PICICA: "É fácil ficar atordoado com as ideias de
Nietzsche. Ainda mais neste primeiro momento. Pode parecer assustador,
as tormentas niilistas anunciam tempo difíceis, o mundo está em ruínas,
os deuses precisam ser enterrados. Ficamos zonzos com o peso do martelo
caindo sobre tudo que um dia acreditamos. Mas não terminamos, estamos
apenas limpando o terreno. A noite, por mais longa e fria que seja,
sempre chega ao fim, e a aurora anuncia o tempo da Grande Saúde."
Nietzsche – as tormentas do niilismo
Muitos chamam Nietzsche de niilista, não sem razão, mas sua concepção de niilismo é diferente daquela que o acusam. Nihil
significa nada, coisa alguma, sendo niilismo então algum tipo de
movimento negador de toda e qualquer coisa. Se seguirmos este caminho
estaremos nos afastando do filósofo alemão.
A obra de Nietzsche pode ser
didaticamente separada em duas partes. Uma de completa negação, que
abordaremos neste texto, e outra, de completa afirmação. Sendo assim, o
“Não” de Nietzsche é fruto, é a preparação para um grande “Sim!” muito
mais alto e poderoso. O “crepúsculo dos ídolos” abre espaço para o
grande meio-dia, onde Zaratustra dança e a sombra é mais curta. O som estridente do impacto martelo dá lugar à alegre música.
O título deste texto foi retirado de um livro de Michel Onfray, “A sabedoria trágica – sobre o bom uso de Nietzsche“.
Nesta obra, Onfray fala das tormentas do Niilismo, movimento negador de
Nietzsche, túmulo do sagrado, martelo destruidor, niilismo, morte de Deus; e depois (tema do próximo texto) da Grande Saúde, movimento afirmador de Nietzsche, amor-fati, super-homem,
gaia ciência, efetivação da potência do ser. Vamos então ao que
interessa, eis os sete movimentos do niilismo, prelúdio da Grande Saúde
que se anuncia:
- Nova cosmologia: toda metafísica do ocidente acabou, foi desagregada. Todo idealismo desintegrou-se. Depois que o Uno decompôs-se, sobrou espaço apenas para a multiplicidade das forças. Potências cegas se enfrentam, a ordem é efeito do caos. A existência é um campo de batalha, onde não há vencidos nem vencedores, apenas forças que buscam se afirmar. Fluxos, velocidades, forças, energias, intensidades: “esse mundo é Vontade de Potência – e nada além disso“
- Pura irreligião: Nietzsche trouxe as boas novas: “Deus está morto!“. Se não há nada fora da Vontade de Potência, os deuses não têm mais onde se esconder. Ou Deus é esta realidade múltipla, ou ele não é nada. Como não há nada fora do todo, e o todo é plural e descontínuo, então Deus não existe. Os que recusaram este mundo, criaram deuses para cultuar o nada. Os homens perderam-se nestes fantasmas, mas já é tempo da criatura matar seu criador. Deus exige a renúncia, mas nós renunciamos a Deus. É preciso fincar o punhal nesta divina ideia, rasgar o véu que nos separa da realidade.
- Devir fragmento: Deus sai do centro do mundo, e, no reverso da moeda, o homem sai também de cena. A forma homem é fruto da fraqueza, da interiorização das forças, doença dos instintos. O homem não é mais o centro do universo, nem o centro de si mesmo, é apenas uma fragmento do todo, é um animal entre outros animais, só que mais pálido, fraco e preso nas celas da civilização. Sim, claro, é preciso superar o homem, esta carcaça andante já não cria, não vive, quase não respira: tornou-se máquina entre máquinas, pecador entre pecadores. Devir fragmento é perceber que se agitam infinitas forças dentro desta casca que chamamos de ser humano.
- Retórica da moralina: Quem quer a moral? Quem quer o bem e o mal? Nietzsche desmonta a retórica dos moralistas em Genealogia da Moral. Não, a moral não pode mais ser nossa guia, ela é filha dos idealismos e irmã dos asceticismos. Todo “tu deves” será abolido. Todos os mandamentos serão queimados, as tábuas da salvação serão quebradas. A moral castra, o castrado pede senhores, os senhores tornam-se donos da verdade, a verdade não se deixa ser questionada. A vida torna-se morte quando as forças vitais rendem-se aos pregadores da morte.
- Elogio a Pôncio Pilatos: Este momento é delicado. O que fez Pôncio Pilatos? Deixou o povo decidir entre Barrabás ou Cristo, lavou as mãos. Pôncio Pilatos não quer saber de Cristo, não lhe dá atenção, não perde seu tempo. É preciso escolher entre Dionísio ou o Crucificado. Quem primeiro suspeitou da vida disse: “meu reino não é deste mundo” (Jo 18:36). Isso não é um crime, claro, mas tampouco é atitude para se admirar…
- Antipolítica: “Se manter limpo frente à necessária sujeira de toda política” (Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §61). Nietzsche não é de nenhum partido (e, com certeza, não é anti-semita); palavras como pátria, se tornam indiferentes para ele, seu caminho é outro. Desfazer o poder. Como? Seguindo outras linhas, linhas de fuga… O mesmo vale para o trabalho: parem de servir. O mesmo vale para a família: quebrem o triângulo edípico. Não se é livre passando de uma prisão à outra. A filosofia nietzschiana ignora fronteiras.
- Anatomia do Socialismo: Nietzsche desmascara o socialismo em seus primórdios, ele não passa de uma reinvenção do cristianismo, uma encarnação do mito de salvação. “Haverá o dia em que todos seremos um, e não haverá mais oprimidos nem opressores”, diz o revolucionário; mas ele, de alguma forma, também aguarda a volta de Cristo, a salvação e o julgamento (da história). Sonho, vontade de nada, negação do real. A luta é diária, sem perspectivas de um céu na terra. Não há lugar para se chegar, tudo se faz aqui e agora; não há ideais para se seguir, apenas a Vontade de Potência se afirmando.
É fácil ficar atordoado com as ideias de
Nietzsche. Ainda mais neste primeiro momento. Pode parecer assustador,
as tormentas niilistas anunciam tempo difíceis, o mundo está em ruínas,
os deuses precisam ser enterrados. Ficamos zonzos com o peso do martelo
caindo sobre tudo que um dia acreditamos. Mas não terminamos, estamos
apenas limpando o terreno. A noite, por mais longa e fria que seja,
sempre chega ao fim, e a aurora anuncia o tempo da Grande Saúde.
Fonte: Razão Inadequada
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