o estado de revolução permanente não para de não se inscrever no
inconsciente político romano? Quando a República se torna um artefato do Real
não integrável ao inconsciente político romano? Shakespeare estabeleceu na
tragédia Júlio César a república como artefato do Real no episódio do
assassinato de César:
Bruto. – Sim. Só nós devemos
responder pelo que acabamos de fazer. (volta
Trebônio).
Cássio. – Onde está Antônio?
Trebônio. – Fugiu, atemorizado,
para casa. Homens, mulheres e crianças estão aterrorizados, gritam e correm
como se fora o dia do juízo final.
Brutos. – Dai-nos a conhecer
vossa vontade, Fados! Que devemos morrer, já sabemos! Só o instante e os dias
que restam é o que importa ao homem (Skakespeare: 443).
Ao assassinar César, os
conspiradores descobriram que seu ato não é interpretado pela elite republicana
e o povo romano como um ato da revolução política permanente. Como insurreição
contra o tirano. Descobriram o quê? A revolução republicana permanente contra o
Urstaat (articulado pela tirania, uma
figura clássica aristotélica do discurso do mestre) não para de não se
inscrever no inconsciente político romano da antiguidade. O assassinato de
César é um ato político da ordem do Real que não pode ser integrado ao
inconsciente político como insurreição republicana permanente contra o Urstaat. Isso significa a falta do significante
insurreição res publicana no
inconsciente político romano. Este acontecimento é a metamorfose do povo romano
res publicano (livre) em povo-súdito
(ancilar) do discurso do mestre que instauraria o Império. No lugar do gozo da
liberdade, encontra-se o gozo escravo: ‘captura-me”. Gozo que remete para o Urstaat imperial como aparelho de
captura do excedente no território econômico da contraciência dialética da
política. Por homologia entre o excedente econômico e o objeto a (mais-gozar), isso remete também para
o gozo como objeto da contraciência lacaniana da política. Trata-se do
mais-gozar do senhor na reconstrução lacaniana da dialética fenomenológica do
reconhecimento. Tal dialética faz funcionar o inconsciente político do discurso
do mestre pela prática da dominação espetacular “pão e circo”.
Só o estado de revolução política
permanente seria capaz de sustentar a modernidade política como um modo de
evitar o Urstaat, de fazê-lo
adormecer. A modernidade política é o avesso do Estado absolutista. O
direito
moderno ocupa um lugar central na modernidade política como
significante-mestre
da cultura política liberal. Nesta como direito fundamental, o direito à
propriedade não funciona como um modo de garantir a autonomia privada do
indivíduo em relação ao Estado absolutista? Ele não se enlaça
metonimicamente à
cadeia de significantes do direito sobredeterminada pelo significante
liberdade? Existe uma discussão na comunidade jurídica que contrapõe aos
direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, constitucionalmente
garantidos, deveres jurídicos correspondentes por parte do Estado
democrático
de não violar, através de leis, a igualdade ou liberdade que forma o
conteúdo dos
direitos supracitados. O Estado não deve interferir na superfície
individual
assim protegida através de leis pelas quais esta superfície seja
reduzida ou
aniquilada. Uma outra corrente de pensamento não quer atribuir à pessoa
jurídica
do Estado o dever jurídico do mesmo Estado de garantir a igualdade e a
liberdade dos cidadãos (que são reduzidos à condição de súditos). Para
tal
pensamento jurídico, a garantia à igualdade e liberdade traduz apenas
uma exigência ético-política da garantia constitucional supracitada,
dirigida à
ordem jurídica (Kelsen: 318-319). Tal exigência ético-política da
garantia
constitucional supracitada vai ser sustentada por quais sujeitos? A
lógica de
que não é possível atribuir dever jurídico ao Estado – pois ele não tem
como se
autopunir – significa uma janela para o Estado democrático de direito se
tornar
uma cidadela expugnável à cultura política totalitária.
A forma mercantil do capital
articula a forma jurídica pela lógica do valor, pela troca de equivalentes. Em
última instância, tal forma de capital remete para as relações dos produtores
de mercadorias entre si que engendram a mais desenvolvida, universal e acabada
mediação jurídica. Portanto, toda a teoria geral do direito e toda a
jurisprudência “pura” aparecem como uma descrição unilateral que abstrai de
todas as outras condições das relações dos homens que aparecem como
proprietários de mercadorias. Como significante universal no circuito da lógica
do valor, o dinheiro torna possível a forma do direito. No entanto, como poder
fáctico, o poder do dinheiro não determina absolutamente o Direito. É possível
evitar o determinismo econômico na produção do discurso do direito. Se bem que
somos tentados na era do modo de produção especificamente capitalista a ver o
discurso do direito como uma continuação da economia capitalista por outros
meios. Assim, pelo economicismo, o Direito é um significante fáctico, um poder
despótico. Tal concepção do Direito sustenta o Urstaat do socialismo realmente existente e uma concepção marxista
totalitária da política. Na antiguidade, Aristóteles já fizera a distinção
entre poder fáctico (poder despótico) e poder justo (legítimo). Este é o poder
articulado pela lei justa, aquele pela lei despótica. O Direito pode ter uma
existência efetiva como poder legítimo. Na era moderna, o Estado democrático de
direito surge como um significante articulado pelo discurso do direito
legítimo. O homo sub specie iuris
articula a política pelo direito para além da política in nuce. Para Weber, “política” significaria a tentativa de
participar do poder ou de influenciar a distribuição do poder, seja entre
vários Estados, seja dentro de um Estado entre os grupos de pessoas que este
abrange (Weber: 526). Trata-se de uma elaboração da concepção de política de Maquiavel:
a política como técnica para conquistar o poder e para conservá-lo. A
sociologia da política weberiana não parece ignorar nem a descoberta de
Maquiavel da irracionalidade originária da existência humana como sujeito
político (Lefort: 206). O discurso do direito moderno faria da política uma
prática inteiramente racional? O homo
specie iures cria um disfarce para a política in nuce. Mas ele não aponta para uma articulação da política pelo
direito moderno capaz de esconjurar o Urstaat,
o Estado absolutista através do Estado democrático de direito? Na escola do
pensamento político realista, Clausewitz definiu a guerra como a continuação da
política de Estado por outros meios (Clausewitz: 65). “Cada um tenta, por meio
de sua força física, submeter o outro à sua vontade; o seu objetivo imediato é
o de abater o adversário a fim de o tornar incapaz de toda e qualquer
resistência. A guerra é pois um ato de violência destinado a forçar o
adversário a submeter-se à nossa vontade (Idem: 73). Em Napoleão, encontra-se a
concepção de política como a continuação da guerra por outros meios. Segundo
Anatole Rapaport, Napoleão transmitiu uma grande lição: o crédito da política e
do poder reside na habilidade em conseguir a destruição física do inimigo
(Idem: 15). Carl Schmitt definiu a política pela discriminação entre amigo e
inimigo. O Inimigo é o outro, o estrangeiro, o equivalente do Estado
estrangeiro (Schmitt: 51, 52). Para Schmitt, “Ao Estado como uma unidade
essencialmente política pertence o jus
belli, isto é, a possibilidade real de, num dado momento, determinar, em
virtude de sua própria decisão, o inimigo, e combatê-lo” (Idem: 71). Tal
concepção da política vê a política como a continuação da guerra por outros
meios. Encontra-se em Shakespeare, o significante arcaico-moderno de tal
concepção. Trata-se do Príncipe infame
do drama histórico Ricardo III. O
Príncipe infame é o arquétipo da concepção totalitária da política. No século
XX, Stalin e Hitler são Ricardo III em carne e osso. A Ásia também
teve seu Príncipe infame espetacular: Pol Pot. O fantasma da política
totalitária tem como significante de corte o verbo matar o inimigo, ou os
homens que estejam do lado do inimigo (Idem: 72)
Schmitt se reporta à Platão na
distinção que este faz entre dois tipos de inimigos (Polémios e ekhthrós), a
distinção entre polémos (guerra) e stásis (sublevação, rebelião, “guerra
civil”). A guerra entre gregos e bárbaros (inimigos naturais) é efetivamente
uma guerra e a luta entre gregos são da ordem da stásis, ou seja, querelas intestinas (Derrida. 1994: 110-111). A
ideia que domina é que um povo não pode fazer guerra a si mesmo e que uma “guerra
civil”, que nunca é o dilaceramento de si, não pode visar a formação de um novo
Estado. Para Schmitt, um Estado normal consiste sobretudo em produzir no
interior dele e de seu território uma satisfação completa, estabelecer
“tranquilidade, segurança e ordem”. Criar a situação normal que é a
pressuposição para que as normas jurídicas possam valer, porque cada norma
pressupõe uma situação normal e nenhuma norma pode ter validade para uma
situação que frente a ela é totalmente anormal. No entanto, o Estado deve, em
situações críticas, determinar o inimigo. Na Grécia, isso se fazia no direito
político pela declaração de polémios.
No direito romano, pelo significante hostis,
declaração que entrava em vigor ipso
facto ou vigorando em razão de leis especiais nas formas da justiça,
ilimitadas ou ocultas sob paráfrases genéricas, mas sempre formas de desterro,
de banimento, de proscrição, desamparo legal, colocação hors-la-loi, ou seja, formas de declaração de hostilidade dentro do
Estado (Schmitt: 72). Tal concepção de política pode ser uma defesa do Estado
democrático de direito? Esse realismo político não pressupõe a política
determinada pelo estado de guerra freudiano? Trata-se da política como reino da
pulsão de morte habitado pelas máquinas de guerra freudianas? A figura do Urstaat não se faz uma necessidade
permanente para a defesa do Estado normal? Eis a concepção totalitária da
política moderna que busca se legitimar nas fontes da cultura política da
antiguidade: Grécia ou Roma.
Em Roma, o Direito - explicado pela
forma mercantil do capital que instaura os sujeitos livres e iguais homólogos aos
parceiros econômicos iguais na lógica da troca de equivalentes - significa a
autonomia relativa do Direito em relação à determinação do modo de produção
escravista sobre ele. A forma mercantil do capital é um significante subsumido
à lógica do modo de produção escravista. Trata-se da subsunção necessária da
cadeia dos significantes econômicos no inconsciente político do modo de
produção escravista. Na antiguidade, para que a humanidade trabalhasse mais do
que exigiam suas necessidades, para que uma parte de um Estado trabalhasse com
a finalidade de manter a outra parte gratuitamente, só podia se recorrer aos
escravos; por isso, introduziu-se o sistema geral da escravidão (Marx.1978:
59) Então, como é possível a leitura
dos sujeitos livres e iguais no direito privado romano?
Na era moderna, a liberdade é
simplesmente a liberdade do operário de vender livremente a sua força de
trabalho no mercado capitalista? Isso não ergue a concepção economicista
do
direito moderno? A subsunção formal e a subsunção real do trabalho ao
capital
eliminam a necessidade do poder político ser interior às relações de
produção
capitalistas. O poder político torna-se exterior às relações de
produção.
Trata-se da soberania da forma produtiva do capital na economia
capitalista,
seja do capital manufatureiro, seja do capital da grande indústria. O
direito
formal burguês – que regula as relações entre o privado e o público,
entre o poder
fáctico do dinheiro e o poder político, entre as relações econômicas e
as relações
políticas – tem como motor as lógicas capitalistas supracitadas. Na
subsunção
formal, a relação de superioridade e de subordinação substitui a
escravidão, a
servidão e a vassalagem, as formas patriarcais etc. A própria relação de
produção
capitalista gera nova relação de superioridade e subordinação que por
sua vez
produz também suas próprias expressões políticas (Marx. 1978: 59, 58). O
capitalismo moderno é o lugar da autonomia do econômico em relação ao
político. Na relação de produção, as relações de poder entre o capital e
o trabalho dispensam a intervenção do Estado para garantir o
funcionamento da economia.
Além disso o econômico determina a forma política e a forma do Direito.
Este
aparece como forma ideológica. No entanto, ao regular a relação entre o
capital
e o trabalho, o Direito inscreve o Estado na relação de produção
capitalista.
Isso foi o resultado da luta de classes, das lutas do trabalho contra o
poder
fáctico do capital – poder despótico capitalista – no interior da
relação de
produção capitalista. A relação fáctica (despótica) entre o capital e o
trabalho é articulado pelo direito e o sujeito capitalista assume a
forma do homo sub specie iures no coração da
relação de produção. Assim, o direito
formal burguês deixa de ser uma forma ideológica que habita somente o
imaginário moderno. Ele se transforma no discurso do direito. Trata-se do Direito
trabalhando na superfície simbólica das sociedades capitalistas. Trata-se do
Direito inscrito no grande Outro, existindo como discurso do Outro. Além disso,
o discurso do direito passa a disputar o lugar da soberania na relação de
produção com o discurso do senhor capitalista.
Os direitos fundamentais –
liberdade, direitos à vida e à propriedade – surgem antes do modo de produção
especificamente capitalista. Eles surgem como um artefato ideológico ou
simbólico? Ele surge em uma época na qual não havia o determinismo econômico do
modo de produção capitalista sobre a superestrutura da sociedade. Tal
determinismo produz o direito fáctico capitalista. O direito fáctico é uma
produção artefatual das leis da causalidade do poder. O poder é um artefato. O
direito emerge como um artefato discursivo em um campo estratégico de lutas políticas
que não podem ser atribuídas a um Sujeito social: a burguesia. Nesse campo
estratégico encontram-se uma pluralidade de sujeitos autônomos em relação a um
determinismo de classe sobre eles. O intelectual que pilota tal campo
estratégico não possuía adscrição sociológica de classe: ele não estava
subsumido à lógica da sociedade de classe. Trata-se da época de ouro do
intelectual ocidental, gerado na cultura moderna antes da soberania do modo de
produção capitalista. Nesta época, a cultura moderna não é uma simples forma
ideológica. A interrogação que possibilita a leitura deste campo estratégico é a
seguinte: lutava-se contra o quê? A liberdade, os direitos à vida e à propriedade
não significam a instauração de uma superfície política no mundo da vida em
choque com o Urstaat? Não se tratava
de uma luta apenas no plano imaginário. Mas de uma luta no campo simbólico. O
direito moderno surge como um artefato que quer se inscrever como discurso do Outro.
Que tem a vontade política de instaurar uma outra estrutura simbólica no
inconsciente político ocidental - uma estrutura simbólica que seja a travessia
do fantasma do Urstaat encarnado no
Estado absolutista. Tal acontecimento tem como sintoma a política levada na
superfície cultural, política virtual em relação à política in nuce. Trata-se da era da revolução
moderna. Revolução trágica. Tragédia histórica. Marx mostrou a natureza virtual
– a política articulada como ficção pela estética- dessa política na análise
concreta de uma situação concreta (Marx. 1974: 336).
A partir do final do século XX,
o poder tutelar fáctico do capitalismo corporativo mundial sobre os países
produz uma transformação do direito, mesmo nos países do capitalismo tardio. “Assim
como a cidadania tem sido principalmente tutelada, regulada ou administrada,
também a soberania nacional passa a ser crescentemente tutelada, regulada ou
administrada. Se, por um lado, é levado a limitar e orientar os espaços da
cidadania, por outro lado, as estruturas globais de poder são levadas a limitar
e orientar os espaços da soberania nacional” (Ianni: 17). O modo de produção
flexível é o avatar do CCM no território do Direito. Ele é a vontade de que o
discurso do senhor moderno (discurso do capitalista) ocupe de forma absoluta a
lugar da soberania na relação de produção. Trata-se de uma desterritorialização
da relação de produção capitalista articulada pelo discurso do direito. Na fase
atual do capitalismo sob a soberania do capitalismo oligárquico mundial, tal
capitalismo pode produzir, a longo prazo, um direito fáctico pelas leis da
causalidade da soberania do discurso do capitalista sobre a política mundial. O
sinthoma de tal transformação será o surgimento do Estado despótico capitalista
como forma soberana inercial na cadeia de significantes da política mundial. O
discurso do capitalista articulará o direito do Urstaat no século XXI? Na soberania do CCM sobre a economia e a
política mundiais, o encaixe dos países ao globalismo se fazia pelas redes
produtivas-científicas-tecnológicas-publicitárias-digitais. O direito capaz de
regular o CCM tinha que lidar com os trabalhos científico, publicitário, digital.
Este sujeito intelectual resistia à instalação do direito fáctico capitalista
do modo de produção flexível. De qualquer modo, o CCM tinha que participar como
classe hegemônica nos blocos de poder dos países. Se tratava de um poder
hegemônico, de um poder articulado pela hegemonia. Este poder tinha que
respeitar a articulação do Estado e da sociedade pelo direito. Ele não podia
abolir definitivamente o Estado democrático de direito.
No capitalismo oligárquico
mundial, o encaixe à sociedade capitalista se fará pelo poder fáctico da moeda,
do dinheiro mundial como significante universal. O poder tutelar da oligarquia
financeira mundial - sobre países, nações, cidades mundiais, espaços
geopolíticos, continentes etc.- articulará, organizará, ditará os processos
históricos, políticos e culturais implodindo, de vez, a possibilidade do
direito positivo se transformar em um direito procedimental. Nos blocos no poder, o poder tutelar da
oligarquia financeira mundial substituirá, substitui, a
soberania da articulação hegemônica da política (que sustenta o Estado
democrático de direito) pela soberania do discurso do mestre. A forma do capital-dinheiro
como capital fictício faz do discurso do capitalista uma cornucópia de
irracionalidades econômicas. Por exemplo, “deve-se entender-se por acumulação
do capital-dinheiro notadamente a acumulação desses direitos sobre a produção,
acumulação segundo o preço de mercado, o valor capital ilusório dele” (Marx. 1985:
539). O domínio da riqueza imaginária (Marx. 1985: 549) sobre a riqueza real faz
com que o capital fictício só possa ser integrado via imaginário ao
inconsciente político capitalista. A ilusão do valor do capital fictício é a
fonte do funcionamento irracional do capitalismo global. Ele opera também uma
subsunção absoluta da política à lógica privatista do inconsciente político
capitalista pelo poder despótico do dinheiro mundial. O Estado despótico
capitalista é o seu corolário.
No capitalismo oligárquico
mundial, a lógica do jurista deve ser idêntica à lógica de Palmström:
“deve ser
assim porque é assim”. Isso pode ser o efeito de uma mudança histórica
entre o
Direito e a esfera econômica. O sistema de direito igualitário, abstrato
e
geral – adequado às estruturas econômicas do período clássico do
capitalismo
(os significantes jurídicos abarcavam a quase totalidade dos atos de
circulação
econômica das mercadorias) - resulta progressivamente inadequado na
medida em que
o sistema desenvolve sua tendência imanente à concentração oligárquica
do
capital e à centralização dos poderes no Estado despótico capitalista. A
“evolução do capitalismo atual desbanca esquemas de interrelação social
que não
podem ser regulados por significantes como igualdade, generalidade e
abstração
jurídicas. É a era da miséria do Direito. A deterioração da função do
Direito
não é um fenômeno que corresponde, talvez, a uma exigência funcional do
capitalismo oligárquico mundial? Neste, o Direito desenvolverá uma
função
marginal – que o torne guarda-noturno do sistema – sem penetrar na vida
da
corporação oligárquica capitalista mundial, sem levar a cabo qualquer
controle
dos aparelhos públicos ou privados do Estado despótico capitalista. O
“Sistema
capitalista” tem um interesse geral sendo definido nos vários elos da
cadeia
política mundial oligárquica: o Direito deve atuar em zonas
substancialmente
irrelevantes. Na relação entre Direito e política, esta não deve mais
ser
articulada pelo Direito. O consenso ou pacto político entre as elites
oligárquica e totalitária deve operar a articulação da política
simultaneamente com a lógica do simulacro de simulação. Estudado por
Florestan Fernandes, o modelo político brasileiro deve servir de
paradigma para
a política mundial (Silveira. 2000: 24). A comunidade jurídica será
obrigada a
ver e exercer o Direito não como produto do desenvolvimento econômico e
político, ou seja, o Direito como relação social. Ele deverá ser vivido
pela
comunidade política como modelo
jurídico em função do qual se leve a cabo a organização artefáctica da
realidade como um paradigma que permita conjugar as interrelações humanas.
Assim, o processo de abstração jurídica tende ao autotélico cortando todo nexo
genético com a estrutura econômica e com a estrutura política. É inevitável que o
raciocínio jurídico se torne tautológico. A comunidade jurídica será levada a
acreditar que a ciência jurídica não pode existir e funcionar como
contraciência jurídica da política, pois esta teria que ser um campo
transdisciplinar pilotado por um ecletismo bem temperado. O corolário disso é
que o jurista é um tipo de máquina de guerra jurídica heideggeriano, um tipo
humano que usa a técnica do Direito – exercício das operações lógicas jurídicas
– como aparelho de Estado que exerce a violência via direito fáctico
(despótico) sobre a população. Este é o sentido da técnica moderna como
ferramenta, um meio diante do qual o homem pode ser senhor ou escravo. (Ou
seja, ela é a materialização do discurso do mestre). A técnica é também um modo
decidido de interpretação do mundo que pode determinar toda a atitude do homem
e suas possibilidades (Heidegger: 45). Pode determinar toda a atitude da
população e suas possibilidades como escravo do Direito, funcionando como
discurso do mestre. Por que vias a
comunidade jurídica pode deixar de ser uma máquina de guerra jurídica heideggeriana
do discurso do direito como discurso do mestre? Numa leitura habermasiana, a
técnica moderna exige um tipo de atividade implicando a dominação, seja sobre a
natureza, seja sobre a sociedade. A atividade racional por relação a um fim é
em virtude de sua estrutura o exercício do controle (Habermas. 1973: 5). Assim,
a técnica não ocupa por metonímia um lugar na cadeia dos significantes da
cultura política totalitária?
No mundo contemporâneo, a
comunidade jurídica pode funcionar como parte do aparelho de Estado psíquico. O
sujeito deste aparelho é a população. Trata-se do aparelho do discurso do
mestre que regerá – já rege – o Direito no capitalismo oligárquico mundial
através do Estado despótico capitalista. Desde Kant em diante, o princípio de
que o Direito deve ocupar-se de comportamentos e não de intenções se converteu em
um postulado fundamental (Barcellona: 43). No Direito oligárquico/totalitário,
este princípio será abolido – já está sendo abolido em países da América Latina
– repetindo a função do Urstaat como
escultor da população que deve sofrer com o sentimento de culpa se vier a se
rebelar contra o Estado despótico capitalista. No lugar do povo-nação, o Urstaat - como escultor – fabricará o
povo como artefato freudiano. A mais fraca intenção de se rebelar deve ser
julgada sem misericórdia, sem complacência, para fazer retornar a pulsão de
morte liberada pelos rebeldes contra si. A produção do contemporâneo revela-se
pela dialética do Urstaat com as
máquinas de guerra freudianas se apossando do mundo da vida.
O capital mercantil existia em
toda a antiguidade greco-romana. No entanto como totalidade abstrato-formal, o
Direito só se desenvolve em Roma. Então, o capital não ocupa o aspecto principal
na dialética que cria o Direito em Roma. Ele ocupa o aspecto secundário. O
aspecto principal é ocupado pela política republicana. Mas não se trata da
política in nuce como luta entre
patrícios e plebeus. Trata-se da cultura política res publicana. Esta sustenta a articulação da política pela
distinção entre privado/público, entre poder privado e poder público, entre a
lógica privada e a lógica pública do inconsciente político. Trata-se da
emergência da linguagem política como simulacro de simulação. Em Roma, o Estado
não é um epifenômeno do modo de produção escravista. A cultura política res publicana sustenta a autonomia
relativa do Estado em relação ao modo de produção escravista. Trata-se de um
acontecimento histórico extraordinário que levou Freud a afirmar que o Estado
romano não poderia ser explicado pela psicologia do indivíduo ou pela
psicologia do grupo (Freud: 137). O Direito surge em Roma como um significante
dialético cujo movimento é determinado pelo antagonismo entre a cultura
política res publicana e o capital
mercantil. No aspecto principal, o direito romano é o resultado de um
equilíbrio de antagonismos entre a lógica privada e a lógica pública do
inconsciente político. A linguagem do inconsciente político ocidental - estruturada
como simulacro de simulação - surge na cadeia de significantes políticos em
Roma. Se a cultura política foi sobredeterminada pelo discurso res publicano, seria o caso de pensar nesta
cidade-estado, o Direito articulando a política como simulacro de simulação. Tal
concepção do Direito é totalmente estranha à filosofia burguesa do Direito que
considera a relação jurídica como uma forma natural e eterna de qualquer
relação humana. Já Habermas vê o Direito tendo como motor a cultura política,
quando ela é suficientemente desacoplada da estrutura de classes (Habermas. 1997.
v. I: 219). Em Roma, a cultura res publicana é desacoplada da estrutura
de classe do modo de produção escravista. Só isso permitiu que ela ocupasse o
aspecto principal na dialética do significante Direito.
A cultura política moderna surge
em uma época na qual a sociedade de classes ainda não determinava a política e,
por extensão, a própria cultura política. Esta desponta virtualmente antes do
poder fáctico do modo de produção capitalista se transformar em um determinismo
econômico na articulação da sociedade capitalista. A cultura política moderna
surge como um artefato da insurreição permanente contra o Urstaat, o Estado absolutista, por dentro e por fora dele.
A propósito, se a Grécia é o
momento da metabolização do significante Ocidente, Roma é o momento da
produção
da cadeia de significantes que articula o Ocidente. Trata-se da lei da
qualidade hegeliana – transformação da quantidade em qualidade – que
assinala uma ruptura – salto qualitativo - entre
Roma e Grécia. A filosofia, a cultura política, a pólis e o Direito
gregos constituem uma fonte metabólica da vida romana. Mas eles não
criaram o Ocidente. Em Roma, a
cultura política, o Direito e a política res
publicanos criaram o Ocidente como rede de significantes que contribuem
para gerar um ponto de inflexão na história universal da espécie humana. Então,
a história universal pode ser concebida como a dialética do inconsciente
político – estruturado como um simulacro de simulação de linguagem política –
com as experiências vividas – como artefato – no mundo da vida. No centro do
mundo da vida encontra-se a cultura política res publicana.
Se a Grécia é o momento da
metabolização do significante Ocidente, Roma é o momento da produção da cadeia
de significante que articula o Ocidente. Trata-se da lei da qualidade hegeliana
que distingue Roma da Grécia. O salto qualitativo que gerou o Ocidente não foi
obra da filosofia, da cultura política ou do Direito gregos, mas da cultura
política res publicana e do direito
romano que se apropriou da metabolização grega do significante Ocidente.
A cultura política liberal faz
parte de uma dialética, ao lado da rede de causalidades econômicas
capitalista, da constituição do Direito moderno. O valor é o
significante universal da
episteme moderna (Foucault: 214-215). No entanto, não é o
significante-mestre
que funda a modernidade política. No aspecto principal da dialética do
direito,
encontra-se a cultura política moderna. Não deve ser deduzido da lógica
do
valor significantes como liberdade e o direito à vida. Mesmo a
propriedade é um
significante dos direitos fundamentais que não é só determinado pela
lógica
econômica. A propriedade é a condensação da lógica econômica e da lógica
da
cultura política moderna. Liberdade, direito à vida e propriedade são
significantes do Direito articulados pela cultura política moderna em
choque
com o Urstaat na forma do Estado
absolutista. Na monarquia absolutista, a produção de normas jurídicas
individuais no direito privado- articulação da autodeterminação com a
propriedade privada – não sustenta uma clareira no interior do Estado
absolutista em choque com o Urstaat?
Trata-se de uma forma de produção de normas jurídicas individuais adequada ao
sistema econômico capitalista, que corresponde ao princípio da autodeterminação
e tem, neste sentido, caráter democrático (Kelsen: 299).
Na dialética concreta que funda a
era moderna, o Direito tem no aspecto principal a cultura política moderna e no
aspecto secundário a lógica da troca de equivalentes ou lógica mercantil. No
modo de produção especificamente capitalista, a lógica do capital produtivo
assume o aspecto principal e a cultura política liberal o aspecto secundário. A
subsunção real do trabalho ao capital explica a passagem do direito moderno
revolucionário para o direito positivo. Habermas vai além: “As realizações
sistêmicas da economia e do aparelho de Estado, que se realizam através do
dinheiro e do poder administrativo, também devem permanecer ligadas, segundo a
autocompreensão constitucional da comunidade jurídica, ao processo integrador
da prática social de autodeterminação dos cidadãos” (Habermas. V. I: 63). A
relação entre lógica capitalista e lógica jurídica guarda uma homologia até em
relação ao Estado como pessoa-agente do Direito. Marx definiu o capitalista
como personificação do capital. Segundo Kelsen, o indivíduo só é considerado
órgão do Estado quando é chamado ao exercício de uma função definida pela ordem
jurídica nacional, ao exercício desta função através de um processo determinado
da ordem jurídica. Aí, ele é a personificação do Direito. Também, “Na medida em
que a função é referida à unidade da ordem jurídica e, assim, é atribuída à
comunidade constituída por esta ordem jurídica, ao Estado, na medida em que ela
é representada como função do Estado, esta ordem jurídica é personificada. O
Estado, como ordem social, é a ordem jurídica nacional (para a distinguir da
internacional) acima definida. O Estado, como pessoa, é a personificação desta
ordem” (Kelsen: 309).
A subsunção real do trabalho ao
capital explica também a forma da separação entre o poder econômico e o poder
político, entre a sociedade civil e o Estado etc. A subsunção real do trabalho
ao capital significa que a sustentação do Estado moderno não se baseia na
cultura política liberal. A materialização do Direito formal – por exemplo,
direito do trabalho – significa que a cultura política liberal deixa de ocupar
a posição central no aspecto secundário da dialética do Direito. A cultura
política social (do Estado do bem-estar) ocupa a posição central do aspecto
secundário da dialética do Direito no século XX. Habermas acreditava que a
cultura política procedimental poderia substituir a cultura política social nas
sociedades do capitalismo tardio. Nestas, o Direito faria a articulação da
política como mediação entre o sistema político, a esfera política pública, a
sociedade civil e as biografias individuais do mundo da vida (Habermas. 1997:
v. I: 41; v. II: 85, 86, 92). A cultura política procedimental sustentaria uma
lógica capaz de articular autonomia privada e autonomia pública, cidadã, às
biografias privadas do mundo da vida. Isso seria fundamental - na formação da
opinião e da vontade apoiadas nos direitos fundamentais - para a liberdade de
opinião e reunião e no direito de fundar sociedades e associações (Habermas. 1997.
v. II: 101). A cultura política procedimental é, simultaneamente, virtual e
empírica. Mas sua soberania sobre a superfície da política permanece como
“fato” virtual. A cultura política procedimental poderia retomar os
significantes do direito fundamental como um modo de domesticar o Estado
absolutista no século XXI (Habermas. 1977. v. II: 178). Tal cultura política
procedimental teria como motor o agir comunicacional, o poder comunicacional,
que se articula na sociedade civil, no mundo da vida e se direciona para a
esfera pública política até alcançar o centro do sistema político, o poder de
decisão política. O poder comunicacional só existe se a razão procedimental – a
razão reflexiva como prática discursiva, argumentativa – for soberana na
superfície política (Habermas. 1997: v. I: 276). Seria uma superfície na qual o
inconsciente político não existiria. A política deixaria de existir como
simulação na era da soberania do simulacro de simulação?
A cultura política comunicacional
seria o modo de conter o Urstaat que
desperta aceleradamente na Europa e nos EUA no século XXI? Poulantzas abordou
este ressurgimento do Urstaat (“Estado
autoritário”) na Europa da década de 1970 (Poulantzas: 271). Na Alemanha e nos
EUA, Habermas evoca a cultura política procedimental como um modo de conter o Urstaat que instala a insegurança
jurídica generalizada e que desarticula o agir comunicacional como motor da
sociedade civil (Habermas. 1997. v. II: 101-102). Trata-se da desarticulação da
democracia procedimental que engendra a política como superfície agenciada por
uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma como modo discursivo de
socialização da política implantada através do medium do Direito (Habermas. 1997. v. II: 55). Habermas é um
marxista ocidental que duela com o marxismo totalitário. Sua obra é a mais
clara experiência de travessia biográfica individual do fantasma do Urstaat no mundo Ocidental.
II
Como história da estrutura simbólica,
a história política do Brasil se subdivide em dois grandes períodos. Durante
mais de três séculos, ela foi a história da soberania da cultura política
oligárquica que atravessou o Brasil colonial, o Império e abarcou a República
Velha. A “Revolução de 1930” determina o fim da soberania da cultura política
oligárquica sobre a política. A estrutura simbólica deixa de sustentar tal
soberania. Para os historiadores, marxistas e cientistas políticos trata-se de
um mistério, pois tal fenômeno não encontra explicação em processos econômicos
ou político consistentes. O delírio acadêmico tomou conta da universidade com
os significantes “Estado de compromisso”, crise prolongada de hegemonia entre
1930-1964 (Pereira: 125-127), burguesia industrial como sujeito da revolução
burguesa brasileira etc. A comunidade intelectual tem que se resignar com a
única explicação verdadeiramente positiva: A Revolução de 1930 foi obra de uma
luta entre oligarquias estaduais. Chefe oligárquico de tal revolução, Getúlio
Vargas é o significante que gera um furo na estrutura simbólica com sua
ditadura revolucionária. O governo revolucionário governa o país sem a presença
da oligarquia brasileira. Getúlio seria o grau zero da soberania da cultura
política oligárquica, durante um breve momento histórico. Mas esta história não
estabelece apenas uma relação negativa com estrutura simbólica que deixa de
funcionar pela soberania da cultura política oligárquica. Getúlio foi o
demiurgo da cultura política totalitária brasileira. Assim, abra-se um longo
período histórico no qual tal cultura política vai se realizar como soberania
frente a cultura política oligárquica. As conjunturas políticas podem ser
periodizadas pela dialética entre tais culturas políticas associadas ao processo
econômico. O espectro de populismo na década de 1930 e a “democracia populista’
(democracia despótica) a partir de 1950 são fenômenos políticos oriundos de um
sincretismo bem brasileiro de cultura política totalitária com cultura política
oligárquica. O significante despótico da democracia populista assinala que tal
democracia é uma produção também da cultura política totalitária. Tal cultura
realiza a partir da estrutura simbólica a presença do discurso do
Outro (discurso do mestre) na política brasileira. Em 1950, Getúlio representa
através do populismo o fantasma do Urstaat
na política pela simples existência da democracia despótica. Como já foi
enunciado, no século XX, o populismo se transformou em um fenômeno de
realização do discurso do mestre na política. O populismo é pilotado pelo
fantasma do Urstaat que se condensa
na vontade política de erguer o Urstaat.
1964 aparece para a
historiografia como um ponto de inflexão da história política. O marxismo toma
como signo do período inaugurado pelo golpe de Estado civil-militar o termo
ditadura militar. A ciência política argentina “fala” de autoritarismo
burocrático. Tais “conceitos” perdem o essencial de tal período histórico. 1964
significa a produção da história pela soberania da cultura política totalitária
em sua versão militar. O AI 5 (Ato Institucional) entrou em vigor em 13 de
dezembro de 1968. Este é o significante produzido pela cultura política
totalitária que originou um Urstaat
militar. Carlos Esteves Martins se referiu à política do governo Costa e Silva
como populismo nacionalista (Martins: 197). Foi o único autor que concebeu a
política militar como artefato da cultura política totalitária. O governo
autocrático de José Sarney é outro fenômeno produzido pela cultura política
totalitária, agora na versão civil. A tirania de Collor é um momento luminar da
cultura política totalitária (Silveira: 2013). O voto obrigatório da
Constituição de 1988 é um efeito da cultura política totalitária sobre a
República democrática vigente. Trata-se de uma ideia contida no Projeto de
Constituição getulista enviado à Assembleia Constituinte em 1933 (Dias: 462)
que foi recusada pela Assembleia Constituinte que fez a Constituição de 1934. A
modificação da Constituição de 1988 que permitiu a reeleição para presidente da
República é a passagem ao ato totalitário do liberal FHC que acabou por definir
a política no século XXI. Quando o PT e Lula se apossaram do poder federal,
eles passaram a governar o país através de um sincretismo ou amálgama de
repetição lúdica do populismo getulista (lulismo) com populismo stalinista
(PT). Com Lula e o PT, a cultura política totalitária fez e desfez a política
brasileira do século XXI. A cultura política totalitária lulo-petista significa
uma mudança qualitativa em relação ao populismo getulista. O stalinismo petista
é uma retomada do stalinismo do PCB da década de 1950 com passagem pelo
populismo stalinista cubano. José Dirceu é o significante mais claro e evidente
desta cultura política totalitária.
No Brasil, a história do Direito pode
ser abordada pela dialética estabelecida entre um simulacro de cultura política
liberal sustentada pela comunidade jurídica – sintetizada nas Constituições
liberais – e as culturas políticas oligárquica e totalitária. Oliveira Viana
designou o simulacro de liberalismo pelo significante efetivo “idealismo de
nossa elite” (Vianna: 10-11). Florestan Fernandes concebeu a cultura política
totalitária como um conceito de política clausewitzniano invertido: a política
brasileira é a guerra por outros meios (Silveira. 2000: 30). Trata-se de um
conceito realizado como significante-prático pela cultura política totalitária getulista,
pela cultura totalitária militar e pela cultura totalitária lulo-stalinista no
século XXI. Em Florestan, o Estado autocrático burguês faz da burguesia
brasileira o sujeito histórico da cultura política totalitária (Fernandes:
218). Já a cultura política liberal só existe como ficção (simulacro)
sustentada pela comunidade jurídica idealista e pelo parlamento no momento da
confecção das Constituições liberais. Ao tecer Constituições liberais, o
parlamento funcionou como significante da política como simulacro de simulação.
No discurso político, o parlamento se realizou como uma manifestação do
inconsciente político brasileiro. A prática do judiciário é um sincretismo mau
temperado de simulacro de liberalismo com culturas políticas oligárquica e
totalitária. No entanto, a comunidade jurídica parece acreditar que o Direito
brasileiro é um direito positivo que continua a tradição do Direito liberal
brasileiro. Como no Brasil a comunidade científica não considera isso uma
coisa séria, o país ignora totalmente o fundo do buraco no qual está
vivendo.
Entre nós, a relação entre
episteme e Direito tem assombrado a comunidade jurídica. Há sinais de que o não
funcionamento de um direito científico na prática estatal pesa como chumbo no
cérebro da comunidade jurídica. Seria uma aquisição extraordinária para a
ciência se a comunidade jurídica tecesse o Direito como objeto de uma
contraciência jurídica da política. Isso seria um modo de diminuir a influência
das culturas políticas oligárquica e totalitária no Direito e também um modo de
evitar que ele faça parte da lógica do simulacro que sobredetermina a política in nuce. O simulacro de esfera jurídica
liberal (Silveira. 2000: 24) faz do Direito moderno um artefato do inconsciente
político.
O ministro Gilmar Mendes acredita
que o STF está a caminho de se tornar uma corte bolivariana. O bolivarianismo é
a mais nova versão de populismo totalitário na América Latina. Sua influência
sobre a política mundial já capturou o partido Podemos de Pablo Iglesias que
aparece como uma alternativa aos partidos da oligarquia política híbrida na
Espanha. A cultura política totalitária progride na Europa e não deve ser
desprezado como um fenômeno periférico o domínio do criptonazista Victor Orban
sobre a política na Hungria. Um fenômeno extremo como o Aurora Dourada grego é
parte da cadeia de significantes populistas que fazem da Europa uma superfície
política aberta à intervenção da cultura política totalitária. O populismo é a
alternativa à crise do modelo oligárquico híbrido e um golpe de Estado
permanente na cultura política procedimental do mundo da vida europeu? A
política brasileira e a política mundial aparecem – factualmente – como duas superfícies;
mas constituem – artefatualmente – uma única superfície. Trata-se de um espaço abstrato, uma coleção arbitrária
de “objetos homogêneos” que não são necessariamente objetos no sentido comum do
termo, senão que podem ser fenômenos, estados, funções (Eidelsztein: 22).
Trata-se de uma concepção topológica da mundialização da política. A banda de
Möbius não implica descontinuidade (Eidelsztein: 63). Na “topologia” lacaniana,
o esquema “L” é parecido com a banda de Möbius. Trata-se de uma aparência
superficial, pois as estruturas são essencialmente
distintas no esquema “L”. Neste, há descontinuidade (Eidelsztein : 61-63).
No século XIX, Joaquim Nabuco
usou o termo simulacro de democracia para definir a política brasileira. No
século XX, Oliveira Vianna viu a política, entre nós, como uma superfície
moldada pela cultura política oligárquica e pela lógica do simulacro. Se o
inconsciente político é linguagem política como simulacro de simulação, há um
laço social entre ele e a política. Florestan Fernandes concebeu a modernidade
política brasileira como simulacro (Silveira. 2000: 23). O século XXI revelou a
política sob a soberania virtual da cultura populista totalitária em uma
superfície que aparece dominada pela lógica do simulacro liberal. No Brasil, a cultura política totalitária
teve como demiurgo Getúlio Vargas no plano da biografia individual. Ela concebe
a política como a guerra por outros meios. Como biografia pública, o Estado
autocrático burguês é o artefato que a reproduz de modo ampliado (Fernandes:
264; Silveira. 2000: 32). Este Urstaat
burguês é o artefato mais sublime da cultura política totalitária entre nós.
Ele tem um papel importante na metamorfose da República democrática de 1988 em
uma democracia despótica. Há uma linha de força que faz a junção entre a
política brasileira e a política mundial. Trata-se da junção da cultura
política totalitária com a lógica do simulacro. A história política – nacional
ou mundial - é nosso referencial perdido, ela é nosso mito (Baudrillard:
69).
A comunidade jurídica é parte do
aparelho de Estado psíquico que tem como sujeito a população, se esta for
composta pelos indivíduos que pertencem ao Estado, pois a população do Estado é
o domínio pessoal de vigência da ordem jurídica do Estado (Kelsen: 304).
Trata-se do aparelho psíquico do discurso do mestre que regerá, ou já rege em
muitos países, o Direito sob a soberania do capitalismo oligárquico mundial e
do artefato dele: o Estado despótico capitalista. A partir de Kant, o princípio de
que o Direito deve ocupar-se de comportamentos e não de intenções se converteu
em um postulado fundamental. No Direito oligárquico-totalitário em tela, tal
princípio kantiano é abolido. Disso resulta a montagem do Urstaat como escultor da população que deve sofrer com o sentimento
de culpa por se encontrar em um estado de rebelião permanente, mesmo que seja
virtual, contra o Estado despótico capitalista. No lugar do povo-nação, o
trabalho de escultor do Urstaat manufatura
uma espécie de povo-freudiano. A
menor intenção de se rebelar deve ser julgada sem misericórdia para fazer
retornar a pulsão de morte liberada pelos rebeldes contra si. O aparelho de
Estado psíquico tem um papel crucial nesta dinâmica política. A prisão
brasileira é um artefato equivalente ao campo de concentração como parte do
aparelho psíquico do discurso do mestre. Ela é o significante fáctico que
sobredetermina a cadeia de significantes do direito brasileiro, incluindo a
comunidade jurídica; ela transforma o Direito em um instrumento despótico de um
poder artefáctico que é alimentado pelos fluxos da pulsão de morte da elite. A
prisão é a expressão estética grotesca do inconsciente político brasileiro.
Nesta superfície política, a comunidade jurídica vê o Direito como simples
técnica jurídica e se comporta como uma máquina de guerra jurídica heideggeriana.
III
Com o globalismo, a história da
natureza e a história da espécie humana instauram a contradição principal do
aspecto principal da dialética da história universal, na medida em que a Terra
além de ser um ente astronômico transforma-se em um ser histórico (Ianni: 29).
Com o globalismo, a contradição entre o trabalho e o capital passa a ocupar o
aspecto secundário da contradição principal na história universal. Isso é a
causalidade da rede de significantes econômicos que explica a ausência da luta
de classes como lugar central na política mundial. No aspecto principal da
contradição principal da dialética da história universal, encontra-se agora a
contradição sociedade versus natureza (Ianni: 28). Infelizmente, Octávio Ianni
não especificou que a contradição sociedade versus natureza é a contradição
entre uma cultura política produtivista (economicista) ou cultura política
totalitária e a história da natureza como fonte de recursos naturais finitos,
fonte de uma produção de riqueza finita. Ianni é parte do marxismo brasileiro
subjugado pela dialética oca, um significante equivalente à ideologia oca
(Adorno: 140). O ambientalismo dos naturalistas é a forma mais acabada de uma
cultura política que se opõe à cultura política totalitária. Um Direito
ambiental - que seja um artefato em defesa da natureza contra a cultura
política totalitária produtivista - deve atuar efetivamente na proposta dos
naturalistas de reservar uma parte do planeta para as espécies não humanas. A
cultura totalitária é uma concepção de política que define a natureza pela
cultura da guerra. A natureza é o inimigo que deve ser aniquilado, consumido
até a última gota. Qual forma de Direito é adequada a este estado de
insurreição permanente da espécie humana contra a natureza no capitalismo
oligárquico mundial? Um Direito que transforma a comunidade jurídica em uma
máquina de guerra jurídica heideggeriana contra a natureza. A destruição da
Floresta Amazônica pela oligarquia rural capitalista se apoia amplamente em um
Direito que tem como guardiã a máquina de guerra jurídica heideggeriana como expressão
da cultura política totalitária no mundo da vida.
O globalismo inaugura um novo ciclo
da história, quando esta se movimenta como história universal (Ianni: 249).
Neste sentido, ele recria a relação da população com o território. Trata-se de
uma realidade na qual o local e o nacional, a identidade e o fundamentalismo, o
povo-nação e o povo freudiano, a sociedade nacional e a sociedade mundial são simultaneamente
desintegradas ou integradas em novas formações políticas. A globalização da
economia capitalista, compreendendo a formação de centros decisórios extra e
supranacionais, debilita ou mesmo anula possibilidades de estratégias
nacionais. “As condições para a formulação e implementação de projetos
nacionais são drasticamente afetadas pela globalização. Ou melhor, os projetos
nacionais somente se tornam possíveis, como imaginação e execução, desde que
contemplem as novas e poderosas determinações “externas”, transnacionais e
propriamente globais” (Ianni: 115, 113).
O globalismo não significa homogeneização. Ele é um universo de
diversidade, de tensão e antagonismo. As mesmas forças envolvidas na
globalização são o motor ou causa de forças adversas que, em alguns casos,
parecem a repetição do antigo de um modo novo e lúdico. A cultura populista
totalitária é um exemplo perturbador desta dialética. O globalismo parece
reinventar a cultura política totalitária na dialética entre o território
nacional e a mundialização (desterritorialização) deste. Tal cultura seria o
sintoma de uma reterritorialização do território nacional na política mundial?
Mas não se trata mais da nação-moderna, mas da nação metabolizada pela
mundialização. A nação torna-se um simulacro de nação-moderna. Como simulacro
de Estado moderno, o Estado-nação é parte da extensão da lógica do simulacro a
vastos espaços das “relações inter-nacionais”. Neste sentido, a ideia de que o
direito soberano é o direito nacional torna-se um problema dilacerante em uma
política mundial anárquica que não se deixa regular pelo direito internacional.
Como destituir a soberania da cultura totalitária produtivista em uma política
mundial na qual o Direito é tragado pela lógica do simulacro? O inconsciente
político produtivista parece ser o motor localizado no aspecto principal da
contradição entre a natureza e a espécie humana capitalista. Pedaços de uma
comunidade jurídica mundial poderiam deixar de se comportar como máquina de
guerra heideggeriana e a partir de uma contraciência jurídica da política
mundial mobilizar uma contraofensiva à soberania da cultura política
totalitária? A comunidade jurídica italiana - que fez a mais impressionante
contraofensiva ao domínio das máfias na política da Itália - não são um exemplo
palpável para o estabelecimento de uma comunidade jurídica mundial? A
mundialização do Direito é uma conclusão lógica derivada da contradição
principal da política mundial, a saber: a contradição entre a natureza e a
sociedade.
É possível pensar a reinvenção da
cultura política totalitária na dialética nação versus globalização na política
mundial. Na Europa e na América Latina, as várias versões do populismo são
apenas o sintoma de uma vontade de poder cujo horizonte de sentido é a
transição da soberania do capitalismo corporativo mundial para o capitalismo
oligárquico mundial. Um Direito nacional não é uma forma superestrutural
adequada ao Estado que corresponde a esta fase do capitalismo. Qual seria o
Direito adequado ao Estado despótico capitalista? Um Direito que tem que lidar
com uma cultura política totalitária que articula a política mundial de modo
irregular, fragmentado e contraditório de uma sociedade mundial prenhe de
diversidade, desigualdade, heterogeneidade, tensões e contradições. Trata-se de
uma sociedade atravessada pela não-contemporaneidade de sua matriz
espaço-temporal. “O tempo está desarticulado, consertado e desconcertado, ao
mesmo tempo desregrado e louco. O mundo está fora dos eixos, o mundo se
encontra deportado, fora de si mesmo, desajustado” (Derrida. 1993: 42). O
antagonismo fatal entre a história da natureza e a história da espécie é o
motor que anuncia que o tempo enlouqueceu. Se o Direito positivo é também o
produto do processo civilizatório ocidental - base de uma matriz tempo-espacial
onde o tempo está articulado, regrado e concertado - como pensar o Direito em um
processo contracivilizatório de um tempo enlouquecido? O processo
contracivilizatório mergulha o planeta na dialética diabólica na qual o Urstaat e suas máquinas de guerra
jurídicas heideggerianas enfrentam as máquinas de guerras freudianas no deserto
da política mundial. Trata-se do fim do capitalismo como processo civilizatório
(Ianni: 241).
BIBLIOGRAFIA
ADORNO/HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento. RJ: Zahar.
1985
BARCELLONA/HART/ MÜCKENBERGER. La formación del jurista. Capitalismo monopolístico
y cultura jurídica. Madrid: Editorial Civitas. 1977
BAUDRILLARD. Simulacres et simulation. Paris: Galillée. 1981
BOURDIEU. O poder simbólico. Lisboa/RJ: Difel/Bertrand. 1989
CLAUSEWITZ. Da guerra. SP: Martins Fontes. Sem data
DIAS, Floriano Aguiar. Constituições do Brasil. v. 2. RJ:
Editora Liber Juris. 1975
DERRIDA. Spectres de Marx. Paris: Galilée. 1993
DERRIDA. Politiques de l’ amitié. Paris: Galilée. 1994
EIDELSZTEIN, Alfredo. Modelos, esquemas y grafos em la ensenanza
de Lacan. Buenos Aires: Ediciones Manantial SRL. Sem data
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. RJ:
Zahar: 1976
FOUCAULT. Les mots et les choses. Paris: Galimard. 1996
FREUD. Obras Completas. O mal-estar na civilização. RJ: Imago. 1974
HABERMAS. La technique et la Science comme idéologie. La fin de la métaphysique. Paris:
Gallimard. 1973
HABERMAS. Democracia e direito. Entre facticidade e validade. 2 volumes. RJ:
Tempo Brasileiro. 1997
HEIDEGGER. M. Conceptos fundamentales (curso del semestre
de verano, Friburg, 1941). Madrid: Alianza Editorial. 1989
IANNI. Octávio. A era do globalismo. RJ: Civilização
Brasileira. 1996
JAMESON. A cultura do dinheiro. Ensaios sobre a globalização. Petrópolis:
Vozes. 2001.
KELSEN. Hans. Teoria pura do direito. SP: Martins
Fontes. 1987
LACAN. Outros escritos. RJ: Jorge Zahar Editor. 2003
LACAN. O Seminário. De um discurso que não fosse semblante. Livro 18. RJ:
Zahar. 2009
LEFORT. Claude. Le travail de l’oeuvre. Machiavel. Paris:
Gallimard. 1972
LÉNINE. Oeuvres. V, 25. L’Etat et la revolution. Paris/Moscou: Éditions
Sociales/Éditions du Progrès. 1977
MAcCARTHY. Thomas. La teoria crítica de Jürgen Habermas. Madrid:
Editorial Tecnos. 1992
MARTINS, Carlos Esteves. Capitalismo de Estado e modelo político
brasileiro. RJ: Grall. 1977
MARX. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política.
(Grundrisse). 1857-1858. Espanha: Siglo XXI. 1971
MARX. Pensadores. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SP: Abril Cultural.
1974
MARX Y ENGELS. Obras escogidas. Tomo II. Madrid:
Editorial Fundamentos. 1975
MARX. O capital. Livro I. Capítulo VI (inédito). SP: Livraria Editora
Ciências Humanas. 1978
MARX. O capital. Livro 3. Volume
V. SP: Difel. 1985
PEREIRA, Luís. Anotações sobre o capitalismo. SP:
Livraria Pioneira Editora. 1977
POLANYI. Karl. A grande transformação. As origens de nossa
época. RJ: Campus. 1980
POULANTZAS. L’État, le pouvoir, le socialisme. Paris: PUF. 1978
PUSAKANIS, E. B. A teoria do direito e o marxismo. RJ:
Renovar. 1989
SILVEIRA. José Paulo Bandeira da.
Política brasileira em extensão: para
além da sociedade civil. RJ: Edição de Autor. 2000
SILVEIRA. José Paulo Bandeira da.
Leitura da política brasileira
(1985-1992). “Publique-se. Livraria Saraiva. 2013
VIANNA. Oliveira. O idealismo na evolução política do Império
e da República. SP: Bibliotheca d’ “O Estado de S. Paulo”. 1922
SADE. A filosofia na alcova. SP: Círculo do Livro. Sem data.
SCHMITT. Carl. O conceito do político. Petrópolis:
Vozes. 1992
SHAKESPEARE. Obra completa. V. I. Júlio César. RJ: Nova Aguilar. 1988
WEBER. Economia e sociedade. v. 2. Brasília: Editora da UNB. 1999 Fonte: José Paulo Bandeira
Nenhum comentário:
Postar um comentário