dezembro 18, 2014

"Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo” – Judith Butler" (Territórios de Filosofia)

PICICA: "Não existe natureza alguma, apenas efeitos de natureza: desnaturalização ou naturalização…
Jacques Derrida, Donner le temps." 

Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo” – Judith Butler

Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”.
Judith Butler*

Por que nossos corpos deveriam terminar na pele?
Ou por que, além dos seres humanos, deveríamos considerar também como corpos,
quando muito, apenas outros seres também encapsulados pela pele?
Donna Haraway, A manifesto for cyborgs.

Se pensamos realmente no corpo como tal, não existe nenhum possível contorno do
corpo como tal. Existem pensamentos sobre a sistematicidade do corpo, existem codificações
que atribuem valores ao corpo.
O corpo como tal não pode ser pensado e eu, certamente, não posso acessá-lo.
Gayatri Chakravorty Spivak, “In a Word”entrevista com Ellen Rooney.

Não existe natureza alguma, apenas efeitos de natureza: desnaturalização ou
naturalização…

Jacques Derrida, Donner le temps.

Existe alguma forma de vincular a questão da materialidade [1] do corpo com a performatividade do gênero? [2] E como a categoria do “sexo” figura no interior de uma tal relação? Consideremos, primeiramente, que a diferença sexual é freqüentemente evocada como uma questão referente a diferenças materiais. A diferença sexual, entretanto, não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas. Além disso, afirmar que as diferenças sexuais são indissociáveis de uma demarcação discursiva não é a mesma coisa que afirmar que o discurso causa a diferença sexual. A categoria do “sexo” é, desde o início, normativa: ela é aquilo que Foucault chamou de “ideal regulatório”. Nesse sentido, pois, o “sexo” não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir — demarcar, fazer, circular, diferenciar — os corpos que ela controla. Assim, o “sexo” é um ideal regulatório cuja materialização é imposta: esta materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras, o “sexo” é um constructo ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. O fato de que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca totalmente completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei regulatória.

Mas como, então, a noção de performatividade de gênero se relaciona com essa concepção de materialização? No primeiro caso, a performatividade deve ser compreendida não como um “ato” singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como a prática reiterativa e citacional [3] pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia. O que, eu espero, se tornará claro no que vem a seguir é que as normas regulatórias do “sexo” trabalham de uma forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual.

Nesse sentido, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus movimentos, será plenamente material, mas a materialidade será repensada como o efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder. Não se pode, de forma alguma, conceber o gênero como um constructo cultural que é simplesmente imposto sobre a superfície da matéria – quer se entenda essa como o “corpo”, quer como um suposto sexo. Ao invés disso, uma vez que o próprio “sexo” seja compreendido em sua normatividade, a materialidade do corpo não pode ser pensada separadamente da materialização daquela norma regulatória. O “sexo” é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural.

O que está em jogo nessa reformulação da materialidade dos corpos é o seguinte: (1) a remodelação da matéria dos corpos como efeito de uma dinâmica do poder, de tal forma que a matéria dos corpos será indissociável das normas regulatórias que governam sua materialização e a significação daqueles efeitos materiais; (2) o entendimento da performatividade não como o ato pelo qual o sujeito traz à existência e aquilo que ela ou ele nomeia, mas, ao invés disso, como aquele poder reiterativo do discurso para produzir os fenômenos que ele regula e constrange; (3) a construção do sexo não mais como um dado corporal sobre o qual o construto do gênero é artificialmente imposto, mas como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos; (4) repensar o processo pelo qual uma norma corporal é assumida, apropriada, adotada: vê-la não como algo, estritamente falando, que se passa com um sujeito, mas, ao invés disso, que o sujeito, o “eu” falante, é formado em virtude de ter passado por esse processo de assumir um sexo; e (5) uma vinculação desse processo de “assumir” um sexo com a questão da identificação e com os meios discursivos pelos quais o imperativo heterossexual possibilita certas identificações sexuadas e impede ou nega outras identificações. Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas” e “inabitáveis” da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabitável” é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. Essa zona de inabitabilidade constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida identificação contra o qual — e em virtude do qual — o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à autonomia e à vida. Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, “dentro” do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio.

A formação de um sujeito exige uma identificação com o fantasma normativo do sexo: essa identificação ocorre através de um repúdio que produz um domínio de abjeção, um repúdio sem o qual o sujeito não pode emergir. Trata-se de um repúdio que cria a valência da “abjeção” — e seu status para o sujeito — como um espectro ameaçador. Além disso, a materialização de um dado sexo diz respeito, centralmente, à regulação de práticas identificatórias, de forma que a identificação com a abjeção do sexo será persistentemente negada. E, contudo, essa abjeção negada ameaçará denunciar as presunções auto-fundantes do sujeito sexuado, fundado como está aquele sujeito num repúdio cujas conseqüências não pode plenamente controlar. A tarefa consistirá em considerar essa ameaça e perturbação não como um questionamento permanente das normas sociais, condenado ao pathos do fracasso perpétuo, mas, ao invés disso, como um recurso crítico na luta para rearticular os próprios termos da legitimidade e da inteligibilidade simbólicas.

Por último, a mobilização das categorias do sexo no interior do discurso político será assombrada, sob certos aspectos, pelas próprias instabilidades que as categorias efetivamente produzem e integram. Embora os discursos políticos que mobilizam as categorias de identidade tendam a cultivar identificações a serviço de um objetivo político, pode ocorrer que a persistência da desidentificação seja igualmente crucial para a rearticulação da contestação democrática. De fato, pode ocorrer que tanto a política feminista quanto a política queer sejam mobilizadas precisamente através de práticas que enfatizem a desidentificação com aquelas normas regulatórias pelas quais a diferença sexual é materializada. Essas desidentificações coletivas podem facilitar uma recontextualização da questão de se saber quais corpos pesam e quais corpos ainda devem emergir como preocupações que possam ter um peso crítico.

Da construção à materialização

A relação entre cultura e natureza, pressuposta por alguns modelos do gênero como construção, supõe uma cultura ou uma agência do social que age sobre uma natureza, a qual é, ela própria, pressuposta como uma superfície passiva, fora do social, mas sua necessária contraparte. Uma questão que as feministas têm levantado é, pois, a de saber se o discurso que descreve a ação da construção como uma espécie de impressão ou imposição não seria taticamente masculinista, enquanto a figura da superfície passiva esperando aquele ato de penetração pelo qual o significado é atribuído não seria, taticamente, ou — talvez — bastante obviamente feminino. Estará o sexo para o gênero assim como o feminino está para o masculino?

Outras estudiosas feministas têm argumentado que o próprio conceito de natureza precisa ser repensado, pois o conceito de natureza tem uma história e a descrição da natureza como uma página em branco e sem vida, como aquilo que está, por assim dizer, quase sempre morto, é decididamente moderna, vinculada talvez à emergência dos meios tecnológicos de dominação. De fato, algumas pessoas têm argumentado que o repensar da natureza como um conjunto de inter-relações dinâmicas é apropriado tanto para objetivos feministas quanto para objetivos ecológicos (tendo produzido, para algumas pessoas, uma aliança com o trabalho de Gilles Deleuze que, se não fosse isso, seria bastante improvável). Esse repensar também coloca em questão o modelo de construção pelo qual o social atua unilateralmente sobre o natural e o investe com seus parâmetros e seus significados. De fato, embora a radical distinção entre sexo e gênero tenha sido crucial à versão beauvoiriana do feminismo, ela tem sido criticada, mais recentemente, por degradar o natural como aquilo que existe “antes” da inteligibilidade, como aquilo que precisa da marca do social, quando não da sua ferida, para significar, para ser conhecido, para adquirir valor. Essa forma de ver a questão deixa de compreender não apenas que a natureza tem uma história (e não meramente uma história social) mas, também, que o sexo está posicionado de forma ambígua em relação àquele conceito e à sua história. O conceito de “sexo” é, ele próprio, um terreno conflagrado, formado através de uma série de contestações em torno de qual deve ser o critério decisivo para distinguir entre os dois sexos; o conceito de sexo tem uma história que fica ocultada pela figura do lugar ou da superfície de inscrição. Descrito como um tal lugar ou superfície, entretanto, o natural é construído como aquilo que é também sem valor; além disso, ele assume seu valor ao mesmo tempo que assume seu caráter social, isto é, ao mesmo tempo que renuncia ao natural. De acordo com essa visão, pois, a construção social do natural pressupõe o cancelamento do natural pelo social. Na medida em que depende dessa construção, a distinção sexo/ gênero faz água ao longo de linhas paralelas: se o gênero é o significado social que o sexo assume no interior de uma dada cultura — só para argumentar, deixaremos que “social” e “cultural” permaneçam em uma desconfortável intercambialidade — então, o que sobra do “sexo”, se é que sobra alguma coisa, uma vez que ele tenha assumido o seu caráter social como gênero? O que está em questão aqui é o significado de “assunção”, onde ser “assumido” significa ser levado para uma esfera mais elevada como em “a Assunção da Virgem”.

Se o gênero consiste dos significados sociais que o sexo assume, então o sexo não adquire significados sociais como propriedades aditivas, mas, ao invés disso, é substituído pelos significados sociais que adota; o sexo é abandonado no curso dessa assunção e o gênero emerge não como um termo em uma permanente relação de oposição ao sexo, mas como um termo que absorve e desloca o “sexo”, a marca de sua substanciação plena no gênero ou aquilo que, do ponto de vista materialista, pode constituir uma plena dessubstanciação.

Quando a distinção sexo/gênero se junta a um construcionismo [5] lingüístico radical, o problema torna-se ainda pior, pois o “sexo” que é referido como sendo anterior ao gênero será ele mesmo uma postulação, uma construção, oferecida no interior da linguagem, como aquilo que é anterior à linguagem, anterior à construção. Mas esse sexo colocado como anterior à construção torna-se, em virtude de ser assim colocado, o efeito daquela mesma colocação: a construção da construção. Se o gênero é a construção social do sexo e se não existe nenhum acesso a esse “sexo” exceto por meio de sua construção, então parece não apenas que o sexo é absorvido pelo gênero, mas que o “sexo” torna-se algo como uma ficção, talvez uma fantasia, retroativamente instalado em um local pré-lingüístico ao qual não existe nenhum acesso direto.

Mas é certo afirmar que o “sexo” desaparece totalmente, que ele é uma ficção sobre e contra aquilo que é verdadeiro, que é uma fantasia sobre e contra o que é a realidade? Ou essas mesmas oposições precisam ser repensadas, de forma que se o “sexo” é uma ficção, trata-se de uma ficção no interior de cujas necessidades nós vivemos, sem a qual a própria vida seria impensável? E se o “sexo” é uma fantasia, trata-se, talvez, de um campo fantasmático que constitui o próprio terreno da inteligibilidade cultural? Um tal repensar das oposições convencionais implicaria um repensar do “construcionismo” em seu sentido usual?

A posição construcionista radical tende a produzir a premissa que tanto refuta quanto confirma seu próprio empreendimento. Se essa teoria não pode dar conta do sexo como local ou superfície sobre o qual ele age, então ela acaba por supor o sexo como não-construído, admitindo, assim, os limites do construcionismo lingüístico, inadvertidamente circunscrevendo aquilo que permanece não explicável no interior dos termos da construção. Se, por outro lado, o sexo é uma premissa fabricada, uma ficção, então o gênero não supõe o sexo sobre o qual ele age, mas, em vez disso, o conceito de gênero implica que um “sexo” pré-discursivo é uma falsidade, e o significado da construção torna-se o significado de um monismo lingüístico, pelo qual tudo é, apenas e sempre, linguagem. Então, o que resulta é um exasperado debate que muitas de nós estamos cansadas de ouvir: ou (1) o construcionismo é reduzido à posição de um hmonismo lingüístico, pelo qual se entende que a construção lingüística é gerativa e determinista (pode-se ouvir os críticos que fazem essa suposição dizerem: “se tudo é discurso, o que ocorre, então, com o corpo?”) ou (2) quando a construção é figurativamente reduzida a uma ação verbal que parece pressupor um sujeito, podemos ouvir os críticos que trabalham no interior dessa pressuposição dizerem: “se o gênero é construído, então quem faz a construção?”; embora, obviamente, (3) a formulação mais pertinente desta questão é a seguinte: “se o sujeito é construído, quem, então, constrói o sujeito?” No primeiro caso a construção toma o lugar de uma agência, à semelhança de Deus, que pode não apenas causar mas compor tudo que é seu objeto; trata-se da performatividade divina, trazendo à existência — exaustivamente constituindo — aquilo que nomeia, ou, ao invés disso, trata-se daquela espécie de referenciamento transitivo que nomeia e inaugura ao mesmo tempo. Para que algo seja construído, de acordo com essa visão de construção, é preciso que esse algo seja criado e determinado através desse processo.

No segundo e terceiro casos, as seduções da gramática parecem assumir o controle; o crítico pergunta: não deve haver um agente humano, um sujeito, se quiserem, que guie o curso da construção? Se a primeira versão do construcionismo supõe que a construção age de forma determinística, fazendo, da agência humana, uma caricatura, a segunda compreende o construcionismo como pressupondo um sujeito voluntarista que faz o seu gênero através de uma ação instrumental. A construção é entendida, nesse último caso, como uma espécie de artifício manipulável, uma concepção que não apenas pressupõe um sujeito, mas reabilita precisamente o sujeito voluntarista do humanismo, que o construcionismo, em certos momentos, buscou colocarem questão.

Se o gênero é uma construção, deve haver um “eu” ou um “nós” que executa ou desempenha essa construção? Como pode haver uma atividade no ato de construir sem que pressuponhamos um agente que precede e desempenha esta atividade? Como poderíamos explicar a motivação e a direção da construção sem esse sujeito? Além disso, eu sugeriria que é preciso uma certa desconfiança relativamente à gramática para conceber o tema sob uma luz diferente. Pois se o gênero é construído, ele não é necessariamente construído por um “eu” ou um “nós” que se coloca antes daquela construção em qualquer sentido espacial ou temporal de “antes”. De fato, não fica claro que possa haver um “eu” ou um “nós” que não tenha sido submetido, que não tenha sido sujeitado ao gênero, onde a generificação é construída, entre outras coisas, pelas relações diferenciadoras pelas quais os sujeitos falantes se transformam em ser. Submetido ao gênero, mas subjetivado pelo gênero, o “eu” não precede nem segue o processo dessa generificação, mas emerge apenas no interior das próprias relações de gênero e como a matriz dessas relações.

Isso nos faz retornar à segunda objeção, aquela que afirma que o construcionismo impede a agência, usurpa a agência do sujeito, e que ele próprio pressupõe o sujeito que ele questiona. Afirmar que o sujeito é ele próprio produzido em — e como — uma matriz generificada de relações não significa descartar o sujeito, mas apenas perguntar pelas condições de sua emergência e operação. A “atividade” dessa generificação não pode, estritamente falando, ser um ato ou uma expressão humana, uma apropriação intencional, e não é, certamente, uma questão de se vestir uma máscara; trata-se da matriz através da qual toda intenção torna-se inicialmente possível, sua condição cultural possibilitadora. Nesse sentido, a matriz das relações de gênero é anterior à emergência do “humano”. Consideremos a interpelação médica que, apesar da emergência recente das ecografias, transforma uma criança, de um ser “neutro” em um “ele ou em uma “ela”: nessa nomeação, a garota torna-se uma garota, ela é trazida para o domínio da linguagem e do parentesco através da interpelação do gênero. Mas esse tornar-se garota da garota não termina ali; pelo contrário, essa interpelação fundante é reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado. A nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e também a inculcação repetida de uma norma.

Estas atribuições ou interpelações alimentam aquele campo de discurso e poder que orquestra, delimita e sustenta aquilo que pode legitimamente ser descrito como “humano”. Nós vemos isto mais claramente nos exemplos daqueles seres abjetos que não parecem apropriadamente generificados; é sua própria humanidade que se torna questionada. Na verdade, a construção do gênero atua através de meios excludentes, de forma que o humano é não apenas produzido sobre e contra o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de apagamentos radicais, os quais, estritamente falando, recusam a possibilidade de articulação cultural. Portanto, não é suficiente afirmar que os sujeitos humanos são construídos, pois a construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais e o menos “humano”, o inumano, o humanamente impensável. Esses locais excluídos vêm a limitar o “humano” com seu exterior constitutivo, e a assombrar aquelas fronteiras com a persistente possibilidade de sua perturbação e rearticulação.

Paradoxalmente, a investigação sobre os tipos de apagamento e exclusões pelos quais a construção do sujeito atua não é mais construcionismo, mas também não é essencialismo. Pois existe um “exterior” relativamente àquilo que é construído pelo discurso, mas não se trata de um “exterior” absoluto, um “lá” ontológico que excede ou contraria as fronteiras do discurso; como um “exterior” constitutivo ele é aquilo que pode apenas ser pensado — quando pode — em relação àquele discurso, nas suas — e com as suas mais tênues fronteiras. O debate entre o construcionismo e o essencialismo deixa assim de perceber totalmente a desconstrução, pois o argumento nunca foi o de que “tudo é discursivamente construído”; esse argumento, quando e onde é levantado, pertence a um tipo de monismo, ou lingüisticismo discursivo, que recusa a força constitutiva da exclusão, do apagamento, de uma violenta inclusão, da abjeção e de seu retorno perturbador no interior dos próprios termos da legitimidade discursiva.

E dizer que existe uma matriz de relações de gênero que institui e sustenta o sujeito não significa afirmar que existe uma matriz singular que age de uma forma singular e determinista para produzir um sujeito como seu efeito. Significa instalar essa “matriz” na posição-de-sujeito, no interior de uma formulação gramatical que necessita, ela própria, ser repensada. De fato, a forma proposicional “o discurso constrói o sujeito” retém a posição-de-sujeito da formulação gramatical mesmo quando ela reverte o lugar do sujeito e do discurso. A construção devesignificar mais que essa simples inversão dos termos.

Existem tanto defensores quanto críticos da construção que constroem essa posição em termos estruturalistas. Eles freqüentemente afirmam que existem estruturas que constroem o sujeito, forças impessoais, tais como a Cultura ou o Discurso ou o Poder, onde esses termos ocupam o lugar gramatical do sujeito depois que o “humano” foi desalojado de seu lugar. Nessa visão, o lugar gramatical e metafísico do sujeito é retido, mesmo quando o candidato que ocupa aquele lugar parece ter sido submetido a uma rotação. Como resultado, a construção é ainda entendida como um processo unilateral, iniciado por um sujeito anterior, fortalecendo aquela suposição da metafísica do sujeito de que onde existe atividade, ali espreita, por detrás, um sujeito iniciador e intencional. De acordo com essa visão, o discurso ou a linguagem ou o social tornam-se personificados e, nessa personificação, a metafísica do sujeito é reconsolidada.

Nesta segunda visão, a construção não é uma atividade, mas um ato, um ato que acontece uma vez e cujos efeitos estão firmemente fixados. Assim, o construcionismo é reduzido ao determinismo e implica a evacuação ou o deslocamento da agência humana.

Essa visão está na base de uma certa leitura equivocada de Foucault, pela qual ele é criticado por “personificar” o poder: se o poder é equivocadamente construído como um sujeito gramatical e metafísico, e se aquele local metafísico no interior do discurso humanista tem sido o local privilegiado do humano, então o poder parece ter deslocado o humano como a origem da atividade. Mas se a visão de poder de Foucault é entendida como a perturbação e subversão dessa gramática e metafísica do sujeito, se o poder orquestra a formação e a sustentação dos sujeitos, então ele não pode ser responsabilizado em termos do “sujeito” que é seu efeito. E aqui não seria tampouco correto afirmar que o termo “construção” pertence ao lugar gramatical do sujeito, pois a construção não é nem o sujeito, nem o seu ato, mas um processo de reiteração pelo qual tanto os “sujeitos” quanto os “atos” vêm a aparecer totalmente. Não existe nenhum poder que atue, mas apenas uma atuação reiterada, que é poder em sua persistência e instabilidade.

O que eu proporia no lugar dessas concepções de construção é um retorno à noção de matéria, não como local ou superfície, mas como um processo de materialização que se estabiliza ao longo do tempo para produzir o efeito de fronteira, de fixidez e de superfície — daquilo que nós chamamos matéria. O fato de que a matéria é sempre materializada tem que ser pensado, na minha opinião, em relação aos efeitos produtivos e, na verdade, materializadores do poder regulatório, no sentido foucaultiano. Assim, a questão não é mais “como o gênero é constituído como — e através de — uma certa interpretação do sexo” (uma questão que deixa de teorizar a “matéria” do sexo), mas, ao invés disso, “através de que normas regulatórias é o próprio sexo materializado?” E por que é que tratar a materialidade do sexo como um dado pressupõe e consolida as condições normativas de sua própria emergência?

Crucialmente, pois, a construção não é nenhum marco singular, nem um processo causal iniciado por um sujeito, culminando em um conjunto de efeitos fixos. A construção não apenas ocorre no tempo, mas é, ela própria, um processo temporal que atua através da reiteração de normas; o sexo é produzido e, ao mesmo tempo, desestabilizado no curso dessa reiteração. Como um efeito sedimentado de uma prática reiterativa ou ritual, o sexo adquire seu efeito naturalizado e contudo, é também, em virtude dessa reiteração, que fossos e fissuras são abertos, fossos e fissuras que podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma. Esta instabilidade é a possibilidade desconstitutiva no próprio processo de repetição, o poder que desfaz os próprios efeitos pelos quais o “sexo” é estabilizado, a possibilidade de colocar a consolidação das normas do “sexo” em uma crise potencialmente produtiva.

Certas formulações da posição construcionista radical parecem produzir quase compulsivamente um momento de exasperação recorrente, pois parece que quando o construcionista é construído como um idealista lingüístico, ele refuta a realidade dos corpos, a “relevância da ciência, os alegados fatos do nascimento, da velhice, da doença e da morte. O crítico pode também suspeitar uma certa somatofobia no construcionista e querer garantias de que este teórico abstraído admitirá que existem, minimamente, partes, atividades, capacidades sexualmente diferenciadas, e diferenças hormonais e de cromossomos, que podem ser admitidas como existentes, sem referência à “construção”. Embora nesse momento eu queira oferecer uma garantia absoluta ao meu interlocutor, certa ansiedade ainda persiste. “Admitir” a inegabilidade do “sexo” ou sua “materialidade” significa sempre admitir alguma versão de “sexo”, alguma formação de “materialidade”. Não seria o discurso no — e através do — qual essa admissão ocorre (e, sim, é verdade que essa admissão invariavelmente ocorre na realidade), não seria este discurso, ele próprio, formativo do exato fenômeno que ele admite? Afirmar que o discurso é formativo não significa afirmar que ele origina, causa ou exaustivamente compõe aquilo que ele admite; em vez disso, significa afirmar que não existe nenhuma referência a um corpo puro que não seja, ao mesmo tempo, uma formação adicional daquele corpo. Nesse sentido, a capacidade lingüística para se referir a corpos sexuados não é negada, mas o próprio significado de “referencialidade” é alterado. Em termos filosóficos, a afirmação constatativa é, sempre, em algum grau, performativa.

Em relação ao sexo, pois, se admitimos a materialidade do sexo ou a materialidade do corpo, significa que essa própria admissão atua — performativamente — para materializar aquele sexo?

E, além disso, como é que a admissão reiterada daquele sexo — uma admissão que não ocorre na fala ou na escrita mas pode ser “assinalada” de um modo muito mais informe — constitui a sedimentação e a produção daquele efeito material?

O crítico moderado poderia admitir que alguma parte do “sexo” é construída, mas que alguma outra certamente não é, e então, naturalmente, ele se acha não apenas obrigado, de alguma forma, a traçar a linha entre o que é e o que não é construído, mas também a explicar como é que o “sexo” vem em partes cuja diferenciação não é um objeto de construção. Mas à medida em que essa linha de demarcação entre essas partes ostensivas são traçadas, o “nãoconstruído” torna-se limitado, uma vez mais, através de uma prática de significação, e a própria fronteira que deveria proteger alguma parte do sexo da mancha do construcionismo é agora definida pela própria construção do anti-construcionista. É a construção algo que ocorre a um objeto que já vem pronto, uma coisa pré-dada? Ela ocorre em graus? Ou estamos nos referindo, talvez, em ambos os lados do debate, a uma inevitável prática de significação, de demarcação e delimitação daquilo ao qual nós, então, nos “referimos”, de forma tal que nossas “referências” sempre pressupõem — e freqüentemente ocupam — essa delimitação prévia? De fato, “referirse” ingenuamente ou diretamente a um tal objeto extra-discursivo sempre exigirá a delimitação prévia do extra-discursivo. E, na medida em que o extra-discursivo é delimitado, ele é formado pelo próprio discurso do qual ele busca se libertar. Essa delimitação, que freqüentemente é efetuada como uma pressuposição pouco teorizada em qualquer ato de descrição, marca uma fronteira que inclui e exclui, que decide, por assim dizer, o que será e o que não será o conteúdo do objeto ao qual nós então nos referimos. Esse processo de distinção terá alguma força normativa e, de fato, alguma violência, pois ele pode construir apenas através do apagamento; ele pode limitar uma coisa apenas através da imposição de um certo critério, de um princípio de seletividade.

O que será e o que não será incluído no interior das fronteiras do “sexo” será estabelecido por uma operação mais ou menos tácita de exclusão. Se nós questionamos a fixidez da lei estruturalista que divide e limita os “sexos” em virtude de sua diferenciação diádica no interior da matriz heterossexual, será a partir das regiões exteriores daquela fronteira (não de uma “posição”, mas das possibilidades discursivas abertas pelo exterior constitutivo das posições hegemônicas), e isso constituirá o retorno perturbador do excluído a partir do interior da própria lógica do simbólico heterossexual.

A trajetória deste texto, [6] perseguirá, pois, a possibilidade desta perturbação, mas procederá de forma indireta, ao responder a duas questões inter-relacionadas que têm sido postas às descrições construcíonístas do gênero, não para defender o construcionismo em si, mas para questionar os apagamentos e as exclusões que constituem seus limites. Essas críticas pressupõem um conjunto de oposições metafísicas entre materialismo e idealismo, que estão embutidas na gramática recebida que, eu argumentarei, são criticamente redefinidas por uma reescrita pós-estruturalista da performatividade discursiva na medida em que ela atua na materialização do sexo.

Performatividade como citacionalidade

Quando, no jargão lacaniano, diz-se que alguém assume [7] um “sexo”, a gramática da frase cria a expectativa de que existe um “alguém”, que ao despertar, faz uma verificação e decide qual “sexo” assumirá hoje, uma gramática na qual a “assunção” é rapidamente assimilada à noção de uma escolha altamente reflexiva. Mas se essa “assunção” é imposta por um aparato regulatório de heterossexualidade, um aparato que reitera a si mesmo através da produção forçosa do “sexo”, então a “assunção” do sexo é constrangida desde o início. E se existe uma agência, ela deve ser encontrada, paradoxalmente, nas possibilidades abertas naquela — e por aquela — apropriação constrangida da lei regulatória, pela materialização daquela lei, pela apropriação e identificação compulsória com aquelas demandas normativas. A formação, a manufatura, o suporte, a circulação, a significação daquele corpo sexuado — tudo isso não será um conjunto de ações executadas em obediência à lei; pelo contrário, será um conjunto de ações mobilizadas pela lei, será a acumulação citacional e a dissimulação da lei produzindo efeitos materiais, será a necessidade vivida daqueles efeitos e a contestação vivida daquela necessidade.

A performatividade não é, assim, um “ato” singular, pois ela é sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas. E na medida em que ela adquire o status de ato no presente, ela oculta ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição. Além disso, esse ato não é primariamente teatral; de fato, sua aparente teatralidade é produzida na medida em que sua historicidade permanece dissimulada (e, inversamente, sua teatralidade ganha uma certa inevitabilidade, dada a impossibilidade de uma plena revelação de sua historicidade). Na teoria do ato da fala, um ato performativo é aquela prática discursiva que efetua ou produz aquilo que ela nno que De acordo com o relato bíblico do performativo, isto é, “que se faça a luz”, parece que é em virtude do poder do sujeito ou de sua vontade que um fenômeno é trazido, ao nomeá-lo, à existência. Numa reformulação crítica do performativo, Derrida deixa claro que esse poder não é a função de uma vontade originadora, mas é sempre derivativo:

Poderia um enunciado performativo ser bem-sucedido se sua formulação não repetisse em um enunciado “codificado” ou iterável ou, em outras palavras, se a fórmula que pronuncio para abrir uma sessão, lançar um barco ou efetuar um casamento não fosse identificável como conforme a um modelo iterável, se ela não fosse, pois, identificável de alguma forma, como uma “citação” ? (…) Nesta tipologia a categoria de intenção não desaparecerá, ela terá o seu lugar, mas a partir deste lugar, não poderá mais comandar todo o sistema e toda a cena da enunciação (Derrida, 1988, p. 18).

Em que medida o discurso adquire a autoridade para produzir o que nomeia através da citação das convenções da autoridade? E um sujeito aparece como autor de seus efeitos discursivos na medida em que a prática citacional pela qual ele ou ela é condicionado e mobilizado permanece não-marcada? Poderia ocorrer, na verdade, que a produção do sujeito como capaz de dar origem a seus efeitos é precisamente uma conseqüência dessa citacionalidade dissimulada? Além disso, se o sujeito vem a existir através de uma sujeição às normas do sexo, uma sujeição que exige uma assunção das normas do sexo, podemos ler aquela assunção como precisamente uma modalidade desse tipo de citacionalidade? Em outras palavras, a norma do sexo assume o controle na medida em que ela é citada como uma tal norma, mas ela também deriva seu poder através das citações que ela impõe. E como é que nós poderemos ler a citação das normas do sexo como o processo de nos aproximar dessas normas ou de nos “identificar” com elas?

Além disso, em que medida, na psicanálise, o corpo sexuado é assegurado através de práticas identificatórias governadas por esquemas regulatórios? A identificação é usada aqui não como atividade imitativa pela qual um ser consciente modela-se de acordo com outro; pelo contrário, a identificação é a paixão assimiladora pela qual um ego inicialmente emerge. Freud (1960, p. 16) argumenta que “o ego é, primeiramente e acima de tudo, um ego corporal”, que esse ego é, além disso, “uma projeção de uma superfície”: aquilo que nós poderíamos redescrever como uma morfologia imaginária. Além disso, eu argumentaria, essa morfologia imaginária não é uma operação pré-simbólica ou pré-social, mas é, ela própria, orquestrada através de esquemas regulatórios que produzem possibilidades morfológicas inteligíveis. Esses esquemas regulatórios não são estruturas intemporais, mas critérios historicamente revisáveis de inteligibilidade que produzem e submetem corpos que pesam.

Se a formulação de um ego corporal, de um sentimento de contorno estável, se a fixação da fronteira espacial é obtida através de práticas identificatórias e se a psicanálise descreve o funcionamento hegemônico daquelas identificações, podemos, então, ler a psicanálise como uma descrição da matriz heterossexual ao nível da morfogênese corporal? Aquilo que Lacan chama de “assunção” ou de “acesso” à lei simbólica pode ser lido como uma espécie de citação da lei e oferece, assim, uma oportunidade para se vincular a questão da materialização dos “sexos” à reformulação da performatividade como citacionalidade. Embora Lacan afirme que a lei simbólica tem um status semi-autônomo, anterior à assunção de posições sexuadas por um sujeito, essas posições normativas, isto é, os “sexos”, são conhecidos apenas através das aproximações que eles ocasionam. A força e a necessidade dessas normas (o “sexo” como uma função simbólica deve ser entendido como uma espécie de mandamento ou injunção) é, assim, funcionalmente dependente da aproximação e da citação da lei; a lei sem sua aproximação não é lei ou, ao invés disso, ela permanece uma lei governante apenas para aqueles que a afirmariam com base na fé religiosa. Se o “sexo” é assumido da mesma forma que uma lei é citada, então a “lei do sexo” é repetidamente fortalecida e idealizada como a lei apenas na medida em que ela é reiterada como a lei, produzida como a lei — o ideal anterior e não-aproximável — pelas próprias citações que ela diz comandar. Relendo o significado de “assunção” em Lacan como citação, a lei não é mais dada em uma forma fixa, anteriormente à sua citação, mas é produzida através da citação, como aquilo que precede e excede as aproximações mortais efetuadas pelo sujeito.

Dessa forma, a lei simbólica em Lacan pode estar sujeita ao mesmo tipo de crítica que Nietzsche formulou sobre a noção de Deus: o poder atribuído a esse poder prévio e ideal é derivado e desviado da própria atribuição. É esta compreensão sobre a ilegitimidade da lei simbólica do sexo que é dramatizada em certo grau no filme contemporâneo Paris esta em chamas-, o ideal que é espelhado depende do fato de que aquele próprio espelhamento seja sustentado como um ideal. Embora o simbólico pareça ser uma força que não possa ser contrariada sem psicose, o simbólico deve ser repensado como uma série de injunções normativizantes que asseguram as fronteiras do sexo através da ameaça da psicose, da abjeção e da impossibilidade psíquica de viver. E, além disso, que essa “lei” pode apenas permanecer uma lei na medida em que ela impõe as citações e as aproximações diferenciadas chamadas “femininas” e “masculinas”. A suposição de que a lei simbólica do sexo goza de uma ontologia separável, anterior e autônoma relativamente à sua assunção, é contrariada pela noção de que a citação da lei é precisamente o mecanismo de sua produção e articulação. O que é “forçado” pelo simbólico, pois, é uma citação de sua lei, a qual reitera e consolida o estratagema de sua própria força. O que significaria “citar” a lei para produzi-la diferentemente, “citar” a lei a fim de reiterar e cooptar seu poder, denunciar a matriz heterossexual e deslocar o efeito de sua necessidade?

O processo dessa sedimentação — ou daquilo que poderíamos chamar materialização — será uma espécie de citacionalidade, a aquisição do ser através da citação do poder, uma citação que estabelece uma cumplicidade originária com o poder na formação do “eu”.

Nesse sentido, a agência denotada pela performatividade do “sexo” será diretamente contrária a qualquer concepção de um sujeito voluntarista que exista separadamente das normas regulatórias às quais ela ou ele se opõe. O paradoxo da subjetivação assume reside precisamente no fato de que o sujeito que resistiria a essas normas é, ele próprio, possibilitado, quando não produzido, por essas normas. Embora esse constrangimento constitutivo não impeça a possibilidade da agência, ele localiza, sim, a agência como uma prática reiterativa ou rearticulatória imanente ao poder e não como uma relação de oposição externa ao poder.

Como resultado dessa reformulação da performatividade, (a) a performatividade de gênero não pode ser teorizada separadamente da prática forçosa e reiterativa dos regimes sexuais regulatórios; (b) a explicação da agência condicionada por aqueles próprios regimes de discurso/poder não pode ser confundida com o voluntarismo ou o individualismo, muito menos com o consumismo, e não pressupõe, de forma alguma, um sujeito que possa escolher; (c) o regime da heterossexualidade atua para circunscrever e contornar a “materialidade” do sexo e essa “materialidade” é formada e sustentada através de — e como — uma materialização de normas regulatórias que são, em parte, aquelas da hegemonia sexual; (d) a materialização de normas exige aqueles processos identificatórios pelos quais as normas são assumidas ou apropriadas, e essas identificações precedem e possibilitam a formação de um sujeito, mas não são, estritamente falando, executadas pelo sujeito; (e) os limites do construcionismo ficam expostos naquelas fronteiras da vida corporal onde corpos abjetos ou deslegitimados deixam de contar como “corpos”. Se a materialidade do sexo é demarcada no discurso, então esta demarcação produzirá um domínio do “sexo” excluído e deslegitimado. Portanto, será igualmente importante pensar sobre como e para que finalidade os corpos são construídos, assim como será importante pensar sobre como e para que finalidade os corpos não são construídos, e, além disso, perguntar, depois, como os corpos que fracassam em se materializar fornecem o “exterior” — quando não o apoio — necessário, para os corpos que, ao materializar a norma, qualificam-se como corpos que pesam.

Como, pois, podemos pensar a matéria dos corpos como uma espécie de materialização governada por normas regulatórias — normas que têm a finalidade de assegurar o funcionamento da hegemonia heterossexual na formação daquilo que pode ser legitimamente considerado como um corpo viável? Como essa materialização da norma na formação corporal produz um domínio de corpos abjetos, um campo de deformação, o qual, ao deixar de ser considerado como plenamente humano, reforça aquelas normas regulatórias? Que questionamento esse domínio excluído e abjeto produz relativamente à hegemonia simbólica? Esse questionamento poderia forçar uma rearticulação radical daquilo que pode ser legitimamente considerado como corpos que pesam, como formas de viver que contam como “vida”, como vidas que vale a pena proteger, como vidas que vale a pena salvar, como vidas que vale a pena prantear?
Notas

  1. Este texto é a tradução do capítulo introdutório do livro de Judith Butler, Bodies that matter, publicado por Routledge, Nova York e Londres, 1993. Nesta tradução suprimiram-se as notas e a seção “Trajectory of the text” que apresenta os capítulos subseqüentes do livro (N. do T.)
  1. Traduzi o título deste ensaio, dado a partir do título do livro de onde foi extraído, Bodies that matter, como “Corpos que pesam” para conservar parte do jogo que a autora faz com a palavra “matter”. Em inglês o verbo “to matter” significa “importar”, “ter importância” e o substantivo “matter” significa, entre outras coisas, “matéria”. “Bodies that matter”, portanto, pode ser traduzido, literalmente, como “Corpos que importam”, “Corpos que têm importância”, mas esta tradução deixa fora, evidentemente, o jogo com “matéria”, palavra importante para a argumentação da autora. O “pesam” de “Corpos que pesam” apenas obli-quamente evoca a “matéria” enfatizada pela autora, ao evocar uma propriedade da matéria, o “peso”. Conservei a mesma tradução nas passagens do texto em que a autora volta a utilizar o mesmo jogo de palavras. (N. do T.)
  1. “Citacional” e “citacionalidade” (em inglês, “citational” e “citationality”), como a autora deixará claro, são conceitos utilizados por Jacques Derrida. Eles aparecem exatamente nessa forma em pelo menos uma das traduções de Derrida: “Assinatura, acontecimento, contexto”, in Derrida, s. d. (por exemplo, p.428).
  1. O termo “queer” tem sido usado, na literatura anglo-saxônica, para englobar os termos “gay” e “lésbica”. Historicamente, “queer” tem sido empregado para se referir, de forma depreciativa, às pessoas homossexuais. Sua utilização pelos ativistas dos movimentos homossexuais constitui uma tentativa de recuperação da palavra, revertendo sua conotação negativa original. Essa utilização renovada da palavra “queer” joga também com um de seus outros significados, o de “estranho”. Os movimentos homossexuais falam, assim de uma política queer ou de uma teoria queer. (N.do T.)
  1. No original, “constructivism”. Traduzi por “construcionismo” para evitar associações com o construtivismo psicológico de inspiração piagetiana. Pela mesma razão, traduzi “constructivisf por “construcionista”. (N. do T.)
     6. A autora se refere ao conjunto do livro, Bodies that matter, de    onde este ensaio foi extraído. (N. doT.)
  1. Como esclarece a autora no capítulo III, nota 4, p.266 do livro de onde foi extraído este ensaio, Bodies that matter, o termo assunção refere-se à utilização que dele faz Lacan na frase seguinte, em Escritos: “Existe aí uma antinomia interna na assunção de seu sexo pelo homem (mench) por que deve ele assumir-lhe os atributos apenas através de uma ameaça, ou até mesmo sob o aspecto de uma privação?” (Lacan, 1998, p.692). (N. do T.)
  1. A tradução desta citação de Derrida foi tomada de Derrida, s. d., p.428. A primeira frase da citação figura, na tradução portuguesa, como uma afirmação e não como uma interrogação, tal como está na tradução inglesa utilizada pela autora. Na impossibilidade de consultar o original francês optei por manter a interrogação suposta pela autora em sua argumentação. (N. do T.)

Referências Bibliográficas

DERRIDA, Jacques. “Signature, event, context”. In Gerald Graff Ced.). Limited, inc. Evanston: Northwestern University Press, 1988.

DERRIDA, Jacques. As margens da filosofia. Porto: Rés, s. d. FREUD, Sigmund. The ego and the id. Nova York: Norton, 1960.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

*O escrito foi publicado originalmente com o título “Introduction”, no livro: Judith Butler. Bodies that matter. On the discursive limites of ‘sex’. Nova York/Londres: Routledge, 1993: pp.1-16. Copyright © 1993- From Bodies that matter: on the discursive limits of sex’ by Judith Butler. A presente tradução foi realizada por Tomaz Tadeu da Silva e publicada em: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

**A imagem-roubada é da feitoria de Joel-Peter Witkin, nomeada de “Portrait of Isabella Brant” e foi publicada no ano de 1939.

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