A mutilação cultural da Rede Globo
No dia 7 de dezembro, o programa de entretenimento jornalístico da Rede Globo, o Fantástico, decidiu falar sobre infanticídio. Com a opinião de antropólogos, juristas, indígenas e secretários de segurança pública, o programa decidiu reduzir a conclusão a uma só: a crueldade do índio, o bárbaro sem respeito pela vida.
A introdução, feita pelos apresentadores do programa, dá o tom da reportagem: “Vamos falar de um assunto da maior importância: o direito à vida. Você acha certo matar crianças recém-nascidas por causa de alguma deficiência física?”. Logo após, em tom denunciante, vem a afirmação: “Pois saiba que isso acontece no Brasil e não é crime.”
A SEMIÓTICA DA MUTILAÇÃO
A desrespeitosa reportagem do Fantástico, maquiando-se de imparcial, com chamadas que convidavam o espectador a pensar “até onde é correto intervir”, semioticamente passava outra mensagem. Quando a apresentadora afirma, em tom de denúncia, que a prática de infanticídio por parte de algumas culturas indígenas não é crime no Brasil, depois de te perguntar se você “acha certo ou errado” que se matem crianças recém-nascidas, ela parte (ou faz você partir) de alguns pressupostos:
Primeiro pressuposto: só há a possibilidade de achar certo ou achar errado que se matem crianças recém-nascidas. Não há a possibilidade de o telespectador não concordar com o ato mas, ao mesmo tempo, entender que os indígenas vêem aquela questão de forma diferente, e que, afinal, quem somos nós, invasores do século 16, pra dizer como o índio tem que fazer as coisas ou se deve ou não manter elementos de sua cultura?
Segundo pressuposto: se você não acha um absurdo que os índigenas matem seus próprias filhos, você não dá a devida atenção para o “assunto de extrema importância” que é o direito à vida. Quando a apresentadora continua; “pois saiba que isso acontece no Brasil e não é crime”, fica praticamente evidente que ela esperava que você respondesse negativamente, ou seja, “achasse errado”.
Terceiro pressuposto: toda a discussão quanto ao infanticídio é, somente, a do direito a vida.
Todos esses pontos são importantes na construção da semiótica do genocídio cultural da Globo. Mas há um ponto especialmente importante. O Fantástico, com sua prática jornalística éticamente inabalável, convidou o antropólogo João Pacheco, que falou: “Não se pode atribuir a isso [ao infanticídio nas culturas indígenas] qualquer elemento de crueldade. Se uma pessoa começa já no nascimento conter deformações físicas ou incapacidades muito grandes, você vai ter sempre em si um marginal.”
E, com imagens de um bêbê indígena, vem a resposta do Fantástico: “Na visão do antropólogo, este garoto é um exemplo do que seria um marginal na comunidade indígena. Ele sofre de um problema neurológico.”
João Pacheco falava exatamente o que Raúl Ortiz, um antropólogo entrevistado pela Opera, disse: “A discussão é muito parecida com a do aborto. Para muitos desses grupos literalmente uma criança com deficiência não é uma pessoa propriamente.”
Notem; a criança com deficiência não é uma pessoa propriamente, estando assim à margem daquela comunidade e, portanto, sendo uma marginal. A criança é uma marginal para a comunidade, não “para o antropólogo.” Esse jogo de palavras do Fantástico tem como efeito a total desvalorização da opinião de um especialista, transformando o único personagem na reportagem que nadava contra a corrente em um ser completamente imoral.
ENTREVISTA
Com o fim de esclarecer mais essas questões, falamos com Raúl Ortiz, Antropólogo formado pela Universidad Austral de Chile, mestre e doutorando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas e membro do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI). É necessário ressaltar, como pedido por Raúl, que suas afirmações e análises nessa entrevista estão no âmbito opinativo, e que ele não se classifica como um especialista nesse tema específico.
Revista Opera: Você acredita que a matéria veiculada no Fantástico, da Rede Globo, traz benefícios para o debate e/ou o entendimento da população quanto à questão do infanticídio em algumas culturas indígenas? A reportagem, nos moldes em que foi feita, poderia afetar o público ou o Estado no sentido de aceitar intervenções nas comunidades indígenas?
Raúl Ortiz: Uma contribuição a qualquer debate, mas quando se trata de questões que envolvem olhares diferenciados e práticas contextualizadas em outras realidades culturais, deveriam começar por um exercício profundo de alteridade. Infelizmente, por mais que a matéria intitulada “Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com deficiência física”, transmitida no dia 7 de dezembro no programa “Fantástico” da Rede Globo, tenha a pretensão de se mostrar aberta a diversos pontos de vista sobre a prática do chamado infanticídio, acaba não conseguindo transcender um senso comum instalado na sociedade brasileira a respeito de vários temas associados, a saber: os direitos humanos, as diferenças culturais, as moralidades alternativas e as autonomias indígenas.
Tudo começa desde a apresentação da matéria: “Um assunto da maior importância: o direito à vida. Você acha certo matar crianças recém-nascidos por causa de alguma deficiência física?” Sem uma análise comunicacional profunda é possível identificar que esse questionamento inicial está aí não para iniciar um debate, mas para marcar uma clara postura de intolerância e incompreensão perante uma prática que ao invés de contextualizar desde o começo, a reportagem descreve como “o assassinato de bebês que nascem com algum problema grave de saúde”. A mera utilização dos conceitos “infanticídio” e “assassinatos” para se referirem a esta prática marcam, por um lado, uma visão tendenciosa de categorização extremamente etnocêntrica (veremos mais adiante o porquê). Por outro lado, só ajuda a criar um clima alarmista e sensacionalista, diante do qual dificilmente um espectador que desconhece a realidade das povoações indígenas no Brasil poderá se posicionar de um modo diferente do proposto pelos autores da matéria.
Outro elemento que mutila a possibilidade de um debate sério é a tendenciosa associação desta prática com os resultados do mapa da violência no Brasil. Sem um conhecimento direto do instrumento que serve para determinar as dinâmicas da violência, é claro que as cifras lançadas operam para uma definição da violência bastante diferente das que são possíveis encontrar em contextos indígenas onde o contato com os grandes centros urbanos ou mesmo com o Estado brasileiro são distantes ou até inexistentes em um plano formalizado. A opção de não dar continuidade de vida a uma criança recém nascida em um contexto indígena (nos poucos contextos indígenas onde esta prática pode ser documentada) não pode ser comparada com a violência, por exemplo, produzida pelo narcotráfico nas grandes cidades, pois trata-se de situações que são produto de lógicas totalmente diferentes, com consequências para o equilíbrio das respetivas sociedades onde cada uma dessas práticas ocorre, também totalmente diferentes.
Por último, cabe destacar que a reportagem é bastante silenciadora, e até caricaturizadora, da voz dos antropólogos, que, no caso, é representada pelo importante especialista João Pacheco de Oliveira. É assim como a disciplina é apresentada de uma maneira homogênea, como se não existisse divergência interna sobre este e outros assuntos, e quase como se fossemos ferventes e cegos crentes de um relativismo cultural que iria contra os Direitos Humanos Universais. Para a reportagem, os antropólogos (todos) defendemos a não interferência na cultura dos índios, quase como se estivéssemos falando de populações humanas fixadas no tempo, sem processos profundos de transformação intra e interétnicos e ancorados em um fundamentalismo purista que iria além das próprias visões dos índios. Nada mais afastado da realidade da disciplina. Muitos antropólogos trabalham na linha das relações interétnicas e dos processos de transformação das culturas, o que não quer dizer que a diferença cultural não exista ou seja menos relevante para as análises. De fato, acredito que o que o professor Pacheco de Oliveira vem dizendo sobre esse tema é muito mais do que foi editado na matéria do Fantástico, pois o argumento de que “não se pode atribuir a isso [ao chamado infanticídio] qualquer elemento de crueldade” no contexto indígena, não é afirmado apenas pelo fato de que culturalmente a visão sobre a vida e os direitos de viver dessa criança é totalmente diferente (o que seria acudir ao relativismo cultural), senão também porque o autor – em um texto escrito no contexto da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia¹ – afirma claramente que as campanhas contra essa prática, veiculadas quase sempre por grupos ou ativistas cristãos como o já conhecido caso da Hakani, são justificadas “por causas nobres, valores humanitários e princípios universais”, mas o que assistimos é uma “tentativa de re-edição, em pleno terceiro milênio, dessa farsa que tão somente pode engendrar consequências trágicas”. O argumento do antropólogo é que nos poucos casos registrados de infanticídio indígena “a decisão jamais era tomada com leveza ou leviandade, implicando em sofrimento e tensão, mas vindo a ocorrer sempre com respeito, discussão e responsabilidade”.
Canalizar a “questão indígena” através do sensacionalismo que pode causar o tema do infanticídio para a sociedade brasileira, a partir de um preconceito precário sobre o que deveria – para os brasileiros – representar o mundo indígena no Brasil atual é uma maneira de desviar temáticas fundamentais que sim são problemas declarados desde a perspectiva indígena, e de uma maneira muito mais transversal: suas terras invadidas, a violência e a discriminação que sofrem muitos povos em áreas de profundo contato interétnico (como nas regiões do Sul e do Nordeste do Brasil e nas áreas metropolitanas), o genocídio velado de dirigentes indígenas em contextos de conflito territorial (como em MS com os Guarani-Kaiowá), as altíssimas taxas de suicídio indígena, entre outros temas.
Revista Opera: Existe, hoje, intervenção estatal ou civil nas culturas indígenas, especificamente quanto ao infanticídio?
Raúl Ortiz: Existe sim. Por um lado, é importante compreender que a “intervenção” faz parte de uma lógica humana. O princípio das relações interétnicas está dada pela prática da mútua intervenção. Essa intervenção pode, ou não, trazer benefícios para os grupos relacionados, mas também, quando essas relações são muito assimétricas quanto ao poder de ação, acabam sendo imposições unilaterais, o que socava o equilíbrio da relação interétnica.
No caso consultado, por um lado, estão os órgãos estatais indigenistas, principalmente a FUNAI e a FUNASA, ambos com presença ativa nas comunidades através dos postos. A política indigenista brasileira tem sido clara em garantir que os costumes e tradições indígenas sejam preservados em seus reservas e TIs. No entanto, o espaço do órgão estatal é também um espaço particularizado, dependendo da visão subjetiva que possa ter o(s) funcionário(s) específico(s) em um contexto também específico.
A intervenção mais preocupante tem sido a de ativistas e organizações evangelistas, cuja principal missão tem sido converter os índios ao cristianismo. Cabe mencionar a campanha da ONG brasileira ATINI — Voz pela Vida, cujo trabalho tem apontado a “conscientizar” à sociedade brasileira sobre a aberração que significaria a prática do infanticídio na atualidade. Sem medo de enganar a população brasileira através de produções audiovisuais que mostravam falsas encenações de infanticídio indígena, esta organização conseguiu colocar em debate (muito mal enfocado) a temática da morte de crianças, vendo nisso a possibilidade de se introduzirem nas comunidades indígenas com o apoio moral do povo brasileiro. Hoje em dia, grupos em redes sociais como Facebook também fazem esse trabalho, veiculando ao mesmo tempo campanhas contra o infanticídio indígena e mensagens associados ao benefício da evangelização dos povos indígenas do Brasil.
Revista Opera: A lei protege os indígenas dessas intervenções?
Raúl Ortiz: Em teoria, sim. Na prática, é muito difícil de se controlar. O marco jurídico que protege as populações indígenas no Brasil é muito amplo. Um marco importante é a Constituição Federal de 1988, que indica: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
Igualmente, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, afirma-se que: “[o]s povos indígenas no exercício do seu direito a livre determinação, têm direito à autonomia ou ao auto-governo nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, assim como os meios para financiar suas funções autônomas.”
Também a Convenção No. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), afirma que os Estados devem respeitar as identidades sociais e culturais, costumes, tradições e instituições diversas.
Todos esses marcos jurídicos deveriam permitir que se garanta a livre prática dos costumes indígenas, sejam eles coincidentes, ou não, com a doxa política e moral do Estado. Se bem que muitos dos críticos do infanticídio escudam-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando em seu artigo 3 afirma que “Todo o homem tem direito à vida”, claramente há não apenas uma imposição categorial do que a própria definição de “vida” significa desde uma perspectiva etnocêntrica, mas também, como indica Pacheco de Oliveira (op cit.), toma-se essa via para dotar os grupos sociais mais favorecidos de um instrumento de afirmação de sua superioridade moral sobre os grupos excluídos ou diferentes.
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Texto e entrevista: Pedro Marin
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¹ OLIVEIRA, João Pacheco. Infanticídio entre as populações indígenas – Campanha humanitária ou renovação do preconceito? Comissão de Assunto Indígena (CAI) da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), conferir: http://www.abant.org.br/ . Acesso 13 de dezembro de 2014.
Fonte: Revista Ópera
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