PICICA: "A praticidade com que o nascimento ocorre cirurgicamente é marca dos
nossos tempos cada vez mais mercantilizáveis: “time is money”!"
Por que a exceção vira regra? A epidemia de cesáreas no Brasil e a violência obstétrica
A praticidade com que o nascimento ocorre cirurgicamente é marca dos
nossos tempos cada vez mais mercantilizáveis: “time is money”!
Foto de parto em manifestação no Uruguai pela liberdade de poder escolher onde parir. Foto: Caren Rhoden |
Por Alcir Martins
Tenho o feliz destino de ser pai de duas meninas. Ambas nascidas no mês
de abril. Ambas nascidas de cesarianas. Para a mais velha havia data e
horário marcado para a realização da tal cirurgia. Para a caçula
queríamos um parto normal, o mais natural e humanizado possível. As duas
“estouraram” suas bolsas e indicaram o momento em que iriam nascer a
despeito de previsões ou agendamentos de outros.
Minha filha mais velha, na véspera da cesariana agendada, rebentou a
bolsa amniótica e decidiu nascer algumas horas antes do previsto –
previsto pelo médico, não por ela, ora bolas! Ainda assim e apesar dos
sinais que indicavam o início do trabalho de parto, foi realizada a
cesariana por que não se realiza um parto pélvico por via vaginal –
asseverou o doutor.
Parto pélvico ou posição pélvica é o nome que se dá ao “bebê sentado” no
útero da mãe. Nesta condição, os quadris e os ombros do bebê saem
primeiro do útero e, por fim, a cabeça, ao contrário do parto cefálico,
considerado o correto.
Minha filha mais nova também decidiu dar uma beliscadinha e romper a
bolsa no meio de uma madrugada dessas. A bolsa rota pode dar início – ou
não – ao trabalho de parto. É possível que da ruptura da bolsa até o
início do parto propriamente dito ocorra um intervalo de mais de 12
horas. Foi o que ocorreu: passaram-se as horas e, ao completarem-se 18
horas com a bolsa rota e sem dilatações, não tivemos outra alternativa
que não a cesariana – orientou o doutor.
Estas duas histórias, com todas suas diferenças de tempo, lugar e
conhecimento (empoderamento) sobre a gestação e o parto, guardam duas
importantes semelhanças. A primeira delas é que não é verdade, para
nenhuma das situações acima, que a cesariana era a única e derradeira
alternativa para as mães e para as meninas. Partos pélvicos podem sim
ocorrer pela via vaginal sem riscos para a criança ou para a mãe. Exige
um maior trabalho, mais atenção e mais tempo do médico. Mas é possível! A
bolsa rota sem o início das dilatações pode ser acompanhada pelo
obstetra que induzirá ao trabalho de parto ao custo de paciência,
dedicação, acompanhamento e tempo!
A segunda semelhança entre o nascimento das minhas duas filhas é que,
com a ruptura das bolsas, elas indicaram que a hora de nascer estava
próxima ou já havia chegado. A epidemia de cesáreas agendadas, entre
outros perigos, traz ao mundo, de maneira muitas vezes (ou sempre)
abrupta, um grande número de crianças prematuras. Bebês que poderiam e
deveriam ficar mais alguns dias ou semanas no ventre de suas mães são
arrancados em dia e hora marcado de maneira a garantir que o
profissional da saúde não atrase suas férias nem perca um programa de
final de semana ou evento qualquer. A proporção de nascimentos
prematuros (antes de 37 semanas) é de cerca de 11,3% no Brasil. Em
relação aos bebês que nasceram com 37 ou 38 semanas gestacionais, a
proporção fica em 35%. Passadas as 37 semanas os bebês já não são
tecnicamente prematuros mas poderiam ganhar mais peso e maturidade
dentro do útero materno até a 39ª semana. Essa onda de nascidos com 37
ou 38 semanas no Brasil pode ser explicada pelo número de cesarianas
agendadas antes do início do trabalho de parto. Dados alarmantes podem
ser conferidos nas pesquisas da FIOCRUZ, “Nascer no Brasil” ou da UNICEF, “Toda Criança Conta”
A praticidade com que o nascimento ocorre cirurgicamente é marca dos
nossos tempos cada vez mais mercantilizáveis: “time is money” !
Um parto normal pode demandar tempo. Um parto natural e humanizado se
estenderia pelo prazo em que várias cirurgias cesáreas poderiam ser
realizadas. Eis aqui uma imposição mercadológica que agride mulheres e
crianças todos os dias. A Organização Mundial da Saúde indica como
adequado um percentual de 10 a 15% dos partos por via cirúrgica. No
Brasil temos mais da metade dos partos realizados por cesáreas, muitas
delas desnecessárias ou evitáveis. Na rede privada o número de cesáreas
chega a 9 em cada 10 nascimentos. Isso mesmo! Na rede hospitalar privada
o índice alcança estratosféricos 88% de cesarianas.
No Brasil somos campeões mundiais da cesárea: 52%. Estamos na contramão!
Nos EUA, o percentual de partos cirúrgicos era 33% há poucos anos,
atualmente baixaram para 26% por recomendação do Colégio Americano de
Obstetrícia. Suiça está em 30%, Alemanha em 29%. No vizinho Uruguai as
cesáreas não passam dos 34%.
Os crescentes movimentos em defesa do parto natural, além de
questionarem a mercantilização da vida e da saúde; questionam também o
próprio discurso da autoridade do médico e, assim, questionam certa
manifestação do patriarcado que retira o protagonismo da mulher sobre o
seu corpo e o seu parto.
É opressor e atinge mulheres de todas as classes, a concepção que dá ao
médico o controle sobre o parto, tirando da mulher, mais uma vez, o
direito de decisão sobre seu próprio corpo. O parto, fisiológico e
natural, não pode ser tratado como doença – esta sim exige atendimento e
intervenção médica. Gestação e parto – que não são doenças – precisam
de acompanhamentos e cuidados para que tudo transcorra bem e, apenas nos
casos de complicações, atue o médico e seus procedimentos. O médico e a
técnica dominam tudo: até o verbo parir está caindo em desuso, fala-se
em ter um bebê, ou ganhar um bebê, que podem ser coisas bem diferentes.
O parto por via vaginal foi perdendo espaço para a cesareana apenas no
século XX, quando a cesariana tornou-se aceitável como recurso
extraordinário que é – extraordinário porque não é pra ser cotidiano e
também porque salva vidas quando necessário – mas passou a ser praticada
de maneira exagerada e irresponsável.
O caso é de violência obstétrica (VO). A medicina, neste caso, está
direcionada pelo lucro. Repetimos: “time is money”! Uma cesárea se
conclui com, no máximo, duas horas de trabalho da equipe médica; já o
trabalho de parto é imprevisível, podendo durar até dois dias. Esta
praticidade cirúrgica que cabe direitinho na agenda do médico retira da
mulher qualquer direito de decidir. O discurso médico e sua autoridade
autoritária influencia a mulher e a família envolvida na gestação.
Falsos ou exagerados temores são convocados para justificar a suposta
segurança e comodidade de uma cesárea. Comodidade para o médico. Ou,
simplesmente, porque pelo plano de saúde só faz cesariana, o parto
normal no setor privado custa caro.
A violência obstétrica tem muitos meios e formas de manifestação. São as
cesáreas e episiotomias (um ‘pique’ no períneo para ‘permitir’(SIC) o
parto via vaginal). Mas também são as agressões verbais, humilhações ou
ridicularizações, realização de procedimentos sem consentimento, nem
informação para que a mulher decida. Começando pela imposição da
litotomia (ou posição ginecológica): a mulher fica na horizontal, numa
mesa bem ao alcance das mãos médicas mas em posição completamente
antinatural para o parto.
A luta pela garantia do direito ao parto humanizado – que não é aquele
sem intervenção alguma mas apenas sem intervenção desnecessária – pode
reorientar não só o serviço de saúde e a atuação dos profissionais e
equipes que atuam nos partos, mas também pode nos provocar a repensar
que tipo de seres humanos e de que maneira os estamos colocando no
mundo. Não trata-se de um direito daqueles que deva trazer “proteção” às
mulheres, mas é sim uma ferramenta de exercício e consolidação da
autonomia sobre seus corpos e suas vidas. Sem a autodeterminação e o
empoderamento das mulheres o parto nunca será humanizado.
Fonte: O Inverso do Contraditório
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