dezembro 10, 2014

"Ética e privacidade na rede", por Sylvia Debossan Moretzsohn

PICICA: "A conduta do professor pode ser execrável, mas deveria ser clara a necessidade de respeito ao que ocorre no âmbito privado. Não porque abusos devam ficar impunes, mas porque ninguém deveria ter o direito de romper a confiança tácita que precisa existir em relações particulares. Apenas para dar um exemplo radical, bastaria pensar no que aconteceria se médicos, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, resolvessem divulgar conversas com seus clientes.

Abusos, ofensas, intimidações deveriam ser denunciados à Justiça, sempre que os ofendidos se sintam ameaçados ou considerem necessária uma medida reparadora." 


CASO IDELBER AVELAR

Ética e privacidade na rede

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 09/12/2014 na edição 828



A história teve pouca repercussão na imprensa, mas mobilizou milhares de pessoas na internet, especialmente feministas e militantes de esquerda de modo geral, entre os quais muitos professores universitários. Começou no fim de novembro, quando surgiram denúncias de assédio sexual, logo reunidas num Tumblr (ver aqui), contra o professor Idelber Avelar, que leciona Teoria Literária e Estudos Culturais na Universidade de Tulane, em Nova Orleans (EUA), e é uma das referências entre os chamados “blogueiros progressistas” no Brasil. A discussão – muitas vezes virulenta, como é praxe nas redes – envolveu uma série de aspectos, entre eles o que mais interessa aqui: a falta de limites entre público e privado, que é uma questão ética essencial.

As denúncias, anônimas, apontam a contradição entre a imagem pública do professor e seu comportamento na vida particular. Em síntese, ele utilizaria seu discurso contestador e seu prestígio social como chamarizes para atrair suas vítimas, que, aparentemente, no início não percebiam a armadilha e mesmo demonstravam gostar de participar daquele jogo de sedução e libertinagem, até que caíam em si e se sentiam confusas, enganadas, usadas, humilhadas.

Segundo os relatos, o que começava com uma paquera comum ia progredindo até descambar para a mais rasteira grosseria: o galanteador, de repente, enviava uma foto de seu pênis e ficava desafiando o suposto puritanismo das moças. Depois, passava a ofendê-las.

Idelber respondeu às acusações no seu blog, onde anuncia que está processando quem fez as denúncias, por violação de privacidade e difamação. Fala também em ressentimentos pessoais e políticos. Anteriormente defensor do PT, ele passou a criticar o governo, a ponto de alguns o acusarem de se igualar à Veja.

Ética e ação direta

Há um aspecto ético essencial na ultrapassagem dos limites que separam os fetiches sexuais do puro, simples e grosseiro abuso, como disse André Godinho em um texto muito elogiado no Facebook e reproduzido no portal Forum (ver aqui): “É o assédio na abordagem, é o constrangimento com foto de pau não solicitada, é a manipulação de quem está entrando num jogo sem estar consciente do que se trata”.

Por isso, segundo ele, a questão não seria jurídica ou moral, mas ética e política. O problema é o enfoque da atitude política, no estímulo à ação direta:

“Ação direta não se pratica só em atos de rua, se pratica também em formas de lidar com opressões que não necessariamente passam pelos canais institucionais – e a exposição pública de opressões privadas é uma dessas formas. Uma forma de ação que a tecnologia facilita e que, como qualquer outra, está sujeita a erros a serem objeto também de autocrítica sempre que for o caso”.

Curioso é que a imprensa é impiedosamente criticada quando publica denúncias infundadas ou insuficientemente apuradas, justamente devido ao dano – a rigor, irreparável – à reputação dos acusados. Mas, quando a ação parte de pessoas comuns e são compartilhadas redes sociais, esse cuidado parece ser dispensável: seria suficiente, depois, reconhecer o erro, se fosse o caso.

Respeito à privacidade

A conduta do professor pode ser execrável, mas deveria ser clara a necessidade de respeito ao que ocorre no âmbito privado. Não porque abusos devam ficar impunes, mas porque ninguém deveria ter o direito de romper a confiança tácita que precisa existir em relações particulares. Apenas para dar um exemplo radical, bastaria pensar no que aconteceria se médicos, psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, resolvessem divulgar conversas com seus clientes.

Abusos, ofensas, intimidações deveriam ser denunciados à Justiça, sempre que os ofendidos se sintam ameaçados ou considerem necessária uma medida reparadora.

O governo dos “justos”

É preocupante a perspectiva de substituição da via institucional pela “ação direta” na “ágora virtual”, que, ao viabilizar a manifestação indiscriminada, estimula a ilusão de que podemos dispensar as mediações tradicionais. O discurso libertário costuma ser acolhido com entusiasmo por quem condena a morosidade e o caráter de classe – e, no caso, também de gênero – da Justiça: afinal, se temos razão, por que esperar?

Bastaria pensar como reagiríamos se o professor resolvesse gozar com a divulgação de suas conversas íntimas com as mulheres que atraiu.

Túlio Vianna, professor de Direito da UFMG, ofereceu argumentos contrários à tese da ação direta em seu mural no Facebook:

“Quando alguém diz: ‘a lei é injusta’ porque ‘a lei tem ‘lacunas’’ (argh!), então ‘vamos fazer do nosso jeito’, porque ‘nós somos justos’, está assinando atestado de que rejeita a democracia. O seu código moral só é melhor do que o do Feliciano pra você e pra seus amigos. O Feliciano e os amigos dele acham o código moral deles bem melhor que o seu e principalmente que o meu”.

Pior ainda: são maioria.

“Imagine se todo mundo resolver deixar de pagar impostos, por considerá-los ‘injustos’. Ou resolvessem bater até a morte em suspeitos de crime na rua, por considerar que ‘a justiça é ineficiente’. Voltaríamos a um estado de natureza. Não ia ser nada legal, principalmente se você é minoria política”.

(A propósito, um pequeno exemplo de ação direta foi noticiado no domingo [7/12] no site do Globo e reproduzido na edição impressa de segunda-feira: um morador de um prédio em Ipanema, na bucólica Rua Nascimento Silva imortalizada pela bossa nova, não gostou de ver um carro mal estacionado, que dificultava o acesso à garagem de seu edifício. Pediu ao porteiro um martelo emprestado e destruiu o veículo. Simples assim.)

Voyeurismo e pedagogia

Dos três principais jornais do país, O Globo foi o único que publicou algo além de uma nota sobre as acusações contra Idelber, e ainda assim apenas em sua edição online(ver aqui). Lamentavelmente, nem passou perto da discussão sobre privacidade. Preferiu expor alguns detalhes sórdidos da história, o que apenas reitera o voyeurismo que a situação excita.

É uma pena: o caso poderia ser pedagógico, em vários sentidos. Inclusive nesse que foi tema de grande discussão na rede: se houve ou não consenso entre o professor e as mulheres que hoje o denunciam, porque, em caso positivo, não haveria motivo para queixa. É curiosa a suposição desse consentimento: significaria que todos estariam em pleno domínio de seus sentimentos e desejos, quando sabemos, ou deveríamos saber, que jogos de sedução frequentemente envolvem dominação e submissão. Envolvem relações de poder... consentidas.

Desde quando o consentimento é prova de liberdade?

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007) 

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