PICICA: "O discurso do capitalista se
inscreve na política transformando o eleitor em súdito (escravo). Por que o
significante cidadania desapareceu da linguagem política do século XXI? A
dialética senhor/ escravo no modo de produção capitalista deixa de ter uma
interpretação economicista, quando ela é lida pela sua tradução na política.
Tal dialética perde também sua canga idealista – uma dialética somente das
formas de consciência – para se transformar em uma dialética materialista da
política. O ponto de partida é o S1 (capital) no lugar da verdade. No discurso
do capitalista, o Urstaat desaparece
como aparelho de captura do excedente, vindo o capital a ocupar tal lugar. O Capital de Marx concebe tal fenômeno
no capitalismo liberal do século XIX. No século XX, o capitalismo monopolista
de Estado reintroduz o Estado como aparelho de captura da mais-valia. A crise
do capitalismo monopolista de Estado permitiu ao globalismo neoliberal se
constituir como uma vontade de abolir o Estado como aparelho de captura da
mais-valia. Tal capitalismo acreditou na possibilidade definitiva da travessia
do fantasma do Urstaat. Trata-se de
uma época na qual os intelectuais passaram a elaborar também sobre a
possibilidade do fim do capitalismo (Altvater: 218). O capital quer abolir o
Estado e os marxistas querem abolir o capitalismo pelo imaginário. A cultura
política do dinheiro sonha com a utopia do fim do Estado e o marxismo
economicista com o fim do capitalismo sem necessidade de uma revolução social.
Trata-se do marxismo como cultura política totalitária em uma era na qual a luta de
classes não ocupa mais o centro da política mundial. A classe operária
tornou-se escrava real do capital! Trata-se da paz do discurso do mestre moderno
(discurso do capitalista) que sustenta a ideia de escravidão no século XXI. O
aparelho de Estado psíquico do discurso do capitalista articula o corpo do
escravo (população) como perinde ac
cadaver, tal como um cadáver."
LEITURA DA HISTÓRIA POLÍTICA UNIVERSAL
“Há certas maneiras de usar categorias tais como
o inconsciente, a pulsão, a relação pré-edipiana, a defesa, que consistem em
não tirar delas nenhuma das consequências autênticas que elas comportam, e em
considerar que é um negócio que concerne aos outros, mas que não toca no fundo
de nossas relações com o mundo” (Lacan. As psicoses: 83)
O ponto de partida deste texto é o
estabelecimento da contraciência lacaniana da política. Tal empreitada só é
possível através de uma leitura lacaniana da metapsicologia freudiana. No Mais além do princípio do prazer, Freud
escreveu:
“Levando esse curso em conta na consideração dos processos mentais
que constituem o tema do nosso estudo, introduzimos um ponto de vista
“econômico” em nosso trabalho, e, se, ao descrever esses processos,
tentamos
calcular esse fator “econômico” além dos “topográficos e “dinâmicos”,
estaremos, penso eu, fornecendo deles a mais completa descrição que
merece ser
distinguida pelo nome de ‘metapsicologia” (Freud. v. XVIII: 17). Como
ponto de
partida, o lugar do mito na contraciência lacaniana da política se
constitui
pela tradução da metafísica em metapsicologia. Tal leitura começa no fim
da
obra de Lacan centrada na teoria dos discursos. Esta inaugura a
possibilidade
efetiva do campo lacaniano da política para além da psicologia do
indivíduo e
da psicologia de grupo. É necessário ir além do conceito de
metapsicologia de
Freud? Em Freud, o mito é um artefato simbólico através do qual homens,
mulheres
e crianças se relacionam na sua existência concreta com o campo das
pulsões traduzido como desejos (Freud. XIII: 106; Cassirer. 1976: 52). O
mito é uma
criação inconsciente (Cassirer. 1973: 75). Como a pulsão é um ser
mitológico,
esbarra-se na Kundaline (a serpente que morde o próprio rabo), um
símbolo
arquetípico da cultura política sânscrita. O mito da fusão do sujeito
com das Ding é pura mitologia freudiana? A
mitologia não deriva de um desejo dos indivíduos no sentido de se identificarem
com a vida da comunidade e com a vida da natureza? Esse desejo não é satisfeito
pelos ritos religiosos? Aqui os indivíduos não se fundem em um todo homogêneo?
(Cassirer. 1976: 54). O desejo de se fundir com o Urstaat não é o fantasma-mestre da história da espécie humana,
fantasma esconjurado pela sociedade primitiva? A propósito, “A descoberta da
língua e da literatura sanscríticas constitui um acontecimento decisivo no
desenvolvimento da nossa consciência histórica e na evolução de todas as
ciências culturais. Em sua influência e importância pode ser comparada à grande
revolução intelectual provocada através do sistema copernicano, no campo da
Ciência Natural” (Cassirer. 1976: 33). O mito não é um simples artefato. A ferramenta ou meio de ação adquire
uma existência independente, ela é dotada de forças próprias. Em vez de ser
dominada pela vontade dos homens, ela torna-se um deus ou um demônio que
submete o homem ao seu poder. O homem assujeita-se a ela, devendo honrá-la em
um culto religioso (Cassirer. 1973: 76). Assim, o artefato não passa jamais por
um simples produto, fruto de uma reflexão e de um trabalho livres, mas por um
dom vindo de cima. Sua origem não remonta ao próprio homem, mas a um “saber”,
seja ele divino, seja animal. Este remeter todos os bens culturais ao “saber” é
tão generalizado que é possível encontrar na ideia de saber o nó da origem da
ideia de deus (Idem: 77). Sobre a passagem do mito para a estrutura, Lacan concebe o mito freudiano (Pai
real) como enunciado do impossível. Trata-se do animal despótico que goza de
todas as mulheres. O pai real é um efeito da linguagem, de um saber
(estrutura). O único pai mais real que o próprio real é o espermatozóide. No
mundo da vida, o pai real é o agente castrador, ou seja, ele é introduzido por
um outro mito: o mito do Édipo (Lacan. S. 17: 116, 117). No discurso do
analista, o analista é o pai real do aparelho psíquico freudiano. Ele é o a
agente da castração que faz o analisando (“paciente”) retomar a tragédia
edipiana. Trata-se do analista como efeito do inconsciente estruturado como
linguagem, ou seja, como simulacro de linguagem. O analista não está no lugar
da razão que governa a alma do “paciente” (Platão). Governar, analisar, educar são os impossíveis
freudianos (Freud. XXIII: 282). Devemos acrescentar aí o mito. Se o discurso do
mestre é constituído também, em silêncio, pela cultura política, o analista
está assujeitado à cultura política laica freudiana: “E como se pode pensar que
é por uma devoção ao nome de Freud que os analistas são o que são? Eles não
podem se desvencilhar dos significantes-mestres de Freud, só isso. Não é tanto
por Freud que eles se atêm a apenas um certo número de significantes – o
inconsciente, a sedução, o traumatismo, a fantasia, o eu, o isso, (a pulsão de morte) e tudo o mais que
quiserem – eles não podem, de modo algum sair dessa ordem (Lacan. S. 17: 122).
Estes significantes articulam mito e psicanálise na cultura política laica freudiana.
O saber é uma categoria central na teoria dos discursos. A ideia de instinto
como saber é quase universal. Assim, a pulsão de morte é do reino do saber. O saber
é o gozo do Outro (Lacan. S. 17: 14, 12) no discurso do mestre. Na passagem do
mito para a estrutura, a pulsão de morte aparece como um saber mítico da
cultura política freudiana? Esta seria a cultura universal da história da
espécie humana a partir da emersão do discurso do mestre (Urstaat) na civilização arcaica? A desarticulação deste saber (pulsão
de morte) por uma cultura pós-freudiana não poderia significar um novo começo
para a história da espécie humana?
A metáfora é uma condição da formação da língua e dos conceitos míticos. Ela enreda um liame espiritual
entre linguagem e mito. Na origem, há uma correlação entre linguagem e mito.
Depois, eles se desacoplam progressivamente a título de membros independentes.
São ramos diferentes de uma única e mesma pulsão ordenados em forma simbólica
(Cassirer. 1973: 106, 110). Assim como os conceitos linguísticos gerais – pelo
processo metafórico - se remetem à ordem
mítica, a linguagem política guarda traços míticos em sua estrutura. Isso é
mais acentuado na estrutura da cultura política do que na política in nuce. Mas pela metáfora, a tradição não se inscreve na política moderna? As formas (artefatos) simbólicas – linguagem,
política, arte, cultura política, moral, direito, Estado, ciência etc. – tem uma
terra comum: o mito. O desenvolvimento das formas simbólicas leva a uma
separação entre elas e a ordem mitológica (Cassirer. 1973: 59, 61),
principalmente no caso da ciência (Funkenstein: 100-107; 412-413). A linguagem
não pertence exclusivamente ao domínio do mito; desde o início, uma outra força
age sobre ela: o logos. Como a
linguagem, a arte em seu início, se revela estreitamente mesclada ao mito.
Mito, linguagem e arte formam primeiro uma unidade concreta ainda indivisa, que
não se separam senão progressivamente em uma tríade de modos de figuração
espirituais independentes (Cassirer. 1973: 120-121). A política in nuce adquire uma autonomia absoluta
em relação ao mito? De fato, ela adquire uma autonomia relativa, mas continua
sendo determinada em última instância pela lógica do mito. A relação da pulsão
de morte com o Urstaat e a máquina de
guerra freudiana é um exemplo cabal de tal lógica. Mas a pulsão de morte, a máquina de guerra
freudiana e o Urstaat não são
conceitos míticos, são conceitos lógicos! (Cassirer. 1973: 48-50).
No Seminário 16, Lacan diz que o
inconsciente é o inconsciente do discurso (Lacan. S. 16: 68). No Televisão, ele enuncia que é só no
discurso analítico que ex-siste o
inconsciente freudiano: “Interpolo aqui uma observação. Não baseio essa ideia
de discurso na ex-sistência do
inconsciente. É o inconsciente que situo a partir dela – por só ex-sistir a um discurso" (Lacan. 2003:
517). Trata-se da sociedade, pois “O discurso que digo analítico é o laço
social determinado pela prática da psicanálise” (Idem: 517). Esta concepção
cristalina do inconsciente freudiano nos remete para a ideia de que o aparelho
psíquico freudiano só existe na prática analítica (Nasio: 122-123). Ou seja, o
aparelho psíquico freudiano – isso, eu, supereu – é o aparelho do discurso do
analista? Em Freud, isso é claro?
Para Freud, a terapia analítica
tem um limite concreto. Ela só é possível de ser exercida sobre a neurose: “A
experiência nos ensinou que a terapia psicanalítica – a libertação de alguém de
seus sintomas, inibições e anormalidades de caráter neuróticos – é um assunto
que consome tempo” (Freud: v. XXIII: 247). Tal enunciado fica claro, quando ele
exclui a possibilidade da prática analítica beneficiar o psicótico: “Como é bem
sabido, a situação analítica consiste em nos aliarmos com o ego da pessoa em
tratamento, a fim de submeter partes do seu id que não estão controladas, o que
equivale a dizer, incluí-las na síntese do ego. O fato de uma cooperação desse
tipo habitualmente fracassar no caso dos psicóticos, nos fornece uma primeira
base sólida para nosso julgamento” (Idem: 267). “De fato”, a psicose é um ponto
cego no pensamento de Freud que o levou a enunciar coisas absurdas sobre os
psicóticos, como veremos mais tarde! A
cultura psicanalítica totalitária tem como ponto de partida a visão freudiana
vulgar da psicose! Fazendo o laço Freud com Lacan, só o
neurótico poderia ocupar um lugar no funcionamento do discurso do analista. Este
põe e repõe o neurótico no caminho da “vida normal” pela articulação da ética
ao discurso do analista. Trata-se da ética de Aristóteles associada ao
Bem-dizer. A pesar deste não dizer onde está o Bem: “Pois, que outra coisa
seria a famosa tensão menor com que Freud articula o prazer senão a ética de
Aristóteles? (Lacan. 2003: 522). Sendo a felicidade o mais belo e mais agradável
dos bens, Aristóteles defini a felicidade como uma forma de viver bem e
conduzir-se bem (Aristóteles: 27, 26). O belo e o agradável só podem produzir
prazer. O princípio do prazer é a lei do bem que é o wohl ou bem estar (Lacan. 1966: 766). Então a ética da cidade grega faz pendant com
a ética da cidade freudiana para os neuróticos. Em Freud, somente os neuróticos
tem direito à cidadania através de sua inserção no discurso do analista? Para
os neuróticos, “A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior
maturidade e força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas
são demolidas, ao passo que outras são identificadas, mas construídas de novo,
a partir de material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é
bastante diferente do das anteriores; podemos confiar em que cederão facilmente
ante uma maré ascendente da força instintual. Dessa maneira, a façanha real da
terapia analítica seria a subsequente correção do processo original de
repressão, correção que põe fim à dominância do fator quantitativo” (Freud. v.
XXIII: 260). O fator quantitativo refere-se ao poder irresistível da força das
pulsões. Isso torna possível a ética da cidade para o neurótico. Nas próprias
palavras de Freud: “No curso de poucos anos, foi possível devolver-lhe grande
parte de sua independência, despertar seu interesse pela vida e ajustar suas
relações com as pessoas que lhe eram mais importantes” (Idem: 248). É uma versão
minimalista da ética da cidade de Aristóteles. Esta é a ética da cultura política da polis.
Há uma interrogação que assola o
campo freudiano. Como definir o aparelho psíquico freudiano? A existência dele
não sustenta o significante homo clausus e
a psicologia do indivíduo? A teoria dos discursos não abole o homo clausus e a psicologia do
indivíduo? A teoria dos discursos tem como ponto de partida a sociedade, a
sociologia. Entretanto para Freud, o aparelho psíquico é uma construção
empírica, uma construção na biografia privada onde intervém a cultura com o
estabelecimento do simbólico. Trata-se da passagem da soberania do animal
despótico para a soberania da comunidade dos irmãos na horda primitiva. Totem e
Tabu! A antropologia freudiana sustenta a soberania do significante cultura no
campo freudiano. Na contraciência lacaniana da política, o discurso assume a
soberania sem eliminar o papel importante da cultura na superfície política no
mundo da vida. Mas trata-se de cultura política. Para Freud, o aparelho
psíquico é constituído na infância sem a interferência de qualquer discurso. A
criança vive a relação cultural através dos pais e outros sujeitos. O
significante simbólico já é uma complicação nesta montagem empírica do aparelho
psíquico. Quando Freud recorre ao mito (Édipo), não se trata de uma metáfora,
como veremos mais adiante. O progresso do campo freudiano faz a ponte entre o
empírico e o discurso pela ideia de que o mito é uma parte indestrutível do
campo da ciência. Como isso não pode ser verdade, a psicanálise toma a via da
contraciência. Segundo Freud, “De todas as errôneas e supersticiosas crenças da
humanidade que foram supostamente superadas não existe uma só cujos resíduos
não perduram hoje entre nós, nos estratos inferiores dos povos civilizados ou
mesmo nos mais elevados estratos da sociedade cultural. O que um dia veio à
vida, aferra-se tenazmente à existência. Fica-se às vezes inclinado a duvidar
se os dragões dos dias primevos estão realmente extintos” Freud; v. XXIII:
261). No seu Por que a guerra?, em
1932, ele escreve a Einstein: “Talvez ao senhor possa parecer serem nossas
teorias uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável.
Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como
esta? Não se pode dizer o mesmo atualmente, a respeito da sua física?” (Freud.
v. XXII: 254). Sejamos claros: a física é uma ciência e a psicanálise (assim
como a etnologia) é uma contraciência. Mesmo apoiado em topologia, o campo
lacaniano da política só pode se constituir como contraciência. A topologia
lacaniana torna possível a impossibilidade de uma matematização da política.
Mas a topologia lacaniana é e não é uma topologia.
A propósito, o mito é
constitutivo do aparelho psíquico freudiano. Mas isso já não é metapsicologia? No Complexo de Édipo, o mito inscreve a
criança em uma relação trágica parental. Aí a estética constitui a criança como
trágico. A relação anterior ao Édipo tem a Mãe (das Ding) no centro da vida da criança. Mas a relação é também
constituída esteticamente. O grotesco e o patético definem a relação da criança
com a Mãe. Na teoria mitológica das pulsões (Freud. v. XXII: 255), a pulsão de
morte é mitologia in nuce. Ela habita
um espaço abstrato não constituído pela estética. Isso é importante para
entender a relação da pulsão de morte com o discurso universal da história da
espécie humana: o discurso do mestre. No entanto, é preciso considerar que não
podemos esquecer a lição de Tucídides sobre a historiografia em sua relação com
a mitologia: “À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém erraria
se mantivesse o ponto de vista de que os fatos
na antiguidade foram muito próximos de como os descrevi, não dando muito
crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e
amplificando os seus temas, e de outro considerando que os logógrafos compuseram
as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a
verdade, uma vez que suas estórias não podem ser verificadas, e eles em sua
maioria enveredaram , com o passar do tempo, para a região da fábula, perdendo,
assim, a credibilidade” (Tucídides: livro I, cap. 21). Tucídides estava
tratando com artefatos (fatos discursivos), não com fatos. Mas isso não
invalida a ideia dele de que o uso do método histórico consegue escapar do
domínio da fábula. Hoje graças à Freud e à etnologia, sabemos que é preciso
integrar o mito à política como artefato simbólico tratado pela contraciência
lacaniana da política.
II
Quando Lacan usou a dialética do
senhor/escravo hegeliana para uma leitura do desejo (Dor: 166-190), ele
introduziu o discurso do mestre para pensar o obsessivo e a histérica. O
obsessivo refere-se ao modelo do senhor. Mas assim como o obsessivo não se toma
pelo senhor, a histérica se introduz no discurso do mestre por não se tomar por
mulher (Lacan. S. 16: 259-260, 370-371). A dialética lacaniana senhor/escravo é
o meio interpretativo através do qual o obsessivo e a histérica são
pensados. Por exemplo, “A aposta da
partida é o gozo do homem, a quem a mulher se prende, se escraviza, como faz o
senhor com o escravo” (Idem. 372). Mas também é possível introduzir o discurso
do mestre para pensar a relação da criança com a Mãe (das Ding). A criança começa sua vida articulada pelo discurso do
mestre que não a abandona em sua vida adulta, quando ela ex-siste como um tipo existencial - histérico, obsessivo etc. Tal
discurso sustenta a repetição do processo patológico que o discurso do analista
quer evitar (Freud. XXIII: 251). Este vai além, pois ele é um modo de evitar
que o supereu atormente o eu por qualquer motivo, envolvendo a irrupção da
força da pulsão de morte. Ele também atua no sentido de conter a pulsão de
morte como uma força destrutiva na relação do eu com o outro, ou Outro.
O modo de evitar os fenômenos
supracitados implica a criação de um aparelho psíquico virtual pelo
funcionamento do discurso do analista que continua a existir na biografia
privada – do indivíduo beneficiado – depois do encerramento da análise: “Nos
anos que se seguiram ao restabelecimento, ela foi sistematicamente
desafortunada. Houve desventuras em sua família, perdas financeiras e, à medida
que ficava mais velha, via desvanecer-se toda esperança de felicidade no amor e
casamento. Mas a ex-inválida resistiu a tudo isso valentemente e constituiu um
apoio para a família, nos tempos difíceis” (Freud. v. XXIII: 254). Há o espaço
abstrato criado pelo discurso do mestre funcionando na biografia privada pelo
aparelho psíquico virtual. Isso permite no mundo da vida um desacoplamento
entre a biografia individual e a Fortuna. A Fortuna é uma forma mitológica integrada
ao inconsciente freudiano do “paciente” por um processo de simbolização, mais do
que pela razão reflexiva. Isso marca a diferença entre o sujeito da antiguidade
grega (Platão) e o sujeito do discurso do analista, o sujeito freudiano. O
sujeito de Platão deve através da razão reflexiva buscar a harmonia com as
outras partes da alma: a pulsional e a afetiva (Badiou: 156-157). O sujeito
freudiano deve buscar o bem viver pela integração ao inconsciente – via
simbolização – daquilo que inclusive o atinja desafortunadamente. Nisso, o
papel do eu é capital. Não existe o eu normal. Isso é uma ficção. Todo eu
neurótico se aproxima, na biografia individual, do eu do psicótico (Freud.
Idem: 268) que é avesso ao discurso do analista. Este tem como tarefa construir
um eu normal – uma ficção ideal. “Mas um eu normal dessa espécie é, como a
normalidade em geral, uma ficção ideal. O eu anormal, inútil para nossos fins,
infelizmente não é ficção. Na verdade, toda pessoa normal é apenas normal na
média. Seu eu aproxima-se do eu psicótico num lugar ou noutro, e em maior ou
menor extensão, e o grau do seu afastamento de determinada extremidade da série
e de sua proximidade da outra, nos fornecerá uma medida provisória daquilo que
indefinidamente denominamos de “alteração do eu” (Freud. v. XXIII: 268) O
problema latente na análise de Freud seria o seguinte: o eu psicótico (“os
psicóticos seriam as máquinas de fala” (Lacan. S. 3: 52)) - é o eu fáctico
capaz de conduzir a máquina de guerra freudiana? Os seriados policiais da
televisão americana operam com esta ideia. O eu do psicótico é mais favorável
ao gozo da violência contra o outro, ou o Outro. Isso é o real para Freud! Ele é
capaz de conduzir, inclusive os neuróticos, para a situação estrutural de
máquina de guerra freudiana que dorme em qualquer homem: “É porque o homem
encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa
paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é,
contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose
coletiva” (Freud. v. XXII: 243) - como ou no caso da guerra entre nações, ou da
guerra civil molecular, ou, ainda, no caso do estado de guerra freudiano. Homo homini lupus! Freud é o último
grande pensador do Romantismo alemão e, ao mesmo tempo, comunga com a cultura
política realista criada, literariamente, por Plautus na antiguidade romana. A máquina de guerra freudiana pode ser
encontrada como um fragmento da vida primitiva dos povos indo-europeus. As
Antiguidades germânica e escandinava apresentam um irmão do homo sacer no bandido e no fora-da-lei: wargus, wargr, o lobo, e, no sentido
religioso, o lobo sagrado, vargr y verum
(Agamben: 119) O homo sacer é tratado
como uma máquina de guerra freudiana, algo que está além do direito – ou do
discurso do analista – algo fáctico só possível de existir na superfície onde
reina o discurso do mestre? O antigo direito germânico articulava-se sobre o
conceito de paz. Trata-se da paz do discurso do mestre que sustenta a ideia de
escravidão. O aparelho de Estado psíquico do discurso do mestre articula o
corpo do escravo como perinde ac cadaver, tal como um cadáver. Este
significante designava a maneira como, pelas Constituições de santo Inácio de
Loyola, um jesuíta deveria obedecer a seus superiores (Lacan. S. 16: 370). De
fato, tratava-se de instaurar a paz na Companhia de Jesus. Os jesuítas viviam
em um estado de rebelião permanente na Companhia. O Brasil colonial viveu tal
estado de rebelião permanente principalmente na era pombalina. “No geral em
1763. Foi repetida em 1789. No regime pombalino houve uma mediada de ordem
geral em 1763. Foi repetida em 1789. O resultado não podia deixar de ser fatal.
A disciplina, ante os obstáculos à ação das autoridades centrais, entrou em
grave crise” (Holanda: 75). O notável historiador brasileiro Francisco Falcon
transformou em nota de rodapé a expulsão dos jesuítas do território brasileiro
pelo Marquês de Pombal (Falcon: 221, nota 45). O homo sacer está excluído da comunidade como malfeitor, que
tornava-se por isto friedlos, sem
paz, e, como tal, podia ser morto por qualquer um sem que se cometesse
homicídio. Pombal tratou os jesuítas como equivalentes ao homo sacer? Este remete para a ideia do bando – como máquina de
guerra freudiana – que aparece no modo de produção medieval. O integrante do
bando medieval podia ser morto ou considerado já morto (Agamben: 110).
A máquina de guerra freudiana é
vista como um ser mitológico, pois está fora da articulação da sociedade pelo
Direito. Ela é, nesse sentido, homóloga ao Urstaat,
e ao homo sacer? O homo sacer é uma entidade mitológica.
Mas o Urstaat é a passagem do mito
para a estrutura. Ele é o déspota real (Marx. 1971: 435): Ele é o funcionamento
do discurso do mestre divino, suposto divino pela população (Idem: 438). Há um
operador estrutural divino em tal discurso. O suposto é o motor do poder sem
limite do mestre e do poder de usufruir do sobretrabalho e do mais-gozar
(riqueza). O suposto é a alavanca do discurso do mestre divino. Ele suspende a
barreira (Δ)no matema do fantasma no discurso do mestre, transformando o ($ Δ a) em ($◊ a).
Isso define a existência do fantasma do Urstaat no discurso do
mestre e o gozo do mestre não-castrado. O paradoxo se instaura pela
relação
entre o discurso do mestre e a religião. A máquina de guerra freudiana
opera
por algo equivalente a um operador estrutural divino. Ela também é a
passagem
do mito para a estrutura, conservando um determinado caráter mitológico.
É
preciso considerar a lição de Gadamer de que a participação em uma
herança
cultural é uma condição de possibilidade de todo pensamento, incluindo a
reflexão crítica. A compreensão está vinculada com a interpretação com
uma
articulação na linguagem do intérprete de sentidos constituídos em um
outro
universo de discurso (Gadamer: 611). A
contraciência lacaniana é a junção de Freud (Romantismo alemão) e de
Lacan (Ilustração
europeia). Há um hiato entre Freud e Lacan. A contraciência é o
intérprete gadameriano, ou seja, aquele que serve de intermediário no
diálogo entre sujeitos
que falam línguas diferentes. A diferença ente Freud e Lacan abre uma
clareira
a partir da qual é possível articular os problemas da contraciência
lacaniana
da política. A clareira é a base geosimbólica para o reconhecimento e o
conhecimento da floresta. O significado de um texto é, em princípio,
incompleto, aberto a interpretações desde perspectivas futuras. Cada
época tem
que entender a tradição escrita a seu modo. “Também aquilo que vem ao
encontro
de nosso conhecimento histórico a partir da tradição ou como tradição –
histórica ou filologicamente -, o significado de um evento ou o sentido
de um
texto, não é um objeto em si, que deva ser simplesmente constatado.
Também
a consciência histórica incluía, na verdade, a mediação entre o passado e
presente.
Ao reconhecer o caráter da linguagem como médium universal dessa
mediação”
(Gadamer: 613). Lacan afirma que só ex-sistem
discursos (Lacan. 2003: 539) e que o fato é, na verdade, artefato (Lacan: S.
18: 12-13). Para Gadamer, “o ser que pode
ser compreendido é a linguagem” (Gadamer: 612). A interpretação do passado
pressupõe uma interpretação do futuro como um artefato na causalidade da
produção do contemporâneo. Em relação à religião, como não temos o monopólio
da verdade ou da bondade, temos de nos manter abertos às crenças e valores dos
outros. Temos que estar dispostos a considerar a religião como algo mais que o ópio do povo. O materialismo dialético
só progredirá quando integrar isso a seu campo de reflexão. Um marxismo
não-totalitário implica a simbolização de que a religião não é o ópio do povo.
Isso não nega a existência, como acontecimento histórico do século XXI, da
contrarrevolução religiosa na política mundial.
É essencial uma releitura
da problemática da religião em Freud e Lacan. Em Lacan, deus é o Outro enquanto
real. Deus não é enganador. O que assegurava, na natureza, a não-mentira do
Outro como real são as coisas, na medida em que elas voltam sempre ao mesmo
lugar, ou seja, as esferas celestes, no regular retorno dos astros e dos
planetas. “A noção das esferas celestes como o que, no mundo, é incorruptível,
de uma essência outra, divina, habitou muitíssimo tempo o próprio pensamento
cristão, a tradição cristã medieval, que era herdeira desse pensamento antigo”
(Lacan, S. 3: 80). O poder da esfera divina é sublinhado nesta página
cristalina de Lacan. No entanto, o Deus simbólico é o Deus de Platão. Deus é perfeito
e só faz o Bem (Platon: 929). O cristianismo tem uma ideia de Deus semelhante à
de Platão. Ao contrário, o divino como grande Outro da civilização arcaica é
semelhante ao Diabo de Goethe:
Mefistófeles - Sou parcela do Além,
Força que cria o mal e também faz
o bem! (Goethe: 59).
Isso era o Urstaat para a sociedade da civilização arcaica. Tratava-se de um
poder diabólico, de um poder fáctico suposto como divino pela população: poder
artefático como “Real simbólico”. A propósito, a ideia de Deus - como uma
inteligência na Natureza, como nos animais, uma inteligência como causa da
ordem e da ordenação universal - é uma ideia de Anaxágoras. Mas ele atribuía
tal ideia a seu antecessor Hermotime de Clazomène (Aristote:35). Trata-se também
de um deus ex machina para a produção
do devir (Idem: 38). Cassirer escreve que para Xenófones existe um deus uno, o
maior entre os deuses e os homens, que nem na forma e no pensamento se
assemelha aos homens (Cassirer. 1976: 72). Mas somente em Platão, origina-se,
na antiguidade, finalmente, a ideia de um Deus bondoso que, portanto, só pode
fazer o Bem.
III
O Romantismo Alemão e a
contrarrevolução religiosa em escala mundial são a prova de que a razão reflexiva
já não pode conceber-se como absoluta; ela está enraizada em um complexo
contingente da tradição. Na década de 1940, Cassirer escreveu: “Talvez o mais
importante e a mais alarmante característica desse desenvolvimento do
pensamento político moderno tenha sido a aparição de um novo poder: o poder do
pensamento mítico. A preponderância do pensamento mítico sobre o pensamento
racional é óbvia em alguns dos nossos modernos sistemas políticos” (Cassirer.
1976: 19). O século XXI não está cada vez mais povoado por pensamentos e práxis
mitológicas, fazendo pendant com as estruturas? É difícil perceber o progresso
acelerado dos fundamentalismos religiosos, da cultura política totalitária
religiosa ou laica, da contrarrevolução religiosa na política mundial, da
máquina de guerra freudiana, da máquina de guerra jurídica heideggariana, do
estado de guerra freudiano, do povo-freudiano, do capitalismo oligárquico
mundial e da sombra cada vez mais presente do Urstaat
através do Estado despótico capitalista?
A produção do contemporâneo só
começa, quando o presente inicia uma interpretação global do passado. Isso
começa com a retomada da dialética Ilustração versus Romantismo do final do
século XVIII. A Ilustração era a soberania do logos sobre o mito. O Romantismo inverteu tal lógica. Na
contraciência lacaniana da política mito e logos
encontram-se em um equilíbrio de antagonismos. Isso não é a verdadeira
passagem do mito para a estrutura? Isso não põe ou repõe nenhum problema a
respeito do começo como, por exemplo, a lógica hegeliana conhece o problema do
começo da ciência (Gadamer: 609).
O campo freudiano tinha como
preocupação básica que seus “pacientes” encontrassem o caminho da cura, da
criatividade e da autorrealização. Na contraciência lacaniana da política,
trata-se de tornar inteligível a presença das máquinas de guerra: a máquina de
guerra freudiana, a máquina de guerra sadeana, a máquina de guerra jurídica
heideggeriana. Freud definiu a psicose e a perversão (Roudinesco: 585) pela
clivagem do eu (ichspaltung).
Trata-se da coexistência no cerne do eu de duas atitudes contraditórias.
Trata-se de uma clivagem ou spaltung
que consiste em rejeitar a realidade (renegação=Verleugnung) e que também consiste em aceitá-la (Freud. XIX: 182.
Freud. XXI: 180-183). Lacan estendeu a noção de clivagem à própria estrutura do
indivíduo em sua relação com outro. Para Lacan, a clivagem pode ser do eu mas
também do sujeito. Na teoria do discurso, é preciso pensar o sujeito humano
como duplamente dividido – uma primeira instância separa o eu imaginário do
sujeito do inconsciente, e uma segunda instância se inscreve no próprio
interior do sujeito do inconsciente para representar a divisão do sujeito
original (Roudinesco: 121). O homem é partes de si contra partes de si com a
possibilidade remota de integrar esta dialética ao eu clivado, partido. Isso
torna possível a existência da máquina de guerra freudiana a partir dos três
tipos existenciais: neurótico, psicótico, perverso. Na teoria kleiniana, a
perversão revela-se ligada a uma pulsão feroz de autodestruição e destruição
do objeto. Ela se torna a manifestação da pulsão de morte em estado bruto
(Roudinesco: 586). O eu perverso é a superfície onde, como agente, ele conduz a
realização da pulsão de morte in nuce.
Isso é a máquina de guerra sadiana. “Não é possível imaginar que esse sadismo
seja realmente um instinto (pulsão) de morte que, sob a influência da libido
narcísica, foi expulso do ego (eu) e, consequentemente, só surgiu em relação ao
objeto?” (Freud. v. XVIII: 74). Os
relatos no Os 120 dias de Sodoma ou a
escola da libertinagem podem ilustrar esta ideia sombria para o leitor:
45. Este mesmo enche todas as
aberturas de uma mulher de pólvora, ateia fogo, e todos os membros se partem e
se separam ao mesmo tempo (Sade: 354).
75. Aquele que gostava de furar a
bunda com alfinetes a apunhalava de leve todos os dias. Estanca-se o sangue,
mas não se faz curativo, e ela morre assim, lentamente.
75bis. Um fustigador serra todos
os membros suavemente, um após outro (Sade: 360)
Lacan fez da máxima seguinte de
Sade - “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e
exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho que me dê
gosto de nele saciar” - o avesso do bem em Kant (o princípio do prazer é a lei
do bem que é o wohl ou bem-estar) que
é objeto da lei moral (Lacan. 1966: 768-769). Lacan pretende mostrar que a
estrutura perversa se caracteriza pela vontade do sujeito de se transformar em
um objeto de gozo oferecido a Deus, - seja ridicularizando a lei, seja por um
desejo inconsciente de se anular no mal absoluto e na autoaniquilação
(Roudinesco: 586). O objetivo era retirar a perversão do campo das perversões
sexuais e abrir caminho para novas perspectivas terapêuticas. Tratava-se de
afirmar a possibilidade de cura e de garantir ao perverso o direito de exercer
a profissão psicanalítica. Então, o perverso tornou-se um possível sujeito a
marcar sua presença no discurso do analista, como analista e analisando.
O psicótico não se inscreve no
discurso do analista, como analisando: “Em outras palavras, o psicótico pode
usar a linguagem normalmente, mas falta a ele o fundo inconsciente que dá às
palavras que usamos sua ressonância libidinal, sua cor e seu peso específico.
Sem esse fundo, a interpretação psicanalítica é impotente, inoperante” (Zizek:
496). O psicótico efetivamente usa a linguagem como instrumento neutro
secundário - a linguagem como um sistema de signos artificial e secundário para
transferir a informação preexistente - que não diz respeito ao próprio ser de quem
fala. Uma visão mais consistente da psicose aparece através do personagem do
romance O Idiota. É possível considerar
o príncipe Míchkin como psicótico pois, ele vivia “naquela espécie de delírio
ambulatório em busca sabia lá de quê! (Dostoiévski: 256). Ou pelo fato de que
ele possuía um demônio (uma voz interior) que dizia que ele estava sendo
perseguido por Rogójin, e ele não sabia se isto era um fato ou um delírio (Idem:
260, 259). A clivagem do eu é apresentada – através da figura de Míchkin – ao
longo da narrativa. No entanto, O Idiota
só será problematizado como psicótico se transformado em um objeto da
contraciência lacaniana da política, pois se trata de uma biografia privada – a
de Míchkin – em uma situação na qual a cultura política, no mundo da vida da
Rússia, tem uma função vital na vida do personagem. Míchkin é realmente um
psicótico? Freud viu Dostoievski como uma possível máquina de guerra sadiana.
Ele era dotado de uma “disposição instintual inata e pervertida, que
inevitavelmente o marcava para ser um sadomasoquista ou um criminoso (...). Não
obstante, o equilíbrio de forças entre suas exigências instintuais e as
inibições que se lhes opunham (mais os métodos disponíveis de sublimação)
tornariam mesmo assim necessário classificar Dostoievski como sendo aquilo que
é denominado de ‘caráter instintual’. Contudo, a posição é obscurecida pela
presença simultânea da neurose (Freud. v. XXI: 207). “Caráter instintual”
significa o sujeito à mercê da pulsão de morte, assujeitado – como máquina de
guerra sadiana – à realização da pulsão de morte nos significantes ou objetos
(outro, Outro) que constituem a sociedade. Freud introduziu a cultura política
como uma força que modela a subjetividade do grande pensador russo - a cultura
política integrada ao aparelho de Estado psíquico -, que funcionou como
interdição à emergência da máquina de guerra sadiana (há uma possível confissão
de um ataque sexual a uma garotinha): “Tampouco o resultado final das batalhas
morais de Dostoievski foi muito glorioso. Depois das mais violentas lutas para
reconciliar as exigências instintuais do indivíduo com as reivindicações da
comunidade, veio a cair na posição retrógrada de submissão à autoridade
temporal e espiritual, de veneração pelo czar e pelo Deus cristão, e de um
estreito nacionalismo russo” (Idem: 205). Apesar disso tudo, o artista criador
escreveu o melhor romance do século XIX que tratou a psicose como um objeto
virtual, como um objeto da lógica do simulacro.
Na contraciência lacaniana da
política o enfoque recai em um outro aspecto. Se o desejo é o desejo do Outro,
os homens e mulheres tornam-se máquinas de guerra sadiana nessa busca do desejo
do Outro, na medida em que isso constitui o tirano
-, “Pode-se erigir em dever a máxima de contrariar o desejo do tirano, se o tirano for aquele que se arroga o poder de subjugar o desejo do
Outro” (Lacan: 1998: 796). Isso (o tirano) é a máquina de guerra sadiana, pois subjugar
o desejo do Outro significa um poder sem limite. O tirano é uma figura que
remonta ao Urstaat que é o poder sem
limite na civilização arcaica como aparelho de captura do excedente ou do
mais-de-gozar; o poder que subjuga o desejo do Outro. Trata-se do discurso do
mestre. A máquina de guerra sadiana funciona por uma clivagem do eu que é o
instrumento da realização da pulsão de morte. É a pulsão que encontra (ou não)
um objeto de satisfação na realidade (Dor: 182). A máquina de guerra sadiana
não articula o discurso do mestre à pulsão de morte? No entanto, isso não quer
dizer que a obra de Sade antecipou Freud, mas que ela operou um aplanamento que
teve de caminhar cem anos nas profundezas do gosto para que a via de Freud
fosse viável (Lacan. 1966: 765), como o último artefato do Romantismo
alemão.
IV
Desde a história da civilização
arcaica, a espécie humana vive sob o domínio do discurso do mestre. A partir
daí é possível falar em aparelho de Estado psíquico. O aparelho de Estado
psíquico é o aparelho psíquico do discurso do mestre que articula o Estado
arcaico (Urstaat). No discurso do
mestre, o fantasma está localizado na parte inferior do matema: ($ ◊ a). Lacan fala do rompimento da relação
entre o pequeno a (mais-gozar) e o $,
o S barrado do sujeito. Segundo Lacan, o ◊ [significante-corte separador e
reunidor do sujeito e do objeto (Nasio: 127)] não faz a junção entre o $ e o a no discurso do mestre. Há uma barreira
entre $ Δ a. Isso significa a
impossibilidade de travessia do fantasma do Urstaat
em tal discurso? A travessia só seria possível com o deslocamento para o
discurso do analista, onde “o pequeno a
ocupa o lugar do semblante, e é o sujeito que fica em frente a ele. Esse lugar
em que ele é interrogado, é aí que a fantasia deve assumir seu status, definido
pela própria parcela de impossibilidade que há na interrogação analítica”
(Lacan. S. 18: 27-28; S. 17: 101)). Veremos depois que a travessia é possível
no discurso do capitalista (discurso capitalista), na medida em que este discurso
abole o Urstaat. No discurso do
mestre, S1 é o Urstaat que - ao cair
para o lugar da verdade como $ - faz punção (◊), virtualmente, com a ($ ◊ a). Na realidade, há uma barreira (Δ) fática entre $ e a ($Δ a). “Essa fórmula, como definidora do discurso do mestre, tem seu
interesse por mostrar que ele é o único a tornar impossível essa articulação
que apontamos em outro lugar como a fantasia, na medida em que é a relação do a com a divisão do sujeito - $ ◊ a.
Em seu ponto de partida
fundamental, o discurso do mestre exclui a fantasia. E é isto exatamente o que
faz dele, em seu fundamento, totalmente cego” (Lacan. S. 17: 101).
O estado virtual do fantasma-Urstaat significa que para o sujeito não
há a possibilidade da articulação que é a fantasia, na medida em que isso é o ponto
cego do discurso do mestre: a impossibilidade da travessia do fantasma em tal
discurso. Neste, o Urstaat está no
lugar do agente e como fantasma no lugar da verdade. O Urstaat é o S1 (significante-mestre) na posição de senhor na dialética
senhor versus escravo. Este está no lugar da produção ou perda. No discurso do
mestre, o Urstaat aparece claramente
como aparelho de captura do excedente, da riqueza produzida pelo escravo. E o
senhor (Faraó, por exemplo) - que é a personificação
divina do Urstaat - se apropria do
mais-gozar. Um gozo que pode ser visto pela fórmula: “deixar viver, fazer
morrer”. No discurso do mestre, há necessidade de remexer nas fantasias
mortíferas (Lacan. S. 17: 101). A fantasia do Faraó é: “matar a população”. Um
gozo relativamente próximo do significante senhor absoluto (Lacan, S. 17: 28; (Hegel.
1966; 119). E a população – no lugar da produção ou perda - pode ser definida
como o significante vida, ou seja, o conjunto de forças que resiste à morte.
Isso define a superfície política no discurso do mestre da civilização arcaica.
Trata-se da política arcaica in nuce. Na
contraciência lacaniana da política é preciso tomar como ponto de partida o
discurso do mestre e seu aparelho psíquico: o aparelho de Estado psíquico. E
também partir da possibilidade virtual – ficção lógico-empírica – da suspensão
da barreira na relação do mestre com o mais gozar. O poder divino do Faraó é o
significante-corte (suspender) que abole a barreira fáctica supracitada. A
lógica do simulacro/espectro é um aspecto estratégico na interpretação para o
campo lacaniano da política. O fantasma do Urstaat
existe como espectro (simulacro) barrado facticamente. O poder divino do faraó
é capaz de fazer o espectro de fantasia – ($◊a) - funcionar como causa do desejo do mestre. Pela sua natureza
divina, o Faraó não é interditado pelo tabu do incesto. Para ele, a cultura não
funciona como lei que barra o incesto, ou seja, como estrutura simbólica. No
entanto, o Faraó não é bestial - animal despótico -, pois a cultura política
arcaica legitimava o incesto para a nobreza do Egito da civilização
arcaica. O S1 divino é instaurado em uma
cadeia de significantes produzida ex
nihilo como cultura política divina. Talvez a antropologia não tenha
superado a ideia de Frazer de que a lei do incesto continuava a ser um problema
quase tão obscuro como antes (Cassirer. 1976: 49).
Lacan faz a crítica da mitologia
de Deus como causa sui. Isso se
exprime miticamente no fato de que Deus se produz a si mesmo graças a
seu nome (Cassirer.
1973: 101-102). Ao contrário, só há causa depois da emergência do desejo
(Lacan.
2005: 65). {Associar desejo com causa não constitui um mito de uma
espécie de
cultura política laica?} Trata-se de desconstruir a ideia de Deus como
um ser
espiritual que pensa o mundo e utiliza o verbo como um meio de expressão
e um
instrumento de criação, e é causa de si. (Cassirer. 1973: 63). Na
mitologia, é
frequentemente o nome de deus, e não o próprio deus, que aparece como o
verdadeiro momento forte (Idem: 65). Isso coloca a função da perversão
quanto à sua relação com o desejo do Outro como tal. Isso significa que o
perverso se
reduz ao ato de pôr contra a parede a apreensão ao pé da letra da função
do
Pai, do Ser Supremo. Petrificando sua angústia, o perverso instala-se
como tal
por tomar Deus como desejo interessado na ordem do mundo (Lacan. 2005:
75). A
estrutura da perversão constitui-se tomando o nome de deus como
significante
que articula o simbólico. Nela, o nome-do-pai não é um símbolo, mas
parte da
propriedade direta daquele que o porta (Cassirer. 1973: 67). Na cultura
política romana, a relação entre personalidade e nome mantém tal
característica. Quando o direito romano forja o conceito de
personalidade
jurídica, ele recusa esta legitimação a certos sujeitos físicos, ele
recusa o
nome-do-pai em um sentido jurídico. Os escravos não podem ter um nome no
direito do Estado romano, pois eles não podem ter o valor de troca
atribuído às
personalidades autônomas. À eles, é recusado o princípio da igualdade
entre
sujeitos da cultura política romana. O valor de troca só aparece como
suporte
da igualdade jurídica, quando o escravo é substituído pela mais-valia.
Assim, é fácil de observar que a cultura
política romana mantém uma dimensão mitológica por estar determinada
pelo modo
de produção escravista. A cultura política egípcia arcaica é estruturada
mitologicamente em sua totalidade. Para ela, o mito é algo equivalente a
circulação do sangue na corrente sanguínea. Nas cerimônias para a
sagração do rei
do Egito, há prescrições muito precisas sobre a maneira de transferir os
nomes
dos deuses para a pessoa do Faraó. Cada novo nome lhe traz, ao mesmo
tempo, um
novo atributo, uma nova força divina. Este tema joga igualmente um papel
determinante na crença egípcia das almas e da imortalidade. (Cassirer.
1973:
66). Como a cultura política constitui, em certas situações, o aparelho
de
Estado psíquico (o aparelho psíquico do discurso do mestre que articula o
Urstaat), o S1 divino é instaurado em
uma cadeia de significantes produzida ex
nihilo como cultura política divina. O poder divino do faraó é capaz de
fazer o espectro de fantasia – ($◊a) - funcionar como causa do desejo do mestre.
Trata-se de estrutura perversa? Esse é o verdadeiro e único problema? Podemos e
devemos operar um reducionismo lacaniano para qualquer cultura política
mitológica? A cultura política egípcia faria parte deste conjunto? A
contraciência lacaniana da política não se articula pelo reducionismo
psicanalítico!
Lacan atribuiu a Marx a descoberta do sintoma
e do discurso do mestre moderno ou discurso do capitalista. No entanto, ele não
incorporou em seu pensamento a lógica do espectro, do fantasma, descoberta por
Marx. Nesta, a lógica do simulacro é a continuação da lógica do espectro por
outros meios. Ela torna possível a definição do inconsciente político que é o
inconsciente do discurso do mestre estruturado como uma linguagem específica: a
linguagem do simulacro de simulação. Esta Linguagem é mais real que o próprio
real. Ao dormir na superfície política, o sujeito político sonha como se
estivesse em um surto psicótico. “A vida
é um sonho” é a peça do teatro barroco, de Calderón de la Barca, que faz da
pedagogia antes da experiência (d’Ors: 36) o caminho para o sujeito sair do
determinismo do inconsciente político sobre a superfície política. De Paulo
Freyre, a pedagogia do oprimido era
um artefato político para fazer a população parar de sonhar e despertar
finalmente para enfrentar a política moderna in nuce, modelada pelo discurso do mestre na forma artefatual da
cultura política totalitária. O inconsciente político faz o sujeito sonhar em
uma experiência que é mais real que o próprio real na cultura política
totalitária: o racismo articulado por tal cultura. Foucault fez a síntese da
mitologia racista em uma aula magnífica: “Retomando, reciclando a forma, o alvo
e a própria função do discurso sobre a luta das raças, mas deturpando-os, esse
racismo se caracterizará pelo fato de que o tema da guerra histórica – com suas
batalhas, suas invasões, suas pilhagens, suas vitórias e suas derrotas - será substituído pelo tema biológico,
pós-evolucionista, da luta pela vida. Não mais batalhas no sentido guerreiro,
mas luta no sentido biológico: diferenciação das espécies, seleção dos mais
fortes, manutenção das raças mais bem adaptadas etc. (Foucault: 94). Esta
lógica instala o campo de concentração como depósito das raças inferiores.
Trata-se do artefato político através do qual deve ser lida a cultura política
totalitária, pois ele sobredetermina a cadeia de significantes de tal
cultura.
Para Lacan, a castração constitui
a essência da posição do mestre. O mestre é castrado. O gozo está interditado
para ele. Todo homem nascido de um pai tem que haver entre o pai morto e o
gozo. Isto é o operador estrutural: o pai real. O pai morto é aquele que tem o gozo sob sua guarda. É daí
que parte a interdição do gozo, de onde ela precedeu. O pai real é o operador
estrutural para além do mito do Édipo. Esta estrutura está além do mito e do
gozo do pai original – animal despótico – como aquele que goza de todas as
mulheres. Para Lacan, a castração é integrada à teoria do significante. A
linguagem – mesmo a do mestre – só pode ser demanda que fracassa. O mais-gozar
não se origina no êxito da demanda, mas na repetição dela. O discurso do mestre
é um aparelho, que pela repetição, produz a perda de onde o mais-gozar toma
corpo. Assim, a barreira no fantasma do discurso do mestre está entendida. Isso
permite colocar no centro dessa lógica a fórmula todo homem é mortal, cujo suporte é o não saber sobre a morte e, ao
mesmo tempo, que todo homem, nascido de um pai - sobre o qual dizem que é na
medida em que está morto -, não goza daquilo que tem para gozar. O pai morto
guarda o gozo (Lacan. S. 17: 112-116).
O Faraó não nasceu de um pai
real. Ele é uma produção divina. O divino põe um outro operador estrutural
diferente do pai real. Trata-se de um operador estrutural divino. O faraó não
está no conjunto todo homem é mortal.
Ele é imortal. Como um equivalente do animal despótico, ele pode gozar de todas
as mulheres. A fantasia mortífera é vista como um direito dele. Por isso, ele é
a personificação do Urstaat como
poder sem limite, aparelho de captura do excedente (incluindo aí o mais-gozar)
e como forma divina do discurso do mestre. Neste, o mestre não é castrado. É
preciso passar do mito à estrutura, mas sem jogar a criança fora da bacia com a
água suja. Durkheim escreveu, “Assim quando abordamos o estudo das religiões
primitivas, é com a certeza de que elas pertencem ao real e o exprime (...).
Mas, debaixo do símbolo, é preciso saber atingir a realidade que ele figura e
lhe dá sua significação verdadeira. (...) os mitos mais estranhos traduzem
alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual ou social" (Durkheim:
VII). O divino é um operador estrutural da civilização arcaica que pertence ao
real e é integrado no inconsciente político pela suspensão da barreira que
impede o fantasma do Urstaat de
funcionar no caso do poder divino do Faraó. A repetição no aparelho – discurso
do mestre – produz a perda (mais-gozar) que o poder divino transforma em gozo
do mestre-Faraó. Senão, a definição do Urstaat
como aparelho de captura do excedente e poder sem limite (não há Lei alguma
impondo limite) torna-se um impossível freudiano. A ortodoxia lacaniana opera
nesta linha de raciocínio. Mas a contraciência lacaniana da política se
alavanca em ser contra a ortodoxia lacaniana que é o motor da inatividade ou da
inércia do campo freudiano. Por ser um ateísmo, a psicanálise está longe de
questionar o que é fundamental para ela, a saber: a Lei. O discurso do analista
tem como objetivo consolidar a Lei (Lacan. S. 17: 112). Entretanto, o Faraó e o
Urstaat estão para além, ou aquém, do
discurso do analista e do discurso do mestre laico. A relação do discurso do
mestre com a religião abre as comportas para a investigação dele como uma
estrutura distinta do discurso do mestre laico.
Um outro caso de máquina perversa
é a cultura política do dinheiro, que funciona pelo discurso do capitalista.
Benjamim Franklin é uma referência ética e ideológica de tal cultura antes da
existência do modo de produção especificamente capitalista. A ética capitalista
dele estava contida na máxima tempo é
dinheiro. A auri sacra fames (a
avidez de ouro) é tão velha como a história da espécie humana a partir da
civilização arcaica. Weber acredita que a auri
sacra fames tem como motor um instinto perverso (Weber: 47). Com ela, o
homem é dominado pela produção do dinheiro. Em uma leitura lacaniana, como
personificação do capital, o capitalista é a máquina perversa de ganhar
dinheiro de um modo racional, assim como o psicótico é a máquina de fala. O
capitalista é racional e irracional, simultaneamente. Weber descreve isso como
a cultura capitalista. Trata-se de
uma expressão neutra em relação à história. De fato, temos a cultura política racional
do dinheiro, a cultura capitalista funcionado como artefato do discurso do
capitalista em várias superfícies políticas, destacando-se a superfície
política do mundo da vida. A máquina de
ganhar dinheiro é um artefato da cultura política capitalista, ou seja, da
cultura política que é um modo de apropriação privada – privatismo – da riqueza,
inclusive da riqueza pública. O privatismo é o gozo político do capitalista.
V
Se o inconsciente é o
inconsciente do discurso, o eu e o supereu também são relativos ao discurso. No
domínio do inconsciente político como inconsciente do discurso do mestre (e
talvez do discurso universitário), a dialética no aparelho de Estado psíquico –
entre o isso, o eu, e o supereu – pode gerar fenômenos inéditos como o
povo-freudiano. O aparelho psíquico trabalha como um escultor sobre a população-mármore.
Ele dirige a pulsão de morte da população para o interior dela instaurando o
sentimento de culpa. Nietzsche concebeu um fenômeno equivalente na relação
entre o Estado e a população: “Já devem ter adivinhado o que se passou
sob o véu de tudo isto. Esta tendência para se torturar a si mesmo, esta
crueldade do animal homem interiorizado, encerrado na sua individualidade,
domado pelo ‘Estado’” (Nietzsche: 104). A pulsão de morte exteriorizada como
violência contra o Estado é trabalhada no sentido do supereu direcioná-la para
o interior do sujeito, gerando o mecanismo do sentimento de culpa. Na crise
política catastrófica, as rebeliões são domadas pelo Estado, e o aparelho de
Estado psíquico as transforma em matéria-prima para a emergência do sentimento
de culpa na população. Toda rebelião contra o Estado é, no fundo, uma rebelião
contra o fantasma do Urstaat. A
população rebelada fica a meio caminho entre o fantasma do Urstaat (discurso do mestre) e a cultura política libertária. Esta quer
atravessá-lo definitivamente, dissolvendo o Estado. No entanto, é preciso
conceber a relação do Urstaat com a
pulsão de morte como um significante universal na história da espécie humana,
facticamente, a partir da civilização arcaica. Virtualmente, o fantasma do Urstaat (discurso do mestre) já está
presente na sociedade primitiva, cuja política é concebida como modo de evitar
a emergência do Urstaat na figura do
déspota: “a sociedade primitiva nunca tolerará que seu chefe se transforme em
déspota” (Clastres: 144; 147-148).
Freud escreveu sobre as teorias
sexuais das crianças como fabulação empírica que aproximaria o homem civilizado
da sociedade primitiva (Freud. v. XXIII: 266-267). Não seria o caso de
investigar, na clínica, a fabulação infantil sobre a experiência dela em
relação ao discurso do mestre? Trata-se basicamente da fusão da criança com a
mãe, do sujeito com o objeto (das Ding),
seu déspota. A dialética senhor (mãe) versus
escravo (criança) está no início da história da espécie humana e na história da
criança. Ao contrário dos povos primitivos, a criança não possui meios para
evitar o Urstaat (das Ding). As crianças que sobrevivem ao
Urstaat não deixam de carregar
consigo a sombra do fantasma do Urstaat
para toda a vida, se continuam vivendo sob o domínio do discurso do mestre. Não
é prudente reduzir a experiência mitológica da criança com das Ding unicamente à fabulação da criança. O mito é da ordem da
narrativa e da prática, é do reino dos rituais (Cassirer. 1976: 40; Freud.
XIII: 102) nos quais a criança vive em sua relação com das Ding. Se ela vive-os literalmente como a fusão com o objeto
enquanto o Outro absoluto do sujeito que se trata de reencontrar, ela não tem
saída a não ser mergulhar no mundo da alucinação. Para Freud, “o mundo da
percepção depende desta alucinação fundamental sem a qual não haveria nenhuma
atenção disponível” (Lacan. S. 7: 69). Com a criança, o discurso do mestre
opera facticamente, opera com o real e constitui a percepção. Mas e se a
criança tomar a relação com das Ding como
metáfora de uma relação fáctica? O Outro real é o fora-do-significado. “É em
função desse fora-do-significado e de uma relação patética a ele que o sujeito
conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação, de afeto primário,
anterior a todo recalque” (Lacan. S. 7: 71). Patético em um sentido etimológico refere-se a pathos. Em estética
avançada, este refere-se, talvez, a um estado afetivo e sobretudo emocional
experimentado como grotesco (Souriau: 1114, 1115). A lei fundamental – que começa a cultura – é
a lei do incesto, segundo Freud. Então é preciso pensar uma intervenção da
cultura na dialética do senhor versus
escravo na infância desacoplada da infância da humanidade, onde o discurso do
mestre não vingava. Trata-se da passagem do grotesco para o trágico. A cultura
política pode vir em socorro do discurso do analista que trata a criança? Trata-se
da cultura política libertária (ou liberal) que tem como objetivo criar um
estado de insurreição permanente contra o fantasma do Urstaat: a fusão real com das
Ding. Por que esperar pelo recalque como o único modo de enfrentar o
discurso do mestre? A batalha fatal da criança não se dá antes do mito do
complexo de Édipo? “O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito pois ele é o
fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais
profundamente o inconsciente. É na própria medida em que a função do princípio
do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar,
mas que não poderá atingir” (Lacan: S. 7: 87). É na ordem da cultura que a lei
se exerce. A lei tem como consequência excluir o incesto fundamental, o incesto
filho/mãe (Lacan: S.7: 90). Ele é o Bem Supremo, das Ding (a mãe), a ética suprema da felicidade. Isso torna
impossível qualquer ética? A fusão com o objeto absoluto (Outro real) continua
por outros meios na vida das sociedades. A cultura política totalitária se
funda na fusão do sujeito (população) com o Urstaat
(das Ding). O nazismo foi a forma
sublime deste fenômeno. As culturas políticas libertária e liberal clássica
constituem a vontade política de atravessar o fantasma do Urstaat - o fantasma da fusão do sujeito com o Outro fáctico (Urstaat). Trata-se do incesto absoluto,
pois ele se realiza na política in nuce.
A cultura política libertária usa a estética do belo como barreira para deter o
sujeito diante do campo inominável do desejo radical, pois este é o campo da
destruição absoluta, da destruição para além da putrefação (Lacan. S. 7: 265).
Sade concebeu a anarquia como um bem que está na origem de outro bem, o Estado
(Idem: 269). Mas também concebeu a travessia do Urstaat através de um estado de insurreição permanente. O âmbito do
bem é o nascimento do poder. Dispor de seus bens é dispor de si mesmo, e de ter
o direito de privar os outros de seus bens. O poder de privar os outros de seus
bens é um laço social de onde vai surgir o outro como tal. A relação do homem
com o real dos bens se organiza em relação ao poder que é o do outro de
privá-lo. Trata-se do outro imaginário. A cultura política utilitária é uma
solução para esse imbróglio, pois Bentham aborda a questão no nível do
significante, da estrutura propriamente simbólica (Idem: 278). E qual a relação
do belo com o significante bem? O belo está para além do princípio do bem, do
desejo do homem de boa vontade que é o de fazer o bem. A manifestação do belo
intimida, proíbe o desejo, cria uma barreira à realização da pulsão de morte.
Como bem, o belo constitui a estética a serviço da cultura política utilitária
que cria barreira à realização da pulsão de morte pelo Urstaat. Estamos a um passo da cultura política libertária como
desejo utópico de abolir toda a infelicidade causada pelo Urstaat. Isso define o movimento anarquista mundial na atualidade,
sem que ele saiba disso. No entanto, o nazismo usou o belo como instrumento de
fascinação, de sugestão (mecanismo da psicose) de submissão do indivíduo.
Goebbels considerava que o cinema não deveria ser uma arte usada apenas como
dispositivo de distração para o prazer das massas. A aparente distração não
deveria ser senão um ardil, uma astúcia, para fazer passar mais facilmente a
educação, a edificação ideológica (ideologia oca de significados); a mais
eficiente e melhor propaganda seria aquela que impregna a vida de maneira quase
imperceptível (Richard: 19). Goebbels estava no lugar de Cacciaguida no A divina Comédia?
_ Assim falei a Cacciaguida: “Ó
amado ancestral, glorioso a ponto de ascender ao Céu; assim como foi possível à
mente humana entender que em um triângulo não podem estar contidos dois ângulos
obtusos, assim tu, mirando aquele Ponto de onde todos os tempos podem ser
devassados, consegues ver o futuro”
(Dante: 358).
A diferença entre a ficção e a
realidade é a impossibilidade de Goebbels ascender ao Céu.
Mesmo assim, Freud tinha sérias
dúvidas se o discurso do analista deveria interferir no funcionamento do
discurso do mestre no caso, por exemplo, de um casamento satisfatório – que
atua como motor de sofrimento – ou no caso de um paciente que sofre no cargo de
sua sobrevivência (Freud. V. XXIII: 264). O princípio de realidade é um
componente essencial do discurso do mestre, assim como o princípio do prazer e
a ética do desejo são componentes essenciais do discurso do analista.
VI
O utilitarismo fabulava que a
natureza havia colocado o gênero humano sob o domínio de dois senhores
soberanos: a dor e o prazer. O utilitarismo reconhece a sujeição do homem a
estes dois senhores e os coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo
consiste em construir o edifício da felicidade através da razão e da lei: “O
termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer objeto,
propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar
benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se
reduz a mesma coisa), ou ( o que novamente equivale a mesma coisa) a impedir
que aconteça o dano, a dor o mal, ou a infelicidade para a parte cujo interesse
está em pauta; se essa parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da felicidade
da comunidade; ao que, em se tratando de
um indivíduo particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo
(Bentham: 10). Bentham é o formulador da cultura política utilitária que faz
pendant com o discurso do analista? A ética do desejo não sustenta a cultura
política utilitária? Não se deve reduzi-la a repartição de bens no mercado.
Para Lacan, “O esforço de Bentham instaura-se na dialética da relação da
linguagem com o real para situar o bem – o prazer, no caso, que veremos que ele
o articula de maneira totalmente diferente de Aristóteles – do lado do real. E
é no interior dessa oposição entre a ficção e a realidade que o movimento de
báscula da experiência freudiana vem situar-se” (Lacan. S. 7: 22). O fictício
não é idêntico ao que é enganador, mas, propriamente, o que Lacan define como
simbólico. O inconsciente estruturado em função do simbólico significa que
aquilo que o princípio do prazer faz o homem buscar seja o retorno de um
significante, a felicidade. A “felicidade no mal” – que inclui a realização dos
desejos bestiais – fariam parte da cultura política utilitária? Aí não é
preciso intervir o princípio da realidade? A felicidade deve ser buscada
segundo o governo da razão e da lei. Eis o princípio da realidade do
utilitarismo. Por isso, ele é uma cultura política. A cultura política
utilitária é o caminho do meio entre a ética tradicional e a ética do discurso
do analista? Na ética de Aristóteles, o serviço dos bens é a depreciação do
desejo, modéstia, temperança etc. Trata-se da disciplina da felicidade (Lacan.
S 7: 351). Tal disciplina evoca um supereu despótico que é a base do
funcionamento do aparelho de Estado psíquico. Aristóteles é atravessado pela
dialética do discurso do mestre versus
ética da cidade. Lacan só viu nele o discurso do mestre (Lacan. S. 7: 377). Na
ética da cidade, a amizade é o laço social que substitui o supereu despótico na
busca da felicidade. A democracia justa pode existir para além do discurso do mestre.
Na ética do desejo, não se trata de abrir todas as comportas, mas de pensar uma
ordem coletiva qualquer em função da satisfação dos desejos (Lacan. S. 7: 275 ).
A felicidade como satisfação dos desejos – sem abrir todas as comportas –
precisa de uma ordem que impeça o abrir de todas as comportas. A cultura política
no mundo da vida talvez exerça tal função melhor que uma ordem coletiva que, na
atualidade, é mantida pelo Estado ou pelo aparelho de Estado psíquico,
excluindo as sociedades primitivas. A propósito, a disciplina de Aristóteles é
uma criança comparada à ética da disciplina de Lenin - o socialismo se constrói em silêncio (Colas: 378) -, que sustenta,
enquanto artefato do discurso do mestre leninista, a cultura política
totalitária do socialismo realmente existente.
A cultura política utilitária é
uma superfície muito favorável ao funcionamento do discurso do analista nas
biografias privadas individuais e públicas (das formações políticas). Ele não
pode funcionar como um artefato na cultura política totalitária por uma posição
ética. “Na profilaxia analítica contra conflitos instintuais, portanto, os
únicos métodos que entram em consideração são os outros dois que mencionamos: a
produção artificial de novos conflitos na transferência (conflitos a que,
afinal de contas, falta o caráter de realidade e o despertar de tais conflitos
na imaginação do paciente, falando-lhe sobre eles e tornando-o familiarizado
com sua possibilidade” (Freud. XXIII: 265). O limite é o seguinte: “no entanto,
jamais ocorre a um médico pegar uma pessoa sadia que tem possibilidade de
adoecer de escarlatina e infectá-la com esta, a fim de torna-la imune à mesma
(Idem: 265). O analista não pode ocupar o mesmo lugar do médico (cientista)
nazista. Freud elabora sobre a ética no tratamento dos neuróticos e pensa a
felicidade no mal como a realização da pulsão de morte no caso do estado de
psicose coletiva. A guerra, a guerra molecular e o estado de guerra freudiano
realizam a felicidade no mal. A máquina de guerra freudiana tem como motor a
felicidade in nuce. Assim como a
máquina de guerra sadiana, a máquina de guerra freudiana implode a ética do discurso
do analista e a cultura política utilitária. Como
artefato simbólico contemporâneo, tais máquinas são parte da cultura política totalitária
do mundo da vida.
Um campo importante para o
entendimento da produção do contemporâneo é o campo estabelecido pela relação
entre mito, estética e máquina de guerra freudiana. O nazismo mostrou toda a complexidade,
a vastidão e a profundidade deste campo (Richard: XI). Este é um campo no qual
a mitologia se articula à estética pelo funcionamento do discurso do mestre.
Este é o motor ou causa da emergência da máquina de guerra freudiana. A
investigação sobre tal campo ainda está engatinhando.
O discurso do analista pode
produzir a travessia do fantasma do Urstaat com a substituição do aparelho de
Estado psíquico – como aparelho de captura do sujeito - pelo aparelho psíquico
especificamente freudiano. O verbo do fantasma é captura-me. Isso significa
colocar o sujeito-súdito (população) na posição de servidão voluntária. O
fantasma do Urstaat é um dragão que
persegue a espécie humana desde a história da civilização arcaica e mesmo antes
na sociedade primitiva: “Fica-se às vezes inclinado a duvidar se os dragões dos
dias primevos estão realmente extintos”. Criando uma torsão em Freud é possível
pensar que, na vida biográfica privada, a travessia é possível fora do discurso
do analista. “Tem-se a impressão de que não se deve ficar surpreso se, ao
final, ela mostrar que a diferença entre uma pessoa que não foi analisada e o
comportamento de uma pessoa após tê-lo sido não é tão radical como visamos a
torná-lo, e como esperamos e sustentamos que seja” (Freud. v. XXIII: 260). O
discurso do analista pode falhar, se em seu funcionamento não gerar um aparelho
psíquico. É impossível discutir a causa (ou causas) disso neste breve texto.
Mas a questão que nos vem à mente é outra. Trata-se de saber se é possível a
travessia do fantasma fora do discurso do analista para as biografias privadas.
Coletivamente, um sujeito da população (o capitalista) pode fazer tal travessia
no discurso do capitalista. Parcela da população pode fazer tal travessia na
cultura política libertária. No plano da biografia individual, dois casos são
exemplos dessa travessia do Urstaat.
Trata-se da travessia do marxismo totalitário realizada por Poulantzas e
Habermas através do uso da razão, que nos remete para a concepção da alma justa
de Platão. Esta só pode existir se a razão conseguir o equilíbrio harmônico com
o campo dos afetos e o campo das pulsões (Platon: 1012). Mas ao contrário da
ética do estoicismo, Platão não considerava que o campo dos afetos constituía–se
como um campo patológico (Cassirer. 1976: 41). A obra de Poulantzas foi a
primeira interpretação global do marxismo totalitário como fantasma do Urstaat. Infelizmente, este grande
pensador da segunda metade do século XX escolheu o suicídio ao constatar o fracasso
de sua travessia da cultura totalitária marxista. Já Habermas colocou em
prática o uso público da razão procedimental como meio de travessia de tal
cultura. Sua obra é um exemplo que não pode ser desconsiderada na reconstrução do campo freudiano como
contraciência lacaniana da política. Poulantzas e Habermas tornaram possível a
articulação do marxismo à contraciência lacaniana. Resta saber se isso pode ser
o paradigma literário para uma cultura política que torne possível a travessia
do Urstaat em uma escala coletiva
para a população.
Um aspecto vital para a leitura
da produção do contemporâneo é o estabelecimento da dialética Urstaat versus máquina de guerra freudiana. Os dois constituem um campo
político que tem como lógica o amálgama da estrutura com o mito. Este como um
ser que habita a estrutura. O Urstaat
e a máquina de guerra freudiana constituem estruturas atravessadas pelos fluxos
da pulsão de morte que é da ordem do mitológico. O Urstaat é uma condensação de pulsão de morte direcionada contra a
população. Trata-se de um poder sem limite como exercício da violência contra a
população. Ele possui um aparelho de
aplicação da lei que disfarça seu poder sem limite: a máquina de guerra
jurídica heideggeriana (Silveira: novembro/2014). O juiz é a continuação do
poder sem limite do Urstaat por
outros meios, ou seja, por uma simulação de aplicação da “lei moderna”. Na
produção do contemporâneo, a lei moderna existe como simulacro de simulação;
ela é mais real que o próprio real. O juiz é o principal oponente da máquina de
guerra freudiana que se constitui como uma vontade em qualquer superfície
política, a partir da condensação da pulsão de morte, voltada para aniquilar o
outro ou o grande Outro (sociedade, Estado etc.).
No século XXI, a história da
espécie humana pode ser lida como a dialética Urstaat versus máquina de guerra freudiana. Estes significantes não são
dragões que podem reinar no século XXI? A pulsão de morte é parte de uma
mitologia do século XXI. Ela faz a política permanecer no meio do caminho entre
a metafísica e a metapsicologia (Cassirer. 1976: 47). A pulsão de morte como
uma categoria do Real (Roudinesco: 632) eliminaria a metafísica (o mito) na
metapsicologia? A pulsão de morte como significante de uma história fáctica
pode substituir a pulsão de morte como artefatual (mito) na política in nuce? Na construção da contraciência
lacaniana da política, o romantismo alemão freudiano deve ser substituído globalmente
pela radical ilustração lacaniana? Ou ele deve seguir a trilha de Marx cujo
pensamento é um ecletismo bem temperado entre Ilustração e Romantismo?
Lacan concebeu a emergência do
discurso do mestre na história universal (Lacan. S. 18: 11). O discurso do
mestre estabelece o Urstaat na
história da civilização arcaica. No entanto, ele é uma produção ex nihilo dessa história universal.
Lacan deixou uma trilha para o desenvolvimento da pulsão de morte na
metapsicologia freudiana para além da psicologia do indivíduo e da psicologia
de grupo: “porque os significantes não são uma coisa individual, não se sabe
qual é e quem. Então, como vocês veem, entramos aí numa espécie de outro
funcionamento original quanto à função do acaso e à dos mitos” (Lacan. S. 18: 17):
Hic Rhodus, hic salta!
Aqui está Rodes, salta aqui!
VII
Empédocles de Acragas (Gigente) -
que talvez tenha nascido por volta de 495 a. C. – é um personagem importante no
livro A metafísica. Ele foi
cientista, profeta, mágico, filantropo, político e médico com conhecimentos de
ciências naturais. Da teoria dele, Freud extraiu a ideia de que o mundo é
movido pela dialética do amor versus discórdia
(Freud. V. XXIII: 279-280). Freud afirma o caráter mitológico desta teoria da
pulsão e, em uma recaída positivista, advoga uma tradução biológica para tal
teoria. Fornecendo um certo tipo de fundamento ao princípio da discórdia, Freud
acredita que faz a pulsão de destruição remontar à pulsão de morte, ao impulso
que tem o que é vivo a retornar a um estado inanimado. O suporte biológico para
a pulsão de morte não a inscreve como categoria do real? No entanto, as
ciências naturais não trabalham com tal base conceitual. Como categoria do real
lacaniano, a pulsão de morte é uma categoria biológica? Não seria preciso encontrar
um laço entre alucinação e regiões do cérebro para poder sustentar que o real
lacaniano tem um suporte biológico? Já foi descoberto o gens da violência?
A tradução francesa do A metafísica estabelece que os dois princípios da teoria dos
instintos de Empédocles são a amitié
(amizade) e a haine (ódio). Não se
trata de amor, mas de amizade! São eles os princípios contrários do movimento,
em geral, e do movimento político especificamente. [Para
o nosso Freud virtual, o amor transferencial é uma relação determinante na
instalação do aparelho psíquico no funcionamento concreto do discurso do
analista. Então, trata-se de substituir na concepção da transferência o amor
pela amizade. A amizade inscreve a ética aristotélica da cidade na relação
transferencial] A amizade e o ódio são as
causas do Bem e do Mal, se não se partir da ideia de que o Bem é a própria
causa do Bem e o Mal a causa do Mal (Aristote: 37, 39). Empédocles oscila entre
uma teoria mitológica do campo da pulsão e uma filosofia da ética para explicar
a política. Freud pensou em inscrever a política no biológico, sem nenhum êxito.
É preciso considerar que há uma distância estrutural entre a política e o
cérebro humano. Como um ser mitológico, a pulsão de morte encaixa-se na lacuna
produzida por tal distância estrutural. Assim, ela torna-se um significante
estruturante da política através dos conceitos como Urstaat, máquinas de guerra (freudiana, heideggeriana, sadiana) e
cultura política. A cultura política é um artefato simbólico que é a
continuação da política in nuce por
outros meios: estéticos, retóricos políticos etc. Suas formas se definem pelo
modo de condensação, ou uso, da pulsão de morte. Na cultura política
totalitária, o nazismo é o artefato político que se define, por exemplo, por um
uso político estético da pulsão de morte para fazer a guerra e criar o campo de
concentração – racialização da política. A cultura política libertária
condensa, e usa, a pulsão de morte como artefato estético para a travessia do
Urstaat.
A cultura política pode fazer do
direito um artefato simbólico que sustenta o uso da pulsão de morte na política
e na guerra. “Atenienses: ‘Quanto à benevolência divina, esperamos que ela
também não nos falte. Realmente, em nossas ações não nos estamos afastando da
reverência humana diante das divindades ou do que ela aconselha no trato com as
mesmas. Dos deuses nós supomos e dos homens sabemos que, por uma imposição de
sua própria natureza, sempre que podem eles mandam. Em nosso caso, portanto,
não impusemos esta lei nem fomos os primeiros a aplicar os seus preceitos;
encontramo-la vigente e ela vigorará para sempre depois de nós (Tucídides:
Livro V, cap. 105). O uso da pulsão de morte como vontade política para anexar
ilegitimamente um território que pertence a seus habitantes é um equivalente do
direito natural do mais forte da cultura política oligárquica. Tal cultura política
parte da dicotomia original de homens divididos entre fortes e fracos, e
identifica os fracos com a loucura e com a maioria. Esta mesma maioria que cria
a lei escrita, lei inimiga dos fortes por natureza Trata-se de uma cultura
política que usa a retórica política (Neschke: 116). O direito do mais forte não se fundamenta no
direito natural, a não ser como retórica política que objetiva se apoderar do
Estado. A cultura política oligárquica usa o direito como retórica política na
sua relação com o poder. Ela é a política continuada por outros meios, por
meios retóricos.
VII
No discurso do mestre, a
população - no lugar da verdade e o excedente (objeto) no lugar da produção ou
perda (Lacan. S. 17: 87) - expõe a questão do fantasma ($◊a). A junção do sujeito com o objeto (das Ding) – metonimicamente representado pelo objeto a – remete para o Urstaat, o aparelho de captura do excedente articulado pela lógica
do significante. A junção significa o fantasma do Urstaat da população (escrava): capture-me como excedente
(sobretrabalho). No lugar da verdade, a população suspende a barreira (Δ)
existente entre ($Δa), entre o sujeito e o objeto. A homologia
entre a mais-valia e o mais-gozar já remete para o funcionamento específico do
discurso do capitalista. Aqui é preciso pôr o S1 (capital) no lugar da verdade
e a população (objeto) no lugar da produção como trabalho que produz a mais-valia.
Tal discurso troca o escravo pela mais-valia. O capital e o trabalho continuam
no espaço de baixo do discurso do capitalista a lógica do significante como
aparelho de captura do excedente (S1◊a). O
S1 faz a punção (◊) no
objeto (S1◊a).
No discurso do senhor arcaico, o
senhor (S1) é o significante-mestre que é barrado e, pela metamorfose, vira $
(sujeito) no lugar da verdade. Este sujeito precisa do reconhecimento do
escravo e do trabalho do escravo. Trata-se da junção impossível entre o senhor
e o escravo que remeteria para o significante senhor absoluto: a morte? (Hegel.
1966; 119). Esta é a verdade do senhor
arcaico na dialética senhor versus
escravo? Para o senhor, a verdade é o reconhecimento pelo escravo de que o
senhor é superior e por isso tem o direito de usufruir da mais-valia e do
mais-gozar que compõe toda a riqueza da sociedade escravocrata? O Urstaat aparece como aparelho de captura
do sobretrabalho da população escrava cuja fantasia é designada pelo verbo
capturar. O sujeito do inconsciente político – o sujeito que é o efeito da
experiência de produção do fantasma – é um modo de gozar, é a estrutura erigida
em torno do mais-gozar. O verbo capturar revela seja o fantasma do senhor
arcaico, seja o fantasma do escravo: gozo em capturar o excedente; gozo em ser
capturado como excedente. No discurso do senhor arcaico, o Urstaat encarna o significante senhor absoluto como poder sem
limite sobre a população. Isto é o que faz dela escravo no sentido
especificamente político.
A intrusão da política significa
que se deve reconhecer que não há discurso que não seja gozo, pelo menos quando
dele se espera o trabalho da verdade. No discurso do mestre arcaico, Hegel
articula que a verdade é entregue ao senhor pelo trabalho do escravo. Ele
observou que tal discurso repousa na substituição do senhor pelo Estado,
através do longo caminho da cultura, na fenomenologia do espírito (Lacan. S.
17: 74). Marx mostrou que este Estado é o Urstaat,
um artefato do discurso do mestre arcaico que não depende do longo caminho da
cultura. Para Hegel, o Estado é a forma que realiza a existência das
determinações abstratas da natureza do espírito.
O início da história universal começa com a liberdade que consiste somente no
saber e querer objetos universais, substanciais, como o direito e a lei,
produzindo uma realidade que lhes é conforme: o Estado (Hegel. 1995: 57). Para este
grande pensador alemão, o Estado só existe articulado pelo Direito. Tal ideia é
o paradigma da cultura política do direito e também de um pensador da esquerda
ilustrada como Agamben. Ao contrário, Marx pensa o Estado como aparelho de
captura do excedente (Deleuze: 532). Trata-se de pensá-lo também como poder sem
limite articulado pelo discurso do mestre arcaico. Trata-se de um artefato
simbólico do discurso do mestre arcaico anterior ao longo trabalho da cultura
ocidental.
O Estado arcaico (Urstaat), a guerra etc. surgem como
parte da cadeia de significantes produzida ex
nihilo. Tal cadeia será desenvolvida com o tempo, sendo acrescentado nela
significantes como capital, direito, cultura política e política in nuce. Aqui mergulhamos na antiguidade
greco-romana. Nesta época, O Urstaat
continua funcionando como aparelho de captura do sobretrabalho escravo no modo
de produção escravista. Em Marx, a questão elaborada por Hegel sobre o saber da
população no lugar do trabalho recebe uma resposta definitiva no discurso do
capitalista. O operário não produz saber no modo de produção capitalista. O
saber ou ciência é algo exterior ao operário. A ciência é fundamental para a
produção da mais-valia relativa e, portanto, para a instalação do modo de
produção especificamente capitalista, e para a subsunção real do trabalho ao
capital. A divisão do trabalho capitalista – trabalho manual /trabalho
intelectual – é uma estrutura que suplementa a lógica da subsunção do trabalho
ao capital. A complexidade do discurso do mestre moderno pode ser observada por
sua articulação da política a partir da separação entre trabalho
manual/intelectual. A obra de Gramsci põe a hegemonia no lugar do discurso do
mestre para pensar a política moderna, seguindo o pensamento de Hegel. O ocaso
da política moderna pode ser concebido pela intrusão do discurso do mestre na
política do século XXI. Ele torna-se soberano na política ao subsumir facticamente
a hegemonia. O papel e a função do intelectual tornam-se secundários na
elaboração da política. Como artefato do discurso do mestre, a cultura política
dominante no mundo da vida toma o lugar do intelectual hegemônico. Por exemplo,
o aparelho de comunicação (televisão, internet) deve ser analisado como um
artefato que condensa a dialética das culturas políticas no mundo da vida. Ele
funciona como uma bricolagem de culturas políticas.
Sobre o gozo, o gozo do
capitalista é o da apropriação privada da riqueza. Trata-se do gozo do prazer (Hegel.
1966: 215). Trata-se de um gozo homólogo ao gozo oligárquico (discurso do
mestre) da antiguidade. Neste sentido, o discurso do capitalista é a repetição
do discurso do mestre de um modo diferente e lúdico. Quanto a função do a como mais-gozar, o capitalista dispõe
do corpo do outro sem ter nenhum poder sobre o que acontece com seu gozo
(Lacan. S. 16: 358). Em Lacan, a ausência de conceitos como cultura política
oligárquica e cultura política do dinheiro bloqueiam a percepção do gozo do
corpo do outro seja no discurso do mestre, seja no discurso do capitalista.
Tratar-se-ia do gozo como objeto político. Na cultura política, o representante
político do capitalista – a personificação do capital na política – altera a função do a como mais-gozar. O
capitalista político dispõe do corpo político do outro (eleitor) e sabe o que
acontece com seu gozo ao se apropriar privadamente da política (privatismo
político). O grau e intensidade do privatismo pode definir o tipo de forma de
governo na democracia representativa. O privatismo absoluto instaura a
democracia despótica, por exemplo. Nesta superfície política, pode ocorrer a
homologia entre mais-valia (Mehwert)
e mais-gozar (plus-de-jouir ou Mehrlust). Estes constituem a riqueza em
relação ao gozo hegeliano e ao gozo lacaniano.
O discurso do capitalista se
inscreve na política transformando o eleitor em súdito (escravo). Por que o
significante cidadania desapareceu da linguagem política do século XXI? A
dialética senhor/ escravo no modo de produção capitalista deixa de ter uma
interpretação economicista, quando ela é lida pela sua tradução na política.
Tal dialética perde também sua canga idealista – uma dialética somente das
formas de consciência – para se transformar em uma dialética materialista da
política. O ponto de partida é o S1 (capital) no lugar da verdade. No discurso
do capitalista, o Urstaat desaparece
como aparelho de captura do excedente, vindo o capital a ocupar tal lugar. O Capital de Marx concebe tal fenômeno
no capitalismo liberal do século XIX. No século XX, o capitalismo monopolista
de Estado reintroduz o Estado como aparelho de captura da mais-valia. A crise
do capitalismo monopolista de Estado permitiu ao globalismo neoliberal se
constituir como uma vontade de abolir o Estado como aparelho de captura da
mais-valia. Tal capitalismo acreditou na possibilidade definitiva da travessia
do fantasma do Urstaat. Trata-se de
uma época na qual os intelectuais passaram a elaborar também sobre a
possibilidade do fim do capitalismo (Altvater: 218). O capital quer abolir o
Estado e os marxistas querem abolir o capitalismo pelo imaginário. A cultura
política do dinheiro sonha com a utopia do fim do Estado e o marxismo
economicista com o fim do capitalismo sem necessidade de uma revolução social.
Trata-se do marxismo como cultura política totalitária em uma era na qual a luta de
classes não ocupa mais o centro da política mundial. A classe operária
tornou-se escrava real do capital! Trata-se da paz do discurso do mestre moderno
(discurso do capitalista) que sustenta a ideia de escravidão no século XXI. O
aparelho de Estado psíquico do discurso do capitalista articula o corpo do
escravo (população) como perinde ac
cadaver, tal como um cadáver.
O que fazer?
Quem costuma vir de onde eu sou
Às vezes não tem motivos pra
seguir
Então levanta e anda, vai,
levanta e anda
Vai, levanta e anda
Mas eu sei que vai, que o sonho
te traz
Coisas que te faz prosseguir
Vai, levanta e anda, vai, levanta
e anda
Vai, levanta e anda, vai, levanta
e anda
(Emicida)
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Fonte: José Paulo Bandeira
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