PICICA: "Ao filmar o genial Antônio Nóbrega, Walter Carvalho extrapola o
documentário para captar, em tom de fábula, atualidade rebelde do lúdico"
O Brasil pós-Trabalho de Brincante
Ao filmar o genial Antônio Nóbrega, Walter Carvalho extrapola o documentário para captar, em tom de fábula, atualidade rebelde do lúdico
Por José Geraldo Couto
Um dos mais lamentáveis subprodutos da polarização exacerbada das
últimas eleições no Brasil foi o reavivamento de um odioso e burro
preconceito contra o Nordeste e seu povo. Brincante, de Walter
Carvalho, é o melhor antídoto a essa estupidez. Pois boa parte da
riqueza e diversidade da cultura nordestina encontra-se ali, condensada e
catalisada na figura de um artista ímpar, o músico, dançarino,
coreógrafo, cantor, compositor, ator e malabarista pernambucano Antônio
Nóbrega.
Não se trata propriamente de um documentário, no sentido convencional do termo, mas de uma viagem poética pelo universo de Nóbrega, tendo como eixo a trajetória de seu personagem mais emblemático, o picaresco Tonheta.
A narrativa, heterogênea e episódica, acompanha peripécias de Tonheta – quase sempre contracenando com Rosane Almeida, parceira artística e amorosa de Nóbrega – e, paralelamente, o deslocamento geográfico do casal, dos confins do sertão até a grande metrópole, São Paulo.
Fábula e documento
O tom de fábula, em que a linguagem dramatúrgica e visual é a do circo, ou antes a do tradicional teatro de mamulengo, alterna-se com o registro mais propriamente documental de ensaios e apresentações de rua dos espetáculos de Nóbrega. São vasos comunicantes, que se completam e se transfundem.
É nas ruas de São Paulo que o filme, a meu ver, ganha seu pleno sentido, diz a que veio, marca uma posição estética e política. Ao invadir com sua trupe lugares como o Minhocão, o vão livre do Masp, vagões e plataformas do metrô, o parque Trianon ou os fervilhantes calçadões do centro velho, Nóbrega efetua uma ressignificação dos espaços, fazendo imperar por um momento no reino do trabalho e do automóvel o homo ludens. (Não por acaso, o livro de Johan Huizinga com esse título aparece brevemente nas mãos do artista.)
Pois não se trata de “preservar manifestações folclóricas” como se fossem peças de museu ou de turismo, mas de captar sua potência e infundir sua vitalidade no presente e no futuro. Para isso é preciso criar, transformar, dialogar com outras referências. Com Nóbrega e seus parceiros-discípulos, o frevo, o maracatu, o samba de roda, a capoeira e o forró aparecem transfigurados e estilizados como dança moderna e universal. A raiz em comunicação com o cosmo, o regional com o planetário.
Contraste e estranhamento
Senhores absolutos do enquadramento e da luz, Walter Carvalho e seu diretor de fotografia Jacques Cheuiche usam sua arte para potencializar a arte de Antônio Nóbrega, sem sobrepor-se a ela, sem “perfumar a flor”, como diria João Cabral de Melo Neto. O mesmo se pode dizer da cenografia e dos figurinos.
As cores exuberantes, o forte contraste, a luz noturna irreal das cenas de Tonheta estão em perfeito acordo com o tom fabular da narrativa, bem como, no outro extremo, o monocromatismo da extraordinária sequência de dança em que homens nascem dramaticamente da terra sob os acordes pungentes da Bachiana nº 4 de Villa-Lobos. Se a arquitetura niemeyeriana do Auditório Ibirapuera é abstrata, asséptica e bicromática (branca e vermelha), os dançarinos que a invadem vestem-se com roupas prosaicas e cotidianas de texturas e cores diversas. Há sempre um elemento de contraste e estranhamento, uma faísca de inquietação.
Num filme repleto de momentos luminosos, em que a decupagem e a montagem realçam a vibração poética de Nóbrega, talvez o mais antológico e significativo seja aquele em que o artista, caminhando e dançando na contramão de um mar de gente numa rua do centro paulistano, canta os versos de sua canção “Chegança”, em que um índio, ao ser surpreendido em sua rede pelos homens armados de uma esquadra portuguesa, levanta-se de borduna na mão e diz: “O Brasil vai começar”. Está começando até agora.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Não se trata propriamente de um documentário, no sentido convencional do termo, mas de uma viagem poética pelo universo de Nóbrega, tendo como eixo a trajetória de seu personagem mais emblemático, o picaresco Tonheta.
A narrativa, heterogênea e episódica, acompanha peripécias de Tonheta – quase sempre contracenando com Rosane Almeida, parceira artística e amorosa de Nóbrega – e, paralelamente, o deslocamento geográfico do casal, dos confins do sertão até a grande metrópole, São Paulo.
Fábula e documento
O tom de fábula, em que a linguagem dramatúrgica e visual é a do circo, ou antes a do tradicional teatro de mamulengo, alterna-se com o registro mais propriamente documental de ensaios e apresentações de rua dos espetáculos de Nóbrega. São vasos comunicantes, que se completam e se transfundem.
É nas ruas de São Paulo que o filme, a meu ver, ganha seu pleno sentido, diz a que veio, marca uma posição estética e política. Ao invadir com sua trupe lugares como o Minhocão, o vão livre do Masp, vagões e plataformas do metrô, o parque Trianon ou os fervilhantes calçadões do centro velho, Nóbrega efetua uma ressignificação dos espaços, fazendo imperar por um momento no reino do trabalho e do automóvel o homo ludens. (Não por acaso, o livro de Johan Huizinga com esse título aparece brevemente nas mãos do artista.)
Pois não se trata de “preservar manifestações folclóricas” como se fossem peças de museu ou de turismo, mas de captar sua potência e infundir sua vitalidade no presente e no futuro. Para isso é preciso criar, transformar, dialogar com outras referências. Com Nóbrega e seus parceiros-discípulos, o frevo, o maracatu, o samba de roda, a capoeira e o forró aparecem transfigurados e estilizados como dança moderna e universal. A raiz em comunicação com o cosmo, o regional com o planetário.
Contraste e estranhamento
Senhores absolutos do enquadramento e da luz, Walter Carvalho e seu diretor de fotografia Jacques Cheuiche usam sua arte para potencializar a arte de Antônio Nóbrega, sem sobrepor-se a ela, sem “perfumar a flor”, como diria João Cabral de Melo Neto. O mesmo se pode dizer da cenografia e dos figurinos.
As cores exuberantes, o forte contraste, a luz noturna irreal das cenas de Tonheta estão em perfeito acordo com o tom fabular da narrativa, bem como, no outro extremo, o monocromatismo da extraordinária sequência de dança em que homens nascem dramaticamente da terra sob os acordes pungentes da Bachiana nº 4 de Villa-Lobos. Se a arquitetura niemeyeriana do Auditório Ibirapuera é abstrata, asséptica e bicromática (branca e vermelha), os dançarinos que a invadem vestem-se com roupas prosaicas e cotidianas de texturas e cores diversas. Há sempre um elemento de contraste e estranhamento, uma faísca de inquietação.
Num filme repleto de momentos luminosos, em que a decupagem e a montagem realçam a vibração poética de Nóbrega, talvez o mais antológico e significativo seja aquele em que o artista, caminhando e dançando na contramão de um mar de gente numa rua do centro paulistano, canta os versos de sua canção “Chegança”, em que um índio, ao ser surpreendido em sua rede pelos homens armados de uma esquadra portuguesa, levanta-se de borduna na mão e diz: “O Brasil vai começar”. Está começando até agora.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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