dezembro 31, 2014

"Os limites da lei e o papel pedagógico dos jornais", por Sylvia Debossan Moretzsohn

PICICA: "Será lugar-comum dizer que a internet, à parte suas muitas vantagens, favoreceu o clima de “liberou geral”, no qual as pessoas se acham no direito de dizer o que bem entenderem, como se a liberdade de expressão não tivesse limites. Não é bem assim, e os limites são precisamente os que estão na lei: quem se excede precisa responder por seus atos.

O ambiente que o país viveu nos últimos meses, com o acirramento da disputa eleitoral, não proporcionou apenas a disseminação de mentiras e difamações. Fez crescer o cultivo do ódio, traduzido em atitudes que ultrapassam a ofensa para expressar o elogio do crime e em ataques abertos ao regime democrático.

No primeiro caso, o episódio típico foi protagonizado pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), no início de dezembro, ao interpelar a ex-ministra Maria do Rosário (PT-RS), sua colega na Câmara, e afirmar que não a estupraria porque ela não merecia. No segundo, foram – têm sido – as manifestações públicas em favor de um golpe militar, desde a reta final do segundo turno das eleições para presidente." 


LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Os limites da lei e o papel pedagógico dos jornais

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 30/12/2014 na edição 831



Será lugar-comum dizer que a internet, à parte suas muitas vantagens, favoreceu o clima de “liberou geral”, no qual as pessoas se acham no direito de dizer o que bem entenderem, como se a liberdade de expressão não tivesse limites. Não é bem assim, e os limites são precisamente os que estão na lei: quem se excede precisa responder por seus atos.

O ambiente que o país viveu nos últimos meses, com o acirramento da disputa eleitoral, não proporcionou apenas a disseminação de mentiras e difamações. Fez crescer o cultivo do ódio, traduzido em atitudes que ultrapassam a ofensa para expressar o elogio do crime e em ataques abertos ao regime democrático.

No primeiro caso, o episódio típico foi protagonizado pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), no início de dezembro, ao interpelar a ex-ministra Maria do Rosário (PT-RS), sua colega na Câmara, e afirmar que não a estupraria porque ela não merecia. No segundo, foram – têm sido – as manifestações públicas em favor de um golpe militar, desde a reta final do segundo turno das eleições para presidente.

Contra a impunidade

Em sua coluna de terça-feira (23/12, “O relegado“), o jornalista Janio de Freitas relembrou na Folha de S.Paulo a trajetória do capitão Bolsonaro, quando, ainda tenente, fez ameaças terroristas para forçar o aumento do soldo. Sua atitude seria passível de processo criminal, o que não ocorreu. Ao entrar para a política partidária, foi reeleito sucessivamente, “sempre obrando uma imbecilidade agressiva em seguida a uma cretinice violenta, e vice-versa. Sempre sujeito a um artigo do Código Penal e do Regimento da Câmara. E sempre impunemente”. E só fez crescer: nas últimas eleições, foi o mais votado do estado do Rio, com mais de 464 mil votos.

Curiosamente, alguns jornalistas, embora muito críticos da atitude do deputado, condenaram a hipótese de impor-lhe sanções, justamente em nome da liberdade de expressão. O artigo de Janio funcionou como resposta a esse argumento:

“O ataque à deputada Maria do Rosário, e às mulheres em geral, começou na impunidade ao plano terrorista. Sua defesa a pretexto da liberdade de expressão não tem cabimento: a liberdade de expressão não inclui o direito de agredir verbalmente. Ou, do contrário, não existiriam as tão conhecidas ações penais por calúnia, difamação e injúria, entre outras”.

Contra o golpismo

A mesma condescendência baseada na defesa da liberdade de expressão que enxerga a punição aos excessos como censura favorece a defesa explícita da ruptura da ordem democrática. À contracorrente, o professor Vladimir Safatle publicou artigo na Folha de S.Paulo (9/12, “Intervenção militar“) em que demonstrava a diferença entre protestar contra o governo e defender um golpe:

“(...) pedir por uma ‘intervenção militar’ não é uma ‘opinião’ política, mas pura e simplesmente o crime por excelência.
(...)
“Por isso, quem levanta um cartaz a favor de um golpe militar não pode estar na rua, mas deveria estar ou respondendo a processos por incitação à forma máxima de violência ou diretamente na cadeia.
“Uma sociedade que não pune quem pratica tal violência, mas convive com os que a elogiam como se fosse algo meio pitoresco, cava sua própria cova”. 

Na mesma linha, em novembro, o jornalista Mauro Santayana publicava longo artigo no site do Jornal do Brasil (10/11), insurgindo-se veementemente contra o que chamou de “pilares da estupidez“, cravados nas redes sociais com sua “insidiosa campanha de agressão à democracia”, que acolhia as mais estapafúrdias e delirantes acusações contra a esquerda e fazia ressurgir os mesmos fantasmas que sustentaram o apoio da classe média ao golpe de 1964.

Em 23/12, o colunista voltou à carga (“Aécio e os limites da lei“), repetindo a referência à Lei 7.170, que pune “manifestações contra o atual regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito”.

Um exemplo

Santayana mencionava, então, a vitória do senador Aécio Neves, candidato derrotado à Presidência, que obteve na Justiça a quebra do sigilo cadastral de usuários do Twitter que o acusavam de crimes e uso de drogas. Sugeria que o mesmo deveria ocorrer com os que ofendem a presidente Dilma e demais alvos do mesmo comportamento.

“Os absurdos que são escritos nos sites nacionais a cada momento – alguns chegam a ser constrangedores, pela vilania, ignorância, baixeza, vulgaridade e sordidez – são a prova maior de que vivemos claramente em uma nação em plena vigência do Estado de Direito, com a mais ampla liberdade de expressão e de opinião.
“Esses direitos, no entanto, não se aplicam à calúnia, ao racismo, e à apologia do golpismo, venha este de onde vier, com ataques ao regime democrático e à ordem constitucional.
“A Lei dispõe de meios e de instrumentos para impor limites e punições a esse tipo de crimes”. 

Providências pedagógicas

O caso deixou Santayana otimista quanto à possibilidade de frear “a irrestrita farra de incitação à mentira, ao ódio e à violência, que tem se disseminado, até agora, impunemente, na internet brasileira”.

A esperança pode ser justificada, mas, sob esse aspecto, os jornais teriam um papel pedagógico importante, caso zelassem melhor pelo que se publica nos espaços destinados às manifestações dos leitores em seus sites. Não é tarefa simples, porque exigiria mais investimento em pessoal, para a devida filtragem das contribuições do público. Normalmente, entretanto, deixa-se aos próprios leitores a tarefa de denunciar o que for inconveniente.

Um exemplo recente: matéria do Globo sobre denúncia contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais notórios militares acusados de tortura durante o regime ditatorial, recebeu comentários ofensivos contra quem se posicionava a favor da reportagem (ver aqui). Foram depois removidos, mas tiveram muito mais do que 15 minutos de glória. Outros, que elogiavam o coronel e o apontavam como “um herói e um exemplo para as gerações vindouras”, continuaram no ar.

O estímulo à participação do público precisa estar acompanhado dos limites estabelecidos para essas manifestações. É uma medida preventiva e pedagógica, que define os termos do debate, zela pela civilidade e restringe as possibilidades de disseminação do discurso do ódio.

O mesmo deveria valer para os comentários a artigos. Especialmente no caso da Folha, é recorrente o grosseiro ataque pessoal a certos colunistas, quando o que se espera, em qualquer caso, é a discussão de ideias.

Jornais sempre escolhem o que vão publicar. Nos tempos anteriores à internet, até por uma limitação física, precisavam selecionar as cartas dos leitores. Hoje, a limitação é exclusivamente ética.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007) 

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