PICICA: "Publicamos abaixo o texto que Giorgio Agamben preparou para a conferência de lançamento de seu livro Pilatos e Jesus. O contexto foi o do seminário “Torino Spiritualitá”, que no ano passado teve como tema “O valor da escolha”."
Agamben: O fascínio discreto de Pôncio Pilatos
Por Giorgio Agamben.
Publicamos abaixo o texto que Giorgio Agamben preparou para a conferência de lançamento de seu livro Pilatos e Jesus. O contexto foi o do seminário “Torino Spiritualitá”, que no ano passado teve como tema “O valor da escolha”.
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Por que
Pilatos? Por que esse homem, o prefeito da Judeia entre os anos 26 e 36,
se impôs com tanta urgência à minha atenção, quase me obrigando a
refletir e a escrever sobre ele, sem me dar descanso, até que,
interrompendo a escrita de uma obra em andamento, levei a termo, em três
meses frenéticos, o livreto sobre o qual vim falar a vocês?
Talvez com a
mesma força ele se impôs a Bulgakov, forçando-o a inserir na sua
obra-prima, sem razão aparente, o estupendo capítulo sobre Pôncio
Pilatos, que não é Bulgakov, mas o próprio Satanás a narrar. Certamente,
o seu nome, Pôncio Pilatos (talvez o homem com a lança, pila, ou, mais provavelmente, com o barretinho em formato de cone que os romanos chamavam de pilleus)
é o único nome, além do de Jesus e de Maria, que aparece no credo em
que os cristãos compendiam, há dois milênios, a sua fé: “padeceu sob
Pôncio Pilatos”.
Por que
Pilatos? Para provar, disse-se com razão, o caráter histórico da paixão
de Jesus, que ocorreu naquele certo dia, sob Pôncio Pilatos, justamente.
Mas por que nomear justamente ele, um obscuro vigário e não, segundo o
costume romano, o imperador Tibério? Porque, se responderá, ele não é
somente um nome, é um personagem de carne e osso, talvez o único
verdadeiro personagem dos Evangelhos. Os outros ou são figuras já de
algum modo sacras, como João Batista e os Apóstolos, ou saem apenas por
um momento da multidão anônima que circunda Jesus, para servir de
exemplo, como o bom samaritano, ou da profecia, como Lázaro, que
ressurge da morte.
Mas, na
narrativa dos Evangelhos e principalmente em João, ele, Pilatos, é algo
menos e, ao mesmo tempo, muito mais: um homem do qual conhecemos as
hesitações, o medo, o ressentimento, o sarcasmo, as suscetibilidades, a
hipocrisia (como quando se lava as mãos para se purificar do sangue de
um justo).
É, enfim, o
autor de frases memoráveis, como a famigerada réplica a Jesus que quer
testemunhar a verdade: “O que é a verdade?”. Ou como o lema com o qual
silencia os judeus que lhe pedem para mudar a inscrição sobre a cruz: “O
que escrevi, escrevi”. É ele, por fim, que, pouco antes de entregar
Jesus ao suplício, pronuncia as palavras fatídicas: “Ecce homo, eis o homem!”.
As razões
pelo interesse certamente não faltavam, se Nietzsche pôde escrever que
Pilatos “é a única figura dos Evangelhos que merece respeito”. No
entanto, não era isso que me levava a reler os textos, a espiar cada
gesto seu, a pesar cada palavra sua. Parecia-me, de fato, que no
encontro (fugaz: durou cerca de seis horas, desde o início da manhã até a
hora sexta) entre Pilatos e Jesus estava em questão um evento enorme e
inédito, que naquelas seis horas, para além do drama da paixão e da
redenção, sobre o qual tanto se refletiu e não se deixa de refletir,
talvez tenha se consumado também outro evento, não menos decisivo, e
que, para mim, se tratava de entender precisamente isso.
O que
acontece entre esses dois homens que estão um na frente do outro e se
falam no pretório de Jerusalém? Um, o vigário de César, que o quadro de
Ticiano no museu de St. Louis mostra ricamente vestido, com a cabeça
coberta por um chapéu cravejado de pedras preciosas e com as mãos
aneladas, está investido de todos os poderes mundanos (“Tu não sabes”,
diz a Jesus, “que tenho o poder de te libertar e de te crucificar?”), o
outro inerme, que Ticiano retrata nu e com as mãos amarradas e que,
mesmo assim, declara ao prefeito: “O meu reino não é deste mundo”.
Quando Jesus
é levado diante de Pilatos, já foi dito, dois mundos estão imediata e
irreconciliavelmente de frente, o dos fatos e o da verdade. Mas não é
suficiente: nesse pretório de província, cujo improvável local os
arqueólogos acreditaram ter identificado, quem se enfrenta não são
somente os fatos e a verdade: aqui, como nunca em outro lugar na
história do mundo, a eternidade cruzou a história em um ponto exemplar, o
temporal foi atravessado pelo eterno.
Importava-me
entender isso, esse grito e essa recíproca perfuração entre os dois
mundos era o quebra-cabeça que eu senti que devia resolver.
Mas a esse
enigma logo se sobrepunha outro, ainda mais tenaz, mais obscuro, e,
nele, o próprio Pilatos era o elemento decisivo, em todos os sentidos.
Por que o cruzamento entre os dois mundos, o humano e o divino, o
histórico e o que não tem história, tem a forma de um processo?
Dei-me
conta, lentamente, mas com clareza cada vez mais crescente, que esse, e
não outro, era o problema com o qual eu tinha que me deparar, com o
qual, “no pavimento de pedra que em hebraico se diz Gabatá”, tiveram que
se deparar, em última análise, cada um a seu modo, tanto Pilatos, o
juiz, quanto Jesus, o acusado.
O encontro entre o divino e o humano tem a forma de um processo, de uma krisis (krisis
em grego significa o juízo em um processo). Mas justamente aqui as
coisas se complicavam de modo inextrincável. Porque, enquanto eu
analisava o texto do Evangelho de João, tornava-se cada vez mais
evidente para mim que, no término da sexta hora, o juiz não tinha
pronunciado um juízo, tinha simplesmente “entregue” Jesus – assim dizem
concordemente os evangelistas – aos sinedritas e aos carnífices. Durante
toda a duração do processo, Pilatos, aliás, só tinha tergiversado,
tentando primeiro se declarar incompetente e remeter o juízo a Herodes,
propondo depois uma anistia para a Páscoa, finalmente fazendo com que o
acusado fosse flagelado para isentá-lo da acusação maior.
Mas quando
todo expediente, toda tergiversação resultara vã, ele não pronuncia o
juízo, limita-se a “entregar” Jesus. Houve um processo – ou, ao menos,
um simulacro de processo: mas ele não concluiu com um juízo. Ainda mais
enigmático se tornava o meu problema. O que é, de fato, um processo sem
juízo? E o que é uma pena – neste caso, a crucificação – que não deriva
de um juízo?
Pilatos, o
obscuro procurador da Judeia, que devia agir como juiz em um processo,
se recusa a julgar o acusado; Jesus, cujo reino não é deste mundo,
aceita se submeter ao juízo de um juiz, Pilatos, que se recusa a
julgá-lo.
* Publicado originalmente em italiano no jornal La Stampa, 25.09.2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto, para o IHU-Unisinos.
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Giorgio Agamben nasceu
em Roma em 1942. Considerado um dos principais intelectuais de sua
geração, deu cursos em várias universidades europeias e
norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York
University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos.
Responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin, é
autor, entre outros, de Estado de exceção (2005), Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008), O reino e a glória (2011), Opus dei (2013), Altíssima pobreza (2014) e o mais novo Pilatos e Jesus. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Fonte: Blog da Boitempo
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