PICICA: "O universo fílmico de Akira Kurosawa
mostra, muitas vezes, uma proximidade discursiva com a filosofia
helenística, especialmente com aquilo que é comumente chamado de
estoicismo. Essa aproximação é evidente em muitos filmes, mas é em O Barba Ruiva
(1965) que isso fica muito evidente. O filme gira em torno de uma
clínica médica que atende pacientes pobres no Japão do século XIX."
O universo fílmico de Akira Kurosawa
mostra, muitas vezes, uma proximidade discursiva com a filosofia
helenística, especialmente com aquilo que é comumente chamado de
estoicismo. Essa aproximação é evidente em muitos filmes, mas é em O Barba Ruiva
(1965) que isso fica muito evidente. O filme gira em torno de uma
clínica médica que atende pacientes pobres no Japão do século XIX. O
lugar é comandado pelo doutor Kyojô Niide, que é conhecido por Barba
Ruiva, por conta da cor de sua barba.
O filme começa com a chegada de um novo
médico, o doutor Noboru Yasumoto, um jovem proveniente de uma família
bem relacionada e que fez sua formação médica numa escola de grande
prestígio no Japão. Seus estudos e sua habilidade lhe permitem
vislumbrar uma carreira repleta de honras e riquezas, já que está apto a
se tornar médico das elites governantes do Japão. Porém, para sua
surpresa, acaba sendo obrigado a iniciar sua carreira na clínica de
Barba Ruiva, um lugar que não lhe traria nem honras, nem riquezas.
Diante desse infortúnio, Yasumoto decide confrontar a autoridade de
Niide, de modo a conseguir a dispensa da sua obrigação em atender no
local. Agindo de forma infantil e egoísta, Yasumoto tenta quebrar todas
as regras da clínica e desafiar a rígida autoridade de seu comandante.
É a partir desse confronto que o filme
começa a desenhar a temática propriamente estóica. Mais do que um médico
clínico, no sentido moderno do termo, que imagina o cuidado com o corpo
como o cuidado de uma máquina, Niide pensa a medicina como uma espécie
de exercício espiritual, no qual médico e paciente precisam
trabalhar juntos para o direcionamento da consciência na direção de uma
vida mais virtuosa. Nesse sentido, o cuidado médico está simultaneamente
direcionado para o corpo e para a consciência. Pode-se dizer, de forma
bastante sintética, que é essa a função da filosofia numa perspectiva
estóica. Mais do que uma pura formalização racional de um saber, a
filosofia se constituiria num campo prático de exercícios que visam a
saúde espiritual e corporal, o que se confunde com uma vida virtuosa e
feliz (a felicidade seria a suprema virtude nessa perspectiva).
Assim, Niide seria a representação do
verdadeiro filósofo, aquele que busca conduzir a sua própria vida de
acordo com um modelo de virtude, de modo a poder ajudar os outros a se
conduzirem da mesma forma. E o que se passa é justamente que o confronto
de Niide com Yasumoto se desenrola como um confronto entre essa
perspectiva de cuidado de si contra uma perspectiva que enxerga a
medicina como o saber especializado em lidar com as disfunções do
homem-máquina. O próprio Yasumoto reconhece que poderia se enriquecer
facilmente tratando a catarata de pessoas ricas com as técnicas que
estudou da medicina holandesa durante sua formação.
O embate entre o dois, mais do que um
choque irreconciliável, provoca uma mudança de perspectiva em Yasumoto.
Aos poucos, ele abandona a arrogância daquele que possui um saber e
aceita ocupar a posição de aprendiz, constituindo uma relação de mestre e
aprendiz, tão fundamental para o funcionamento dos exercícios
espirituais estóicos. E não é gratuito que a conversão de Yasumoto à
condição de aprendiz se inicie com seu próprio colapso físico. Após um
intenso desgaste emocional quando foi confrontado com a dor e a miséria
dos pacientes da clínica, Yasumoto começa a delirar febrilmente.
O colapso físico é também um colapso
espiritual e este abre caminho para uma verdadeira conversão filosófica.
Ele se torna capaz de enxergar a ideia de cuidado de si próprio
que percorre as ações de Barba Ruiva e começa a exercitar ele mesmo esse
tipo de cuidado, tornando-se, assim, capaz também de cuidar dos demais.
Esse movimento de conversão termina provocando uma completa
reconfiguração nos objetivos de Yasumoto, que decide abandonar sua busca
por honra e riqueza e se dedicar a esse cuidado consigo e com os
outros.
A sequência final é bastante simbólica,
na medida em que ele renuncia a possibilidade de assumir um posto
altamente qualificado na hierarquia médica do Japão para continuar
auxiliando seu novo mestre na clínica popular. Existe, portanto, um
forte sentido ético no interior do filme. Yasumoto enxerga não apenas a
necessidade de melhor conduzir a si próprio, abandonando os valores
aparentes do mundo (a riqueza e a honra) e buscando uma vida que cultiva
a virtude e a felicidade, mas também percebe que a única possibilidade
de cuidar do outro é agir como um condutor, como aquele que mostra o
caminho da virtude a partir de suas próprias ações.
Fonte: Ensaios Ababelados
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