dezembro 13, 2014

"Trashing: o lado sombrio da sororidade", por Jo Freeman

PICICA: "A detonação não é apenas destrutiva para os indivíduos envolvidos, mas serve como uma ferramenta muito poderosa de controle social."

Trashing: o lado sombrio da sororidade


A detonação não é apenas destrutiva para os indivíduos envolvidos, mas serve como uma ferramenta muito poderosa de controle social. Por Jo Freeman(*)

Este artigo foi escrito para a revista Ms. e publicado na edição de Abril de 1976, páginas 49-51 e 92-98. Ele atraiu mais cartas de leitoras que qualquer outro artigo anteriormente publicado na Ms., quase todas relatando suas próprias experiências de trashing [1]. Alguns desses relatos foram publicados num número posterior da Ms.

Faz muito tempo que me detonaram. Eu fui uma das primeiras no país, talvez a primeira em Chicago, a ter minha reputação, meu comprometimento e o meu próprio eu atacados pelo Movimento de mulheres de um jeito que me deixou em pedaços, incapaz de agir. Levei anos para me recuperar, e mesmo hoje as feridas não cicatrizaram inteiramente. Assim, circulo às margens do Movimento, nutrindo-me dele porque preciso, mas muito amedrontada para mergulhar uma vez mais no seu interior. Não sei nem mesmo do que tenho medo. Continuo dizendo a mim mesma que não há razão para que isso aconteça novamente – se eu for cautelosa – enquanto lá no fundo há um certeza penetrante, irracional, que diz que, se eu der minha cara a tapa, serei uma vez mais um para-raios de hostilidade. Por anos tenho escrito essa lengalenga na minha cabeça, normalmente como um discurso para uma variedade de plateias imaginárias do Movimento. Mas nunca pensei em me expressar publicamente sobre o assunto porque tenho sido uma adepta convicta de não lavar roupa suja do Movimento em público. Estou começando a mudar de ideia.


saturno 

Em primeiro lugar, tanta roupa suja está sendo exposta publicamente que duvido que o que tenha para revelar junte muita coisa à pilha. Para aquelas que têm sido ativas no Movimento, não é sequer uma revelação. Segundo, por anos tenho observado com crescente pesar o Movimento conscientemente destruir qualquer uma em seu interior que se destaque de alguma forma. Por muitos anos, esperei que essa tendência autodestrutiva definhasse com o tempo e a experiência. Assim, eu simpatizava, apoiava, mas não falava sobre as muitas mulheres cujos talentos foram perdidos para o Movimento porque suas tentativas de usá-los foram recebidas com hostilidade. Conversas com amigas em Boston, Los Angeles e Berkeley que tiveram sua reputação atacada em 1975 convenceram-me de que o Movimento não aprendeu a partir de sua experiência irrefletida. Em vez disso, o assassinato de reputação alcançou proporções epidêmicas. Talvez tirá-lo do armário deixe o ar mais fresco.


O que é “detonação“, essa expressão coloquial que diz tanto, mas explica tão pouco? Não é desacordo; não é conflito; não é oposição. Esses são fenômenos perfeitamente comuns que, quando mutuamente entrelaçados, honesta e não excessivamente, são necessários para manter um organismo ou uma organização saudável e ativa. A detonação é uma forma particularmente cruel de assassinato de reputação que equivale a um estupro psicológico. É manipulador, desonesto e excessivo. É ocasionalmente disfarçado pela retórica do conflito honesto ou acobertado pela negação de que exista qualquer reprovação. Mas ele não é feito para expôr desacordos ou resolver diferenças. É feito para desacreditar e destruir.


Os meios variam. A detonação pode ser feita de forma privada ou num ambiente de grupo; na cara ou pelas costas; através de ostracismo ou por meio de denúncia aberta. A detonadora pode dar-lhe informações falsas sobre o que as outras pensam de você (coisas horríveis); pode contar a suas amigas falsas histórias do que você acha delas; pode interpretar o que quer que você diga ou faça da maneira mais negativa; pode projetar expectativas irreais sobre você de modo que, quando não conseguir atingir essas expectativas, você se transforma num alvo “legítimo” para a raiva; pode negar suas percepções da realidade; ou pode fingir que você absolutamente não existe. A queimação de filme pode até ocorrer de forma velada por meio das novas técnicas grupais de crítica/autocrítica, mediação e terapia. Qualquer que seja o método utilizado, a detonação envolve violação de integridade, declaração de inutilidade e contestação da motivação da própria pessoa. Com efeito, o que é atacado não são ações ou ideias, mas o próprio indivíduo.


Esse ataque é executado fazendo com que você sinta que a sua mera existência é prejudicial ao Movimento e que não há nada que se possa fazer para mudá-lo. Esses sentimentos são reforçados quando você fica isolada das suas amigas, enquanto elas se convencem de que a associação com você é também prejudicial para o Movimento e para elas mesmas. Qualquer apoio a você irá manchá-las. Eventualmente, todas as suas colegas se juntarão num coro acusatório que não pode ser silenciado, e você se verá reduzida a uma mera paródia de quem outrora havia sido.


Três ataques à minha reputação foram necessários para me fazer desistir. Finalmente, no final de 1969, senti-me psicologicamente mutilada ao ponto de saber que não conseguiria continuar. Até então eu interpretava que minhas experiências decorriam de conflitos de personalidade ou de divergências políticas que eu poderia corrigir com tempo e esforço. Mas quanto mais eu tentava, pior as coisas ficavam, até que finalmente fui forçada a encarar a incompreensível realidade de que o problema não era o que eu fazia, mas o que eu era.


Isso era tão sutilmente comunicado que eu nunca encontrava alguém para falar a respeito. Não houve grandes confrontos, mas várias pequenas afrontas. Individualmente consideradas, cada uma dessas afrontas era insignificante; mas, se tomadas em conjunto, eram como mil chicotadas. Eu era gradualmente ostracizada: se um artigo coletivo era escrito, minhas tentativas de contribuir eram ignoradas; se eu escrevesse um artigo, ninguém o leria; quando eu falava em reuniões, todo mundo escutava educadamente e, então, prosseguia com a discussão como se eu não tivesse dito coisa alguma; as datas de reuniões eram alteradas sem que me avisassem; quando era minha vez de coordenar um projeto de trabalho, ninguém ajudava; quando não recebi as correspondências e descobri que meu nome não estava no catálogo de endereços, disseram-me que eu havia olhado no lugar errado. Meu grupo uma vez decidiu fazer uma campanha de arrecadação de dinheiro para enviar pessoas para uma conferência; quando eu disse que queria ir, decidiram que todo mundo iria por conta própria (para ser justa, uma colega posteriormente me ligou para contribuir com $5 para a minha passagem, sob a condição de que eu não contasse a ninguém. Ela foi detonada poucos anos depois).


Minha resposta a isso foi a perplexidade. Senti-me como se estivesse vagando com os olhos vendados num campo cheio de objetos cortantes e buracos profundos enquanto me tranquilizavam, dizendo que podia ver perfeitamente e estava em um campo de grama macia. Era como se eu houvesse entrado involuntariamente numa sociedade nova, operada por regras que eu não conhecia, nem poderia conhecer. Quando tentei fazer com que meu(s) grupo(s) discutissem a respeito daquilo que eu pensava estar acontecendo comigo, eles tanto negaram a minha percepção de realidade, dizendo que nada estava fora do comum, quanto classificaram os incidentes como triviais (individualmente eles eram). Uma mulher, em conversas telefônicas privadas, admitiu que eu estava sendo maltratada. Mas ela nunca me apoiou publicamente e, honestamente, admitiu que era porque temia perder a aprovação do grupo. Também fizeram a caveira dela em outro grupo.


Mês após mês, a mensagem era martelada: Caia fora! O Movimento estava dizendo: Saia! Saia! Um dia me encontrei confessando para minha colega de quarto que achava que eu não existia; que eu era uma invenção da minha própria imaginação. Foi quando eu soube que era hora de sair. Minha saída foi muito tranquila. Contei a duas pessoas e parei de ir ao Centro de Mulheres. A reação das pessoas me convenceu que eu tinha entendido a mensagem corretamente. Ninguém ligou, ninguém mandou nenhuma carta, nem sequer boatos circularam. Metade da minha vida havia sido anulada e ninguém o havia percebido exceto eu mesma. Três meses depois, chegou-me a informação de que eu havia sido denunciada pela União de Libertação das Mulheres de Chicago, fundada depois de eu ser expulsa do Movimento, por permitir-me ter sido citada numa notícia recente sem sua permissão. Isso foi tudo.


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O pior disso era que eu realmente não sabia por que eu estava tão profundamente afetada. Sobrevivi à minha criação num subúrbio muito conservador, conformista e machista, onde meu direito à minha própria identidade estava constantemente sob ataque. A necessidade de defender meu direito de ser eu mesma me fez mais dura, não esfrangalhada. Os meus calos foram fortalecidos futuramente pelas minhas experiências em outras organizações políticas e movimentos, onde eu aprendi o uso da retórica e do argumento como armas numa luta política, e como identificar conflitos pessoais mascarados como políticos. Tais conflitos eram geralmente articulados de forma impessoal, como ataques às ideias de alguém; embora talvez não fossem produtivos, eles não eram destrutivos como aqueles que vi mais tarde no movimento feminista. Pode-se repensar as próprias ideias como um resultado de elas serem atacadas. É muito mais difícil repensar a própria personalidade. O assassinato de reputações era usado ocasionalmente, mas não era considerado legítimo, e era, portanto, limitado tanto na extensão como na efetividade. Como as ações das pessoas contam mais que suas personalidades, tais ataques não resultavam tão facilmente no isolamento. Quando eram aplicados, só raramente irritavam.


Mas o movimento feminista conseguiu me afetar. Pela primeira vez na minha vida, me encontrei acreditando em todas as coisas horríveis que falavam sobre mim. Quando fui tratada feito merda, interpretei este tratamento como se quisesse dizer que eu fosse, pessoalmente, uma merda. Minha reação a este tratamento me deixava ainda mais insegura à medida em que a comparava com a minha própria experiência de vida. Tendo sobrevivido até certo ponto ilesa à minha criação, por que deveria sucumbir agora? A resposta demorou anos para chegar. É uma resposta pessoalmente dolorida, pois admito uma vulnerabilidade da qual pensei que houvesse escapado. Sobrevivi à minha juventude porque nunca tinha dado a ninguém ou a nenhum grupo o direito de me julgar. Esse direito, reservei-o a mim mesma. Mas o Movimento me seduziu com sua doce promessa de sororidade. Prometia prover um paraíso contra a devastação de uma sociedade sexista; um lugar onde uma mulher seria compreendida. Era a minha própria necessidade do feminismo e das feministas que me fez vulnerável. Concedi ao Movimento o direito de me julgar porque confiei nele. E quando me julgaram inútil, aceitei o julgamento.


Por pelo menos seis meses, vivi num tipo de desespero paralisante, internalizando completamente o meu fracasso como uma questão pessoal. Em junho de 1970, encontrei-me em Nova Iorque, coincidentemente, com outras feministas de quatro diferentes cidades. Nós nos reunimos numa noite para uma discussão geral sobre o estado do Movimento, mas, ao invés disso, discutimos sobre o que aconteceu conosco. Tínhamos duas coisas em comum: todas tínhamos ampla reputação no Movimento e todas tivemos nossa reputação assassinada. Anselma Dell’Olio leu para nós uma fala sobre “Divisionismo e autodestruição no Movimento das Mulheres”, que ela havia feito recentemente no Congresso para a União das Mulheres como resultado da queimação de filme que ela própria sofreu.

“Eu aprendi… há anos que mulheres estiveram divididas, uma contras as outras, autodestrutivas e cheias de raiva impotente. Pensei que o Movimento poderia mudar isso. Nunca sonhei que veria o dia em que este ódio, mascarado como pseudo-igualitarismo radical, seria usado dentro do Movimento para derrubar irmãs que se destacassem.
“Eu estou me referindo… aos ataques pessoais, tanto os evidentes quanto os insidiosos, aos quais foram submetidas as mulheres no Movimento que lidaram muito dificilmente com qualquer grau de realização, conquista ou feito. Esses ataques tomam diferentes formas. A mais comum e persuasiva é o assassinato de reputação: a tentativa de minar e destruir a crença na integridade do indivíduo sob ataque. Outra forma é o “expurgo”. A última tática é de isolá-la…
“E o que elas atacam? Geralmente duas categorias… Sucesso ou realização de qualquer tipo parecem ser os piores crimes: …faça qualquer coisa…. que outras mulheres acreditem em seu íntimo que também poderiam ter feito – e… você vira alvo. Se, então… você for assertiva, se tiver o que geralmente é descrito como uma ‘personalidade forte’, se… você não se encaixar no estereótipo convencional de uma mulher “feminina”,… está tudo acabado.
“Se você está na primeira categoria (uma empreendedora), você é imediatamente rotulada como uma oportunista em busca de emoção, uma mercenária cruel, que está lá para fazer fama e dinheiro sobre os corpos mortos das irmãs altruístas que tiveram suas habilidades enterradas e sacrificaram suas ambições para a maior glória do Feminismo. Produtividade parece ser o maior crime – mas se você tiver o azar de ser franca e articulada, você também será acusada de ser louca por poder, elitista, fascista e finalmente o pior epíteto de todos: se identifica com os homens. Aaaarrrrggg!”

Ao ouvi-la, um grande sentimento de alívio tomou conta de mim. Era minha experiência que ela estava descrevendo. Se eu era louca, não era mais a única. Nossa conversa continuou até tarde naquela noite. Quando saímos, nós sarcasticamente nos apelidamos de “refugiadas feministas” e concordamos em nos encontrar de novo. Nunca o fizemos. Ao invés disso, cada uma voltou para seu próprio isolamento e lidou com o problema apenas no nível pessoal. O resultado foi que a maioria das mulheres daquela reunião saíram do Movimento, assim como eu fiz. Duas terminaram no hospital por colapsos nervosos. Embora todas tenham continuado a ser feministas dedicadas, nenhuma tem realmente contribuído com seus talentos para o Movimento como elas poderiam ter feito. Embora nós nunca tenhamos nos encontrado novamente, nossas fileiras cresciam à medida em que a doença da autodestruição lentamente engolia o Movimento.


Ao longo dos anos, conversei com muitas mulheres que tiveram suas reputações assassinadas. Como um câncer, os ataques se espalhavam, desde as que tinham reputações até as que eram tão-somente fortes; desde as que eram ativas até as que meramente tinham ideias; desde as que se destacavam como indivíduos até aquelas que falhavam em se adequar rápido o suficiente com as voltas e reviravoltas da mudança de linha. A cada nova história, minha convicção de que a detonação não era um problema individual, causado por ações individuais, crescia; não era um resultado de conflitos políticos entre pessoas com ideias diferentes, era uma doença social.


Essa doença tem sido ignorada há tanto porque é frequentemente mascarada sob a retórica da sororidade. Em meu próprio caso, a ética da sororidade impediu o reconhecimento do meu ostracismo. Os novos valores do Movimento diziam que toda mulher era uma irmã, toda mulher era aceitável. Eu claramente não era. Ainda que ninguém pudesse admitir que eu não era aceitável sem admitir que elas não estavam sendo irmãs. Era mais fácil negar a realidade da minha inaceitabilidade. Junto com outras detonações, a sororidade tem sido usada como faca, ao invés de bainha. Um vago padrão do comportamento fraternal é estabelecido por juízas anônimas que condenam aquelas que não cumprem esses padrões. Enquanto o padrão for vago e utópico, ele não pode nunca ser atingido. Mas pode ser deslocado de acordo com as circunstâncias para excluir as irmãs indesejadas. Assim a memorável máxima de Ti-Grace Atkinson, de que a “sororidade é poderosa: ela assassina irmãs”, é reafirmada repetidas vezes.


A detonação não é apenas destrutiva para os indivíduos envolvidos, mas serve como uma ferramenta muito poderosa de controle social. As qualidades e estilos que são atacados tornam-se exemplos para outras mulheres aprenderem a não seguir – do contrário, o mesmo destino cairá sobre elas. Isso não é uma característica peculiar do Movimento das Mulheres, ou mesmo das mulheres. O uso de pressões sociais para induzir adequações e intolerância é endêmico na sociedade americana. A questão relevante não é por que o Movimento exerce fortes pressões para a adequação a um rígido padrão, mas qual é esse padrão ao qual as mulheres são pressionadas a se adequarem.


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Esse padrão é travestido pela retórica da revolução e do feminismo. Mas, por baixo dele, estão algumas ideias muito tradicionais sobre os papéis adequados das mulheres. Tenho observado que dois tipos diferentes de mulheres sofrem esses ataques. A primeira é a descrita por Anselma Dell’Olio – a empreendedora e/ou a mulher assertiva, aquela a quem o epíteto “identificada com os homens” é aplicado de forma comum. Esse tipo de mulher sempre foi rebaixado pela nossa sociedade com epítetos que variam de “pouco feminina” até “vadia castradora”. A principal razão de ter havido tão poucas “grandes mulheres que … [realizaram algo]” não é meramente que a grandeza feminina foi pouco desenvolvida ou não reconhecida, mas que as mulheres que apresentam potencial para o sucesso são punidas tanto por mulheres quanto por homens. O “medo do sucesso” é algo bastante racional quando se sabe que a consequência do sucesso é a hostilidade e não o elogio.


Não apenas o Movimento falhou em superar essa socialização tradicional, como algumas mulheres levaram isso a novos extremos. Fazer alguma coisa significante, ser reconhecida, ter sucesso, implica que se está “aproveitando da opressão de outras mulheres”, ou que se considera melhor que as outras. Apesar de poucas mulheres pensarem isso, muitas também ficam em silêncio enquanto as outras afiam as garras. A luta por “ausência de lideranças” que o Movimento tanto valoriza frequentemente se torna muito mais uma tentativa de destruir aquelas mulheres que mostram qualidades de liderança, do que desenvolver tais qualidades naquelas que não têm. Muitas mulheres que tentaram compartilhar suas habilidades foram detonadas por afirmarem que elas sabem algo que as outras não sabem. O culto do Movimento ao igualitarismo é tão forte que se confundiu com o culto à mesmice. As mulheres que nos lembram que não somos todas as mesmas têm seu filme queimado porque as qualidades que as fazem diferentes são interpretadas como uma afirmação de que não somos todas iguais.


Consequentemente, o Movimento exige coisas erradas das mulheres que conquistaram posições dentro dele. Ao invés de exigir reconhecimento e responsabilidade, pede culpa e arrependimento. As mulheres que se beneficiaram pessoalmente da existência do Movimento de fato devem mais do que gratidão a ele. Mas esta dívida não é paga com espancamento moral. A prática do ataque à reputação apenas desestimula outras mulheres a tentar se libertar de seus tradicionais grilhões.


O outro tipo de mulher que é comumente detonada é um tipo que eu jamais suspeitaria. Os valores do Movimento favorecem mulheres que são muito solidárias e comedidas; aquelas que estão constantemente resolvendo problemas pessoais alheios; as mulheres que desempenham bem um papel maternal. Mas um número surpreendente dessas mulheres já teve sua reputação detonada. Ironicamente, justo a habilidade de desempenhar este papel gera ressentimento e cria uma imagem de poder que suas colegas acham ameaçadora. Algumas mulheres mais velhas rejeitam conscientemente este papel maternal, porém, espera-se que o desempenhem porque elas se encaixariam nele — e são detonadas quando recusam. Outras mulheres que desempenham esse papel voluntariamente geram expectativas que eventualmente não conseguirão atender. Ninguém consegue ser “tudo para todas”; então, quando estas mulheres se veem numa situação em que têm que dizer “não” para conservar um pouco do seu próprio tempo e energia pra si mesmas ou pra cuidar da questão política de um grupo, elas são vistas como rejeitadoras e tratadas com ódio. É claro que mães de verdade conseguem lidar com um pouco de raiva das suas crianças porque mantém um alto grau de controle físico e financeiro sobre elas. Até mulheres nas profissões “cuidadoras”, que ocupam papéis de mães substitutas, têm recursos para controlar a raiva de seus clientes. Mas quando se é uma “mãe” para suas pares, esta não é uma possibilidade. Se as exigências estão fora da realidade, ou se recua, ou fazem sua caveira. 


A detonação contra ambos os grupos tem raízes comuns nos papéis tradicionais. Entre as mulheres existem dois papéis concebidos como permissíveis: a “ajudadora” e a “ajudada”. A maioria das mulheres são treinadas para agir de uma ou outra maneira em diferentes momentos. Apesar da prática de conscientização e de um diagnóstico intenso da nossa própria socialização, muitas de nós ainda não conseguimos nos libertar de desempenhar esses papéis, nem da nossa expectativa de que outras irão desempenhá-los. Aquelas que se desviam desses papéis — as mulheres de ação — são punidas por fazê-lo, assim como aquelas que fracassam em atender as expectativas do grupo.


Apesar de só algumas mulheres se engajarem na detonação, a culpa por permitir que esta prática persista é de nós todas. Uma vez sob ataque, há pouco que uma mulher pode fazer para se defender, porque, por definição, uma mulher que tem sua reputação atacada está sempre errada. Mas há muita coisa que quem está observando pode fazer para impedi-la de ser isolada e, em última instância, destruída. A detonação só funciona bem quando suas vítimas estão sozinhas, porque a essência dele é o isolamento de uma pessoa e a atribuição a ela dos problemas do grupo. O apoio coletivo quebra essa fachada e priva as destruidoras de reputação da sua audiência cativa. Transforma um massacre numa luta. Muitos ataques foram impedidos pela recusa de colegas de se silenciarem por medo de serem os próximos alvos. Outras agressoras foram forçadas a esclarecer suas reclamações até o ponto em que estas reclamações puderam ser tratadas de forma racional.


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Existe, é claro, uma linha tênue entre a detonação e a luta política, entre assassinato de reputação e objeções legítimas contra comportamentos indesejáveis. Discernir a diferença requer esforço. Seguem aqui alguns indicadores de caminhos a seguir. A detonação envolve muito uso do verbo “ser” e pouco uso do verbo “fazer”. É o que se é, e não o que se faz, que é objetado, e essas objeções não podem ser facilmente expressas em termos de comportamentos indesejáveis específicos. As detonadoras também tendem a usar nomes e adjetivos de uma forma vaga e genérica para tentar expressar suas objeções a uma pessoa específica. Esses termos carregam uma conotação negativa, mas não lhe dizem realmente o que está errado. Isso é deixado para sua imaginação. Aquelas que estão sofrendo ataques à reputação não podem fazer nada certo. Porque elas são más, suas motivações são más e, portanto, suas ações são sempre más. Não existe retificação de erros passados, porque esses são tratados como sintomas e não como erros.


A prova de fogo, no entanto, ocorre quando alguém tenta defender uma pessoa sob ataque, especialmente quando ela não está lá. Se esta defesa é levada a sério e mostra-se alguma preocupação em ouvir todos os lados e obter todas as evidências necessárias, provavelmente não está ocorrendo detonação. Mas se a sua defesa é dispensada de imediato com um “como você pode defendê-la?”; se você acaba se tornando suspeita ao tentar fazer essa defesa; se ela é de fato indefensável, você deve olhar as acusadoras de perto. Há algo mais acontecendo do que simples discordâncias.


Como a destruição de reputação tornou-se mais frequente, eu fiquei mais intrigada com a questão do porquê. O que há no Movimento das Mulheres que apoia e até mesmo incentiva a autodestruição? Como podemos, por um lado, falar sobre o incentivo às mulheres a desenvolver seu próprio potencial e, por outro, esmagar aquelas entre nós que fazem exatamente isso? Por que condenamos nossa sociedade machista pelo dano que causa às mulheres, para depois condenarmos as mulheres que não parecem tão severamente destruídas pela sociedade? Por que a conscientização não nos conscientizou sobre a detonação?


A resposta óbvia está enraizada na nossa opressão enquanto mulheres, e na autoflagelação grupal que resulta de termos sido criadas para acreditar que as mulheres não valem muito. No entanto, esta resposta é muito fácil; esconde o fato de que a detonação não ocorre de forma aleatória. Nem todas as mulheres ou organizações femininas fazem destruição de reputação, ou pelo menos não o fazem na mesma medida. É muito mais predominante entre aquelas que se consideram radicais do que entre aquelas que não se consideram; muito mais entre aquelas que enfatizam mudanças pessoais do que entre aquelas que enfatizam mudanças institucionais; muito mais entre aquelas que não veem vitórias antes da revolução do que entre aquelas que se satisfazem com vitórias menores; muito mais entre grupos com objetivos vagos do que entre grupos com objetivos concretos.


Duvido que haja uma explicação única para a detonação; é mais provável que se deva a diversas combinações de circunstâncias que nem sempre são visíveis, mesmo para quem as vive. Mas a partir das histórias que ouvi, e dos grupos que observei, o que mais me impressionou é o quanto a detonação é tradicional. Não há nada de novo no desencorajamento das mulheres a agirem fora do esperado com o uso de manipulação psicológica. Esta é uma das coisas que por anos têm impedido as mulheres de crescer; é algo do qual o feminismo deveria nos libertar. No entanto, ao invés de uma cultura alternativa com valores alternativos, criamos meios alternativos para nos inculcar a cultura e os valores tradicionais. Só o nome mudou; os resultados são os mesmos.


Embora as táticas sejam tradicionais, a virulência não é. Nunca vi mulheres se enfurecerem tanto com outras mulheres como acontece no Movimento. Em parte, isso ocorre porque as nossas expectativas sobre outras feministas e sobre o Movimento em geral são muito elevadas e, portanto, difíceis de atender. Nós ainda não aprendemos a ser realistas em nossas demandas sobre nossas irmãs ou sobre nós mesmas. Ocorre também porque outras feministas estão disponíveis como alvos para a raiva.


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A raiva é um resultado lógico da opressão. Ela exige uma válvula de escape. Como muitas mulheres são rodeadas por homens a quem, pelo que aprenderam, não é prudente atacar, sua raiva é geralmente voltada para dentro. O Movimento está ensinando as mulheres a parar este processo, mas em muitos casos não forneceu alvos alternativos. Enquanto os homens estão distantes e o “sistema” é muito grande e vago, as “irmãs” estão por perto. Atacar outras feministas é mais fácil e os resultados podem ser vistos mais rapidamente do que quando se ataca instituições sociais amorfas. Pessoas são feridas; elas vão embora. Pode-se sentir a sensação de poder que vem de ter “feito alguma coisa”. A mudança de uma sociedade inteira é um processo frustrante, muito lento, em que os ganhos são incrementais, as recompensas são difusas e os retrocessos são frequentes. Não é uma coincidência que a queimação de filme seja feita com frequência e mais violentamente por aquelas feministas que veem pouco valor em mudanças pequenas e impessoais e, portanto, muitas vezes não tenham condições de agir contra instituições específicas.


A ênfase do Movimento na palavra de ordem “o pessoal é político” tornou mais fácil o florescimento da detonação. Começamos por derivar algumas das nossas ideias políticas da análise de nossas vidas pessoais. Isto legitimou, para muitas, a ideia de que o Movimento poderia nos dizer que tipo de pessoas devemos ser e, por extensão, que tipo de personalidades devemos ter. Como não foram estabelecidos limites para tais exigências, foi difícil impedir abusos. Muitos grupos têm buscado remodelar as vidas e mentes de suas integrantes, e alguns destróem a reputação daquelas que resistiram. A detonação é também uma forma de extravasar a competitividade que permeia nossa sociedade, mas de uma forma que reflete os sentimentos de incompetência que as detonadoras exibem. Em vez de tentar provar que se é melhor do que qualquer outra pessoa, tenta-se provar que outra pessoa é pior. Isso pode proporcionar a mesma sensação de superioridade que a concorrência tradicional faz, mas sem os riscos envolvidos. Na melhor das hipóteses, o objeto de sua ira é exposto à vergonha pública; na pior das hipóteses, a própria posição é assegurada sob a fantasia da justa indignação. Francamente, se vamos ter concorrência no Movimento, eu prefiro a tradicional. Tal competitividade tem os seus custos, mas também existem alguns benefícios coletivos a partir das realizações que as concorrentes fazem ao tentar superar umas às outras. Com a detonação não há beneficiárias. Em última análise, todas perdem.


Apoiar mulheres acusadas de subverter o Movimento ou prejudicar o seu grupo exige coragem, pois nos obriga a dar a cara a tapa. Mas o custo coletivo de permitir que ataques sistemáticos à reputação continuem tão longa e amplamente como temos permitido é enorme. Já perdemos algumas das mentes mais criativas e das mais dedicadas ativistas do Movimento. E o mais importante: temos desencorajado muitas feministas a se sobressaírem, pelo medo de que façam a caveira delas. Não fornecemos um ambiente seguro para que todas possam desenvolver seu potencial individual, ou onde reunamos forças para as batalhas contra as instituições machistas que devemos travar cotidianamente. Um movimento que antes extravasava energia, entusiasmo e criatividade agora se embaraça em questões de sobrevivência básica – a sobrevivência contra o outro. Não é hora de pararmos de olhar para os inimigos internos e começarmos a atacar o inimigo real lá fora?


A autora gostaria de agradecer a Linda, Maxine e Beverly por suas úteis sugestões na revisão deste artigo.


Joreen


O artigo foi ilustrado com algumas das Pinturas Negras de Francisco de Goya; elas não constam no original e são de responsabilidade do Passa Palavra.


NOTAS


(*) Artigo escrito por Jo Freeman, militante feminista estadunidense e autora do clássico A Tirania das Organizações sem Estrutura, sob o pseudônimo Joreen. Traduzido pelo Passa Palavra a partir do original em inglês, disponível no site da autora.


[1] Trashing é um termo coloquial da língua inglesa que significa “destruir”, “detonar”, “assassinar a reputação”, “atacar a reputação” ou “espancar moralmente” uma pessoa. Coloquialmente, poderia ser traduzido como um caso extremo de “fazer a caveira” ou “queimar o filme” de alguém. Daqui em diante, a tradução verteu “trashing” usando estas várias formas, de acordo com o contexto.

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