PICICA: "Não existe natureza alguma, apenas efeitos de natureza: desnaturalização ou naturalização…
Jacques Derrida, Donner le temps."
Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo” – Judith Butler
Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”.
Judith Butler*
Por que nossos corpos deveriam terminar na pele?
Ou por que, além dos seres humanos, deveríamos considerar também como corpos,
quando muito, apenas outros seres também encapsulados pela pele?
Donna Haraway, A manifesto for cyborgs.
Se pensamos realmente no corpo como tal, não existe nenhum possível contorno do
corpo como tal. Existem pensamentos sobre a sistematicidade do corpo, existem codificações
que atribuem valores ao corpo.
O corpo como tal não pode ser pensado e eu, certamente, não posso acessá-lo.
Gayatri Chakravorty Spivak, “In a Word”entrevista com Ellen Rooney.
Não existe natureza alguma, apenas efeitos de natureza: desnaturalização ou
naturalização…
Jacques Derrida, Donner le temps.
Existe alguma forma de vincular a questão
da materialidade [1] do corpo com a performatividade do gênero? [2] E
como a categoria do “sexo” figura no interior de uma tal relação?
Consideremos, primeiramente, que a diferença sexual é freqüentemente
evocada como uma questão referente a diferenças materiais. A diferença
sexual, entretanto, não é, nunca, simplesmente, uma função de diferenças
materiais que não sejam, de alguma forma, simultaneamente marcadas e
formadas por práticas discursivas. Além disso, afirmar que as diferenças
sexuais são indissociáveis de uma demarcação discursiva não é a mesma
coisa que afirmar que o discurso causa a diferença sexual. A categoria
do “sexo” é, desde o início, normativa: ela é aquilo que Foucault chamou
de “ideal regulatório”. Nesse sentido, pois, o “sexo” não apenas
funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória que
produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória
manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir —
demarcar, fazer, circular, diferenciar — os corpos que ela controla.
Assim, o “sexo” é um ideal regulatório cuja materialização é imposta:
esta materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através de certas
práticas altamente reguladas. Em outras palavras, o “sexo” é um
constructo ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele
não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um
processo pelo qual as normas regulatórias materializam o “sexo” e
produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas
normas. O fato de que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a
materialização não é nunca totalmente completa, que os corpos não se
conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua
materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as
possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que
marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar
contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a
força hegemônica daquela mesma lei regulatória.
Mas como, então, a noção de
performatividade de gênero se relaciona com essa concepção de
materialização? No primeiro caso, a performatividade deve ser
compreendida não como um “ato” singular ou deliberado, mas, ao invés
disso, como a prática reiterativa e citacional [3] pela qual o discurso
produz os efeitos que ele nomeia. O que, eu espero, se tornará claro no
que vem a seguir é que as normas regulatórias do “sexo” trabalham de uma
forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais
especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a
diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual.
Nesse sentido, o que constitui a fixidez
do corpo, seus contornos, seus movimentos, será plenamente material, mas
a materialidade será repensada como o efeito do poder, como o efeito
mais produtivo do poder. Não se pode, de forma alguma, conceber o gênero
como um constructo cultural que é simplesmente imposto sobre a
superfície da matéria – quer se entenda essa como o “corpo”, quer como
um suposto sexo. Ao invés disso, uma vez que o próprio “sexo” seja
compreendido em sua normatividade, a materialidade do corpo não pode ser
pensada separadamente da materialização daquela norma regulatória. O
“sexo” é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição
estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o
“alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo
para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural.
O que está em jogo nessa reformulação da
materialidade dos corpos é o seguinte: (1) a remodelação da matéria dos
corpos como efeito de uma dinâmica do poder, de tal forma que a matéria
dos corpos será indissociável das normas regulatórias que governam sua
materialização e a significação daqueles efeitos materiais; (2) o
entendimento da performatividade não como o ato pelo qual o sujeito traz
à existência e aquilo que ela ou ele nomeia, mas, ao invés disso, como
aquele poder reiterativo do discurso para produzir os fenômenos que ele
regula e constrange; (3) a construção do sexo não mais como um dado
corporal sobre o qual o construto do gênero é artificialmente imposto,
mas como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos; (4)
repensar o processo pelo qual uma norma corporal é assumida,
apropriada, adotada: vê-la não como algo, estritamente falando, que se
passa com um sujeito, mas, ao invés disso, que o sujeito, o “eu”
falante, é formado em virtude de ter passado por esse processo de
assumir um sexo; e (5) uma vinculação desse processo de “assumir” um
sexo com a questão da identificação e com os meios discursivos pelos
quais o imperativo heterossexual possibilita certas identificações
sexuadas e impede ou nega outras identificações. Esta matriz excludente
pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de
um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas
que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito. O
abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas” e
“inabitáveis” da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas
por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o
signo do “inabitável” é necessário para que o domínio do sujeito seja
circunscrito. Essa zona de inabitabilidade constitui o limite definidor
do domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida
identificação contra o qual — e em virtude do qual — o domínio do
sujeito circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à autonomia
e à vida. Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da força
da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo
relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, “dentro”
do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio.
A formação de um sujeito exige uma
identificação com o fantasma normativo do sexo: essa identificação
ocorre através de um repúdio que produz um domínio de abjeção, um
repúdio sem o qual o sujeito não pode emergir. Trata-se de um repúdio
que cria a valência da “abjeção” — e seu status para o sujeito — como um
espectro ameaçador. Além disso, a materialização de um dado sexo diz
respeito, centralmente, à regulação de práticas identificatórias, de
forma que a identificação com a abjeção do sexo será persistentemente
negada. E, contudo, essa abjeção negada ameaçará denunciar as presunções
auto-fundantes do sujeito sexuado, fundado como está aquele sujeito num
repúdio cujas conseqüências não pode plenamente controlar. A tarefa
consistirá em considerar essa ameaça e perturbação não como um
questionamento permanente das normas sociais, condenado ao pathos do
fracasso perpétuo, mas, ao invés disso, como um recurso crítico na luta
para rearticular os próprios termos da legitimidade e da
inteligibilidade simbólicas.
Por último, a mobilização das categorias
do sexo no interior do discurso político será assombrada, sob certos
aspectos, pelas próprias instabilidades que as categorias efetivamente
produzem e integram. Embora os discursos políticos que mobilizam as
categorias de identidade tendam a cultivar identificações a serviço de
um objetivo político, pode ocorrer que a persistência da
desidentificação seja igualmente crucial para a rearticulação da
contestação democrática. De fato, pode ocorrer que tanto a política
feminista quanto a política queer sejam mobilizadas precisamente através
de práticas que enfatizem a desidentificação com aquelas normas
regulatórias pelas quais a diferença sexual é materializada. Essas
desidentificações coletivas podem facilitar uma recontextualização da
questão de se saber quais corpos pesam e quais corpos ainda devem
emergir como preocupações que possam ter um peso crítico.
Da construção à materialização
A relação entre cultura e natureza,
pressuposta por alguns modelos do gênero como construção, supõe uma
cultura ou uma agência do social que age sobre uma natureza, a qual é,
ela própria, pressuposta como uma superfície passiva, fora do social,
mas sua necessária contraparte. Uma questão que as feministas têm
levantado é, pois, a de saber se o discurso que descreve a ação da
construção como uma espécie de impressão ou imposição não seria
taticamente masculinista, enquanto a figura da superfície passiva
esperando aquele ato de penetração pelo qual o significado é atribuído
não seria, taticamente, ou — talvez — bastante obviamente feminino.
Estará o sexo para o gênero assim como o feminino está para o masculino?
Outras estudiosas feministas têm
argumentado que o próprio conceito de natureza precisa ser repensado,
pois o conceito de natureza tem uma história e a descrição da natureza
como uma página em branco e sem vida, como aquilo que está, por assim
dizer, quase sempre morto, é decididamente moderna, vinculada talvez à
emergência dos meios tecnológicos de dominação. De fato, algumas pessoas
têm argumentado que o repensar da natureza como um conjunto de
inter-relações dinâmicas é apropriado tanto para objetivos feministas
quanto para objetivos ecológicos (tendo produzido, para algumas pessoas,
uma aliança com o trabalho de Gilles Deleuze que, se não fosse isso,
seria bastante improvável). Esse repensar também coloca em questão o
modelo de construção pelo qual o social atua unilateralmente sobre o
natural e o investe com seus parâmetros e seus significados. De fato,
embora a radical distinção entre sexo e gênero tenha sido crucial à
versão beauvoiriana do feminismo, ela tem sido criticada, mais
recentemente, por degradar o natural como aquilo que existe “antes” da
inteligibilidade, como aquilo que precisa da marca do social, quando não
da sua ferida, para significar, para ser conhecido, para adquirir
valor. Essa forma de ver a questão deixa de compreender não apenas que a
natureza tem uma história (e não meramente uma história social) mas,
também, que o sexo está posicionado de forma ambígua em relação àquele
conceito e à sua história. O conceito de “sexo” é, ele próprio, um
terreno conflagrado, formado através de uma série de contestações em
torno de qual deve ser o critério decisivo para distinguir entre os dois
sexos; o conceito de sexo tem uma história que fica ocultada pela
figura do lugar ou da superfície de inscrição. Descrito como um tal
lugar ou superfície, entretanto, o natural é construído como aquilo que é
também sem valor; além disso, ele assume seu valor ao mesmo tempo que
assume seu caráter social, isto é, ao mesmo tempo que renuncia ao
natural. De acordo com essa visão, pois, a construção social do natural
pressupõe o cancelamento do natural pelo social. Na medida em que
depende dessa construção, a distinção sexo/ gênero faz água ao longo de
linhas paralelas: se o gênero é o significado social que o sexo assume
no interior de uma dada cultura — só para argumentar, deixaremos que
“social” e “cultural” permaneçam em uma desconfortável intercambialidade
— então, o que sobra do “sexo”, se é que sobra alguma coisa, uma vez
que ele tenha assumido o seu caráter social como gênero? O que está em
questão aqui é o significado de “assunção”, onde ser “assumido”
significa ser levado para uma esfera mais elevada como em “a Assunção da
Virgem”.
Se o gênero consiste dos significados
sociais que o sexo assume, então o sexo não adquire significados sociais
como propriedades aditivas, mas, ao invés disso, é substituído pelos
significados sociais que adota; o sexo é abandonado no curso dessa
assunção e o gênero emerge não como um termo em uma permanente relação
de oposição ao sexo, mas como um termo que absorve e desloca o “sexo”, a
marca de sua substanciação plena no gênero ou aquilo que, do ponto de
vista materialista, pode constituir uma plena dessubstanciação.
Quando a distinção sexo/gênero se junta a
um construcionismo [5] lingüístico radical, o problema torna-se ainda
pior, pois o “sexo” que é referido como sendo anterior ao gênero será
ele mesmo uma postulação, uma construção, oferecida no interior da
linguagem, como aquilo que é anterior à linguagem, anterior à
construção. Mas esse sexo colocado como anterior à construção torna-se,
em virtude de ser assim colocado, o efeito daquela mesma colocação: a
construção da construção. Se o gênero é a construção social do sexo e se
não existe nenhum acesso a esse “sexo” exceto por meio de sua
construção, então parece não apenas que o sexo é absorvido pelo gênero,
mas que o “sexo” torna-se algo como uma ficção, talvez uma fantasia,
retroativamente instalado em um local pré-lingüístico ao qual não existe
nenhum acesso direto.
Mas é certo afirmar que o “sexo”
desaparece totalmente, que ele é uma ficção sobre e contra aquilo que é
verdadeiro, que é uma fantasia sobre e contra o que é a realidade? Ou
essas mesmas oposições precisam ser repensadas, de forma que se o “sexo”
é uma ficção, trata-se de uma ficção no interior de cujas necessidades
nós vivemos, sem a qual a própria vida seria impensável? E se o “sexo” é
uma fantasia, trata-se, talvez, de um campo fantasmático que constitui o
próprio terreno da inteligibilidade cultural? Um tal repensar das
oposições convencionais implicaria um repensar do “construcionismo” em
seu sentido usual?
A posição construcionista radical tende a
produzir a premissa que tanto refuta quanto confirma seu próprio
empreendimento. Se essa teoria não pode dar conta do sexo como local ou
superfície sobre o qual ele age, então ela acaba por supor o sexo como
não-construído, admitindo, assim, os limites do construcionismo
lingüístico, inadvertidamente circunscrevendo aquilo que permanece não
explicável no interior dos termos da construção. Se, por outro lado, o
sexo é uma premissa fabricada, uma ficção, então o gênero não supõe o
sexo sobre o qual ele age, mas, em vez disso, o conceito de gênero
implica que um “sexo” pré-discursivo é uma falsidade, e o significado da
construção torna-se o significado de um monismo lingüístico, pelo qual
tudo é, apenas e sempre, linguagem. Então, o que resulta é um exasperado
debate que muitas de nós estamos cansadas de ouvir: ou (1) o
construcionismo é reduzido à posição de um hmonismo lingüístico, pelo
qual se entende que a construção lingüística é gerativa e determinista
(pode-se ouvir os críticos que fazem essa suposição dizerem: “se tudo é
discurso, o que ocorre, então, com o corpo?”) ou (2) quando a construção
é figurativamente reduzida a uma ação verbal que parece pressupor um
sujeito, podemos ouvir os críticos que trabalham no interior dessa
pressuposição dizerem: “se o gênero é construído, então quem faz a
construção?”; embora, obviamente, (3) a formulação mais pertinente desta
questão é a seguinte: “se o sujeito é construído, quem, então, constrói
o sujeito?” No primeiro caso a construção toma o lugar de uma agência, à
semelhança de Deus, que pode não apenas causar mas compor tudo que é
seu objeto; trata-se da performatividade divina, trazendo à existência —
exaustivamente constituindo — aquilo que nomeia, ou, ao invés disso,
trata-se daquela espécie de referenciamento transitivo que nomeia e
inaugura ao mesmo tempo. Para que algo seja construído, de acordo com
essa visão de construção, é preciso que esse algo seja criado e
determinado através desse processo.
No segundo e terceiro casos, as seduções
da gramática parecem assumir o controle; o crítico pergunta: não deve
haver um agente humano, um sujeito, se quiserem, que guie o curso da
construção? Se a primeira versão do construcionismo supõe que a
construção age de forma determinística, fazendo, da agência humana, uma
caricatura, a segunda compreende o construcionismo como pressupondo um
sujeito voluntarista que faz o seu gênero através de uma ação
instrumental. A construção é entendida, nesse último caso, como uma
espécie de artifício manipulável, uma concepção que não apenas pressupõe
um sujeito, mas reabilita precisamente o sujeito voluntarista do
humanismo, que o construcionismo, em certos momentos, buscou colocarem
questão.
Se o gênero é uma construção, deve haver
um “eu” ou um “nós” que executa ou desempenha essa construção? Como pode
haver uma atividade no ato de construir sem que pressuponhamos um
agente que precede e desempenha esta atividade? Como poderíamos explicar
a motivação e a direção da construção sem esse sujeito? Além disso, eu
sugeriria que é preciso uma certa desconfiança relativamente à gramática
para conceber o tema sob uma luz diferente. Pois se o gênero é
construído, ele não é necessariamente construído por um “eu” ou um “nós”
que se coloca antes daquela construção em qualquer sentido espacial ou
temporal de “antes”. De fato, não fica claro que possa haver um “eu” ou
um “nós” que não tenha sido submetido, que não tenha sido sujeitado ao
gênero, onde a generificação é construída, entre outras coisas, pelas
relações diferenciadoras pelas quais os sujeitos falantes se transformam
em ser. Submetido ao gênero, mas subjetivado pelo gênero, o “eu” não
precede nem segue o processo dessa generificação, mas emerge apenas no
interior das próprias relações de gênero e como a matriz dessas
relações.
Isso nos faz retornar à segunda objeção,
aquela que afirma que o construcionismo impede a agência, usurpa a
agência do sujeito, e que ele próprio pressupõe o sujeito que ele
questiona. Afirmar que o sujeito é ele próprio produzido em — e como —
uma matriz generificada de relações não significa descartar o sujeito,
mas apenas perguntar pelas condições de sua emergência e operação. A
“atividade” dessa generificação não pode, estritamente falando, ser um
ato ou uma expressão humana, uma apropriação intencional, e não é,
certamente, uma questão de se vestir uma máscara; trata-se da matriz
através da qual toda intenção torna-se inicialmente possível, sua
condição cultural possibilitadora. Nesse sentido, a matriz das relações
de gênero é anterior à emergência do “humano”. Consideremos a
interpelação médica que, apesar da emergência recente das ecografias,
transforma uma criança, de um ser “neutro” em um “ele ou em uma “ela”:
nessa nomeação, a garota torna-se uma garota, ela é trazida para o
domínio da linguagem e do parentesco através da interpelação do gênero.
Mas esse tornar-se garota da garota não termina ali; pelo contrário,
essa interpelação fundante é reiterada por várias autoridades, e ao
longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse
efeito naturalizado. A nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de
uma fronteira e também a inculcação repetida de uma norma.
Estas atribuições ou interpelações
alimentam aquele campo de discurso e poder que orquestra, delimita e
sustenta aquilo que pode legitimamente ser descrito como “humano”. Nós
vemos isto mais claramente nos exemplos daqueles seres abjetos que não
parecem apropriadamente generificados; é sua própria humanidade que se
torna questionada. Na verdade, a construção do gênero atua através de
meios excludentes, de forma que o humano é não apenas produzido sobre e
contra o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de
apagamentos radicais, os quais, estritamente falando, recusam a
possibilidade de articulação cultural. Portanto, não é suficiente
afirmar que os sujeitos humanos são construídos, pois a construção do
humano é uma operação diferencial que produz o mais e o menos “humano”, o
inumano, o humanamente impensável. Esses locais excluídos vêm a limitar
o “humano” com seu exterior constitutivo, e a assombrar aquelas
fronteiras com a persistente possibilidade de sua perturbação e
rearticulação.
Paradoxalmente, a investigação sobre os
tipos de apagamento e exclusões pelos quais a construção do sujeito atua
não é mais construcionismo, mas também não é essencialismo. Pois existe
um “exterior” relativamente àquilo que é construído pelo discurso, mas
não se trata de um “exterior” absoluto, um “lá” ontológico que excede ou
contraria as fronteiras do discurso; como um “exterior” constitutivo
ele é aquilo que pode apenas ser pensado — quando pode — em relação
àquele discurso, nas suas — e com as suas mais tênues fronteiras. O
debate entre o construcionismo e o essencialismo deixa assim de perceber
totalmente a desconstrução, pois o argumento nunca foi o de que “tudo é
discursivamente construído”; esse argumento, quando e onde é levantado,
pertence a um tipo de monismo, ou lingüisticismo discursivo, que recusa
a força constitutiva da exclusão, do apagamento, de uma violenta
inclusão, da abjeção e de seu retorno perturbador no interior dos
próprios termos da legitimidade discursiva.
E dizer que existe uma matriz de relações
de gênero que institui e sustenta o sujeito não significa afirmar que
existe uma matriz singular que age de uma forma singular e determinista
para produzir um sujeito como seu efeito. Significa instalar essa
“matriz” na posição-de-sujeito, no interior de uma formulação gramatical
que necessita, ela própria, ser repensada. De fato, a forma
proposicional “o discurso constrói o sujeito” retém a posição-de-sujeito
da formulação gramatical mesmo quando ela reverte o lugar do sujeito e
do discurso. A construção devesignificar mais que essa simples inversão
dos termos.
Existem tanto defensores quanto críticos
da construção que constroem essa posição em termos estruturalistas. Eles
freqüentemente afirmam que existem estruturas que constroem o sujeito,
forças impessoais, tais como a Cultura ou o Discurso ou o Poder, onde
esses termos ocupam o lugar gramatical do sujeito depois que o “humano”
foi desalojado de seu lugar. Nessa visão, o lugar gramatical e
metafísico do sujeito é retido, mesmo quando o candidato que ocupa
aquele lugar parece ter sido submetido a uma rotação. Como resultado, a
construção é ainda entendida como um processo unilateral, iniciado por
um sujeito anterior, fortalecendo aquela suposição da metafísica do
sujeito de que onde existe atividade, ali espreita, por detrás, um
sujeito iniciador e intencional. De acordo com essa visão, o discurso ou
a linguagem ou o social tornam-se personificados e, nessa
personificação, a metafísica do sujeito é reconsolidada.
Nesta segunda visão, a construção não é
uma atividade, mas um ato, um ato que acontece uma vez e cujos efeitos
estão firmemente fixados. Assim, o construcionismo é reduzido ao
determinismo e implica a evacuação ou o deslocamento da agência humana.
Essa visão está na base de uma certa
leitura equivocada de Foucault, pela qual ele é criticado por
“personificar” o poder: se o poder é equivocadamente construído como um
sujeito gramatical e metafísico, e se aquele local metafísico no
interior do discurso humanista tem sido o local privilegiado do humano,
então o poder parece ter deslocado o humano como a origem da atividade.
Mas se a visão de poder de Foucault é entendida como a perturbação e
subversão dessa gramática e metafísica do sujeito, se o poder orquestra a
formação e a sustentação dos sujeitos, então ele não pode ser
responsabilizado em termos do “sujeito” que é seu efeito. E aqui não
seria tampouco correto afirmar que o termo “construção” pertence ao
lugar gramatical do sujeito, pois a construção não é nem o sujeito, nem o
seu ato, mas um processo de reiteração pelo qual tanto os “sujeitos”
quanto os “atos” vêm a aparecer totalmente. Não existe nenhum poder que
atue, mas apenas uma atuação reiterada, que é poder em sua persistência e
instabilidade.
O que eu proporia no lugar dessas
concepções de construção é um retorno à noção de matéria, não como local
ou superfície, mas como um processo de materialização que se estabiliza
ao longo do tempo para produzir o efeito de fronteira, de fixidez e de
superfície — daquilo que nós chamamos matéria. O fato de que a matéria é
sempre materializada tem que ser pensado, na minha opinião, em relação
aos efeitos produtivos e, na verdade, materializadores do poder
regulatório, no sentido foucaultiano. Assim, a questão não é mais “como o
gênero é constituído como — e através de — uma certa interpretação do
sexo” (uma questão que deixa de teorizar a “matéria” do sexo), mas, ao
invés disso, “através de que normas regulatórias é o próprio sexo
materializado?” E por que é que tratar a materialidade do sexo como um
dado pressupõe e consolida as condições normativas de sua própria
emergência?
Crucialmente, pois, a construção não é
nenhum marco singular, nem um processo causal iniciado por um sujeito,
culminando em um conjunto de efeitos fixos. A construção não apenas
ocorre no tempo, mas é, ela própria, um processo temporal que atua
através da reiteração de normas; o sexo é produzido e, ao mesmo tempo,
desestabilizado no curso dessa reiteração. Como um efeito sedimentado de
uma prática reiterativa ou ritual, o sexo adquire seu efeito
naturalizado e contudo, é também, em virtude dessa reiteração, que
fossos e fissuras são abertos, fossos e fissuras que podem ser vistos
como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que
escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode ser totalmente
definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma. Esta
instabilidade é a possibilidade desconstitutiva no próprio processo de
repetição, o poder que desfaz os próprios efeitos pelos quais o “sexo” é
estabilizado, a possibilidade de colocar a consolidação das normas do
“sexo” em uma crise potencialmente produtiva.
Certas formulações da posição
construcionista radical parecem produzir quase compulsivamente um
momento de exasperação recorrente, pois parece que quando o
construcionista é construído como um idealista lingüístico, ele refuta a
realidade dos corpos, a “relevância da ciência, os alegados fatos do
nascimento, da velhice, da doença e da morte. O crítico pode também
suspeitar uma certa somatofobia no construcionista e querer garantias de
que este teórico abstraído admitirá que existem, minimamente, partes,
atividades, capacidades sexualmente diferenciadas, e diferenças
hormonais e de cromossomos, que podem ser admitidas como existentes, sem
referência à “construção”. Embora nesse momento eu queira oferecer uma
garantia absoluta ao meu interlocutor, certa ansiedade ainda persiste.
“Admitir” a inegabilidade do “sexo” ou sua “materialidade” significa
sempre admitir alguma versão de “sexo”, alguma formação de
“materialidade”. Não seria o discurso no — e através do — qual essa
admissão ocorre (e, sim, é verdade que essa admissão invariavelmente
ocorre na realidade), não seria este discurso, ele próprio, formativo do
exato fenômeno que ele admite? Afirmar que o discurso é formativo não
significa afirmar que ele origina, causa ou exaustivamente compõe aquilo
que ele admite; em vez disso, significa afirmar que não existe nenhuma
referência a um corpo puro que não seja, ao mesmo tempo, uma formação
adicional daquele corpo. Nesse sentido, a capacidade lingüística para se
referir a corpos sexuados não é negada, mas o próprio significado de
“referencialidade” é alterado. Em termos filosóficos, a afirmação
constatativa é, sempre, em algum grau, performativa.
Em relação ao sexo, pois, se admitimos a
materialidade do sexo ou a materialidade do corpo, significa que essa
própria admissão atua — performativamente — para materializar aquele
sexo?
E, além disso, como é que a admissão
reiterada daquele sexo — uma admissão que não ocorre na fala ou na
escrita mas pode ser “assinalada” de um modo muito mais informe —
constitui a sedimentação e a produção daquele efeito material?
O crítico moderado poderia admitir que
alguma parte do “sexo” é construída, mas que alguma outra certamente não
é, e então, naturalmente, ele se acha não apenas obrigado, de alguma
forma, a traçar a linha entre o que é e o que não é construído, mas
também a explicar como é que o “sexo” vem em partes cuja diferenciação
não é um objeto de construção. Mas à medida em que essa linha de
demarcação entre essas partes ostensivas são traçadas, o “nãoconstruído”
torna-se limitado, uma vez mais, através de uma prática de
significação, e a própria fronteira que deveria proteger alguma parte do
sexo da mancha do construcionismo é agora definida pela própria
construção do anti-construcionista. É a construção algo que ocorre a um
objeto que já vem pronto, uma coisa pré-dada? Ela ocorre em graus? Ou
estamos nos referindo, talvez, em ambos os lados do debate, a uma
inevitável prática de significação, de demarcação e delimitação daquilo
ao qual nós, então, nos “referimos”, de forma tal que nossas
“referências” sempre pressupõem — e freqüentemente ocupam — essa
delimitação prévia? De fato, “referirse” ingenuamente ou diretamente a
um tal objeto extra-discursivo sempre exigirá a delimitação prévia do
extra-discursivo. E, na medida em que o extra-discursivo é delimitado,
ele é formado pelo próprio discurso do qual ele busca se libertar. Essa
delimitação, que freqüentemente é efetuada como uma pressuposição pouco
teorizada em qualquer ato de descrição, marca uma fronteira que inclui e
exclui, que decide, por assim dizer, o que será e o que não será o
conteúdo do objeto ao qual nós então nos referimos. Esse processo de
distinção terá alguma força normativa e, de fato, alguma violência, pois
ele pode construir apenas através do apagamento; ele pode limitar uma
coisa apenas através da imposição de um certo critério, de um princípio
de seletividade.
O que será e o que não será incluído no
interior das fronteiras do “sexo” será estabelecido por uma operação
mais ou menos tácita de exclusão. Se nós questionamos a fixidez da lei
estruturalista que divide e limita os “sexos” em virtude de sua
diferenciação diádica no interior da matriz heterossexual, será a partir
das regiões exteriores daquela fronteira (não de uma “posição”, mas das
possibilidades discursivas abertas pelo exterior constitutivo das
posições hegemônicas), e isso constituirá o retorno perturbador do
excluído a partir do interior da própria lógica do simbólico
heterossexual.
A trajetória deste texto, [6] perseguirá,
pois, a possibilidade desta perturbação, mas procederá de forma
indireta, ao responder a duas questões inter-relacionadas que têm sido
postas às descrições construcíonístas do gênero, não para defender o
construcionismo em si, mas para questionar os apagamentos e as exclusões
que constituem seus limites. Essas críticas pressupõem um conjunto de
oposições metafísicas entre materialismo e idealismo, que estão
embutidas na gramática recebida que, eu argumentarei, são criticamente
redefinidas por uma reescrita pós-estruturalista da performatividade
discursiva na medida em que ela atua na materialização do sexo.
Performatividade como citacionalidade
Quando, no jargão lacaniano, diz-se que
alguém assume [7] um “sexo”, a gramática da frase cria a expectativa de
que existe um “alguém”, que ao despertar, faz uma verificação e decide
qual “sexo” assumirá hoje, uma gramática na qual a “assunção” é
rapidamente assimilada à noção de uma escolha altamente reflexiva. Mas
se essa “assunção” é imposta por um aparato regulatório de
heterossexualidade, um aparato que reitera a si mesmo através da
produção forçosa do “sexo”, então a “assunção” do sexo é constrangida
desde o início. E se existe uma agência, ela deve ser encontrada,
paradoxalmente, nas possibilidades abertas naquela — e por aquela —
apropriação constrangida da lei regulatória, pela materialização daquela
lei, pela apropriação e identificação compulsória com aquelas demandas
normativas. A formação, a manufatura, o suporte, a circulação, a
significação daquele corpo sexuado — tudo isso não será um conjunto de
ações executadas em obediência à lei; pelo contrário, será um conjunto
de ações mobilizadas pela lei, será a acumulação citacional e a
dissimulação da lei produzindo efeitos materiais, será a necessidade
vivida daqueles efeitos e a contestação vivida daquela necessidade.
A performatividade não é, assim, um “ato”
singular, pois ela é sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de
normas. E na medida em que ela adquire o status de ato no presente, ela
oculta ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição. Além
disso, esse ato não é primariamente teatral; de fato, sua aparente
teatralidade é produzida na medida em que sua historicidade permanece
dissimulada (e, inversamente, sua teatralidade ganha uma certa
inevitabilidade, dada a impossibilidade de uma plena revelação de sua
historicidade). Na teoria do ato da fala, um ato performativo é aquela
prática discursiva que efetua ou produz aquilo que ela nno que De acordo
com o relato bíblico do performativo, isto é, “que se faça a luz”,
parece que é em virtude do poder do sujeito ou de sua vontade que um
fenômeno é trazido, ao nomeá-lo, à existência. Numa reformulação crítica
do performativo, Derrida deixa claro que esse poder não é a função de
uma vontade originadora, mas é sempre derivativo:
Poderia um enunciado performativo ser
bem-sucedido se sua formulação não repetisse em um enunciado
“codificado” ou iterável ou, em outras palavras, se a fórmula que
pronuncio para abrir uma sessão, lançar um barco ou efetuar um casamento
não fosse identificável como conforme a um modelo iterável, se ela não
fosse, pois, identificável de alguma forma, como uma “citação” ? (…)
Nesta tipologia a categoria de intenção não desaparecerá, ela terá o seu
lugar, mas a partir deste lugar, não poderá mais comandar todo o
sistema e toda a cena da enunciação (Derrida, 1988, p. 18).
Em que medida o discurso adquire a
autoridade para produzir o que nomeia através da citação das convenções
da autoridade? E um sujeito aparece como autor de seus efeitos
discursivos na medida em que a prática citacional pela qual ele ou ela é
condicionado e mobilizado permanece não-marcada? Poderia ocorrer, na
verdade, que a produção do sujeito como capaz de dar origem a seus
efeitos é precisamente uma conseqüência dessa citacionalidade
dissimulada? Além disso, se o sujeito vem a existir através de uma
sujeição às normas do sexo, uma sujeição que exige uma assunção das
normas do sexo, podemos ler aquela assunção como precisamente uma
modalidade desse tipo de citacionalidade? Em outras palavras, a norma do
sexo assume o controle na medida em que ela é citada como uma tal
norma, mas ela também deriva seu poder através das citações que ela
impõe. E como é que nós poderemos ler a citação das normas do sexo como o
processo de nos aproximar dessas normas ou de nos “identificar” com
elas?
Além disso, em que medida, na
psicanálise, o corpo sexuado é assegurado através de práticas
identificatórias governadas por esquemas regulatórios? A identificação é
usada aqui não como atividade imitativa pela qual um ser consciente
modela-se de acordo com outro; pelo contrário, a identificação é a
paixão assimiladora pela qual um ego inicialmente emerge. Freud (1960,
p. 16) argumenta que “o ego é, primeiramente e acima de tudo, um ego
corporal”, que esse ego é, além disso, “uma projeção de uma superfície”:
aquilo que nós poderíamos redescrever como uma morfologia imaginária.
Além disso, eu argumentaria, essa morfologia imaginária não é uma
operação pré-simbólica ou pré-social, mas é, ela própria, orquestrada
através de esquemas regulatórios que produzem possibilidades
morfológicas inteligíveis. Esses esquemas regulatórios não são
estruturas intemporais, mas critérios historicamente revisáveis de
inteligibilidade que produzem e submetem corpos que pesam.
Se a formulação de um ego corporal, de um
sentimento de contorno estável, se a fixação da fronteira espacial é
obtida através de práticas identificatórias e se a psicanálise descreve o
funcionamento hegemônico daquelas identificações, podemos, então, ler a
psicanálise como uma descrição da matriz heterossexual ao nível da
morfogênese corporal? Aquilo que Lacan chama de “assunção” ou de
“acesso” à lei simbólica pode ser lido como uma espécie de citação da
lei e oferece, assim, uma oportunidade para se vincular a questão da
materialização dos “sexos” à reformulação da performatividade como
citacionalidade. Embora Lacan afirme que a lei simbólica tem um status
semi-autônomo, anterior à assunção de posições sexuadas por um sujeito,
essas posições normativas, isto é, os “sexos”, são conhecidos apenas
através das aproximações que eles ocasionam. A força e a necessidade
dessas normas (o “sexo” como uma função simbólica deve ser entendido
como uma espécie de mandamento ou injunção) é, assim, funcionalmente
dependente da aproximação e da citação da lei; a lei sem sua aproximação
não é lei ou, ao invés disso, ela permanece uma lei governante apenas
para aqueles que a afirmariam com base na fé religiosa. Se o “sexo” é
assumido da mesma forma que uma lei é citada, então a “lei do sexo” é
repetidamente fortalecida e idealizada como a lei apenas na medida em
que ela é reiterada como a lei, produzida como a lei — o ideal anterior e
não-aproximável — pelas próprias citações que ela diz comandar. Relendo
o significado de “assunção” em Lacan como citação, a lei não é mais
dada em uma forma fixa, anteriormente à sua citação, mas é produzida
através da citação, como aquilo que precede e excede as aproximações
mortais efetuadas pelo sujeito.
Dessa forma, a lei simbólica em Lacan
pode estar sujeita ao mesmo tipo de crítica que Nietzsche formulou sobre
a noção de Deus: o poder atribuído a esse poder prévio e ideal é
derivado e desviado da própria atribuição. É esta compreensão sobre a
ilegitimidade da lei simbólica do sexo que é dramatizada em certo grau
no filme contemporâneo Paris esta em chamas-, o ideal que é espelhado
depende do fato de que aquele próprio espelhamento seja sustentado como
um ideal. Embora o simbólico pareça ser uma força que não possa ser
contrariada sem psicose, o simbólico deve ser repensado como uma série
de injunções normativizantes que asseguram as fronteiras do sexo através
da ameaça da psicose, da abjeção e da impossibilidade psíquica de
viver. E, além disso, que essa “lei” pode apenas permanecer uma lei na
medida em que ela impõe as citações e as aproximações diferenciadas
chamadas “femininas” e “masculinas”. A suposição de que a lei simbólica
do sexo goza de uma ontologia separável, anterior e autônoma
relativamente à sua assunção, é contrariada pela noção de que a citação
da lei é precisamente o mecanismo de sua produção e articulação. O que é
“forçado” pelo simbólico, pois, é uma citação de sua lei, a qual
reitera e consolida o estratagema de sua própria força. O que
significaria “citar” a lei para produzi-la diferentemente, “citar” a lei
a fim de reiterar e cooptar seu poder, denunciar a matriz heterossexual
e deslocar o efeito de sua necessidade?
O processo dessa sedimentação — ou
daquilo que poderíamos chamar materialização — será uma espécie de
citacionalidade, a aquisição do ser através da citação do poder, uma
citação que estabelece uma cumplicidade originária com o poder na
formação do “eu”.
Nesse sentido, a agência denotada pela
performatividade do “sexo” será diretamente contrária a qualquer
concepção de um sujeito voluntarista que exista separadamente das normas
regulatórias às quais ela ou ele se opõe. O paradoxo da subjetivação
assume reside precisamente no fato de que o sujeito que resistiria a
essas normas é, ele próprio, possibilitado, quando não produzido, por
essas normas. Embora esse constrangimento constitutivo não impeça a
possibilidade da agência, ele localiza, sim, a agência como uma prática
reiterativa ou rearticulatória imanente ao poder e não como uma relação
de oposição externa ao poder.
Como resultado dessa reformulação da
performatividade, (a) a performatividade de gênero não pode ser
teorizada separadamente da prática forçosa e reiterativa dos regimes
sexuais regulatórios; (b) a explicação da agência condicionada por
aqueles próprios regimes de discurso/poder não pode ser confundida com o
voluntarismo ou o individualismo, muito menos com o consumismo, e não
pressupõe, de forma alguma, um sujeito que possa escolher; (c) o regime
da heterossexualidade atua para circunscrever e contornar a
“materialidade” do sexo e essa “materialidade” é formada e sustentada
através de — e como — uma materialização de normas regulatórias que são,
em parte, aquelas da hegemonia sexual; (d) a materialização de normas
exige aqueles processos identificatórios pelos quais as normas são
assumidas ou apropriadas, e essas identificações precedem e possibilitam
a formação de um sujeito, mas não são, estritamente falando, executadas
pelo sujeito; (e) os limites do construcionismo ficam expostos naquelas
fronteiras da vida corporal onde corpos abjetos ou deslegitimados
deixam de contar como “corpos”. Se a materialidade do sexo é demarcada
no discurso, então esta demarcação produzirá um domínio do “sexo”
excluído e deslegitimado. Portanto, será igualmente importante pensar
sobre como e para que finalidade os corpos são construídos, assim como
será importante pensar sobre como e para que finalidade os corpos não
são construídos, e, além disso, perguntar, depois, como os corpos que
fracassam em se materializar fornecem o “exterior” — quando não o apoio —
necessário, para os corpos que, ao materializar a norma, qualificam-se
como corpos que pesam.
Como, pois, podemos pensar a matéria dos
corpos como uma espécie de materialização governada por normas
regulatórias — normas que têm a finalidade de assegurar o funcionamento
da hegemonia heterossexual na formação daquilo que pode ser
legitimamente considerado como um corpo viável? Como essa materialização
da norma na formação corporal produz um domínio de corpos abjetos, um
campo de deformação, o qual, ao deixar de ser considerado como
plenamente humano, reforça aquelas normas regulatórias? Que
questionamento esse domínio excluído e abjeto produz relativamente à
hegemonia simbólica? Esse questionamento poderia forçar uma
rearticulação radical daquilo que pode ser legitimamente considerado
como corpos que pesam, como formas de viver que contam como “vida”, como
vidas que vale a pena proteger, como vidas que vale a pena salvar, como
vidas que vale a pena prantear?
Notas
- Este texto é a tradução do capítulo introdutório do livro de Judith Butler, Bodies that matter, publicado por Routledge, Nova York e Londres, 1993. Nesta tradução suprimiram-se as notas e a seção “Trajectory of the text” que apresenta os capítulos subseqüentes do livro (N. do T.)
- Traduzi o título deste ensaio, dado a partir do título do livro de onde foi extraído, Bodies that matter, como “Corpos que pesam” para conservar parte do jogo que a autora faz com a palavra “matter”. Em inglês o verbo “to matter” significa “importar”, “ter importância” e o substantivo “matter” significa, entre outras coisas, “matéria”. “Bodies that matter”, portanto, pode ser traduzido, literalmente, como “Corpos que importam”, “Corpos que têm importância”, mas esta tradução deixa fora, evidentemente, o jogo com “matéria”, palavra importante para a argumentação da autora. O “pesam” de “Corpos que pesam” apenas obli-quamente evoca a “matéria” enfatizada pela autora, ao evocar uma propriedade da matéria, o “peso”. Conservei a mesma tradução nas passagens do texto em que a autora volta a utilizar o mesmo jogo de palavras. (N. do T.)
- “Citacional” e “citacionalidade” (em inglês, “citational” e “citationality”), como a autora deixará claro, são conceitos utilizados por Jacques Derrida. Eles aparecem exatamente nessa forma em pelo menos uma das traduções de Derrida: “Assinatura, acontecimento, contexto”, in Derrida, s. d. (por exemplo, p.428).
- O termo “queer” tem sido usado, na literatura anglo-saxônica, para englobar os termos “gay” e “lésbica”. Historicamente, “queer” tem sido empregado para se referir, de forma depreciativa, às pessoas homossexuais. Sua utilização pelos ativistas dos movimentos homossexuais constitui uma tentativa de recuperação da palavra, revertendo sua conotação negativa original. Essa utilização renovada da palavra “queer” joga também com um de seus outros significados, o de “estranho”. Os movimentos homossexuais falam, assim de uma política queer ou de uma teoria queer. (N.do T.)
- No original, “constructivism”. Traduzi por “construcionismo” para evitar associações com o construtivismo psicológico de inspiração piagetiana. Pela mesma razão, traduzi “constructivisf por “construcionista”. (N. do T.)
6. A autora se refere ao conjunto do livro, Bodies that matter, de onde este ensaio foi extraído. (N. doT.)
- Como esclarece a autora no capítulo III, nota 4, p.266 do livro de onde foi extraído este ensaio, Bodies that matter, o termo assunção refere-se à utilização que dele faz Lacan na frase seguinte, em Escritos: “Existe aí uma antinomia interna na assunção de seu sexo pelo homem (mench) por que deve ele assumir-lhe os atributos apenas através de uma ameaça, ou até mesmo sob o aspecto de uma privação?” (Lacan, 1998, p.692). (N. do T.)
- A tradução desta citação de Derrida foi tomada de Derrida, s. d., p.428. A primeira frase da citação figura, na tradução portuguesa, como uma afirmação e não como uma interrogação, tal como está na tradução inglesa utilizada pela autora. Na impossibilidade de consultar o original francês optei por manter a interrogação suposta pela autora em sua argumentação. (N. do T.)
Referências Bibliográficas
DERRIDA, Jacques. “Signature, event,
context”. In Gerald Graff Ced.). Limited, inc. Evanston: Northwestern
University Press, 1988.
DERRIDA, Jacques. As margens da filosofia. Porto: Rés, s. d. FREUD, Sigmund. The ego and the id. Nova York: Norton, 1960.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
*O escrito foi publicado originalmente
com o título “Introduction”, no livro: Judith Butler. Bodies that
matter. On the discursive limites of ‘sex’. Nova York/Londres:
Routledge, 1993: pp.1-16. Copyright ©
1993- From Bodies that matter: on the discursive limits of sex’ by
Judith Butler. A presente tradução foi realizada por Tomaz Tadeu da
Silva e publicada em: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado:
Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
**A imagem-roubada é da feitoria de Joel-Peter Witkin, nomeada de “Portrait of Isabella Brant” e foi publicada no ano de 1939.
Fonte: Territórios de Filosofia
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