PICICA: "Num livro atualíssimo, filósofo francês sugere: o que está em crise não é
o governo da multidão, mas a farsa que procura inviabilizá-lo"
Jacques Rancière: a democracia deles e a nossa
Num livro atualíssimo, filósofo francês sugere: o que está em crise não é
o governo da multidão, mas a farsa que procura inviabilizá-lo
por Hugo Albuquerque
Recém-lançado no Brasil, O Ódio à Democracia, do filósofo francês Jacques Rancière, é um ensaio potente, pronto a ser lido de um fôlego só. Embora tenha sido publicado na França há quase dez anos, o livro nos é incrivelmente atual. Mais ainda: ele parece ter um tom quase profético quando olhamos para o Brasil de hoje.
Afinal de contas, estamos atolados em um pântano feito de manifestações fascistas que alentam a ideia de um novo golpe militar, de relatos incessantes de agressões físicas e intimidações nas redes sociais sobre quem não se alinha com essas pulsões (sobretudo eleitoralmente), de casos crescentes de crimes de ódio contra homossexuais, índios e outras minorias, da ideia cada vez mais consensual de que a política é ruim, temos mais é de nos contentar com o gerencialismo e assim por diante.
Rancière problematiza o que seria essa democracia sobre a qual tanto falamos, não raro perdida em meio a tantas confusões. Mas ele também fala sobre seus adversários: e eles não são apenas as manifestações de intolerância pontuais ou os projetos neo-autoritários, mas de um ponto quase sempre ignorado pelo pensamento político, que é o que há de autoritário no nosso próprio sistema político “normal”. O fascismo cotidiano e mascarado de cada dia. Na França, a máscara do poder na normalidade atende pelo nome de republicanismo.
O significado profundo do sorteio, que nos parece absurdamente chocante, é que se o eventual representante poderia ser escolhido assim, aleatoriamente, a democracia seria, pois, o governo do qualquer um. Se todas as outras formas efetivas de governo se fundavam em uma hierarquia determinada — de idade, de saber, de renda etc –, o advento democrático propunha que para “governar” não seria preciso ser o mais velho, o mais rico ou o (dito) mais sábio, mas sim fazer parte do corpo cidadão, na imanência de sua multiplicidade — isto é, em meio às suas diferenças, estranhamentos e até contradições.
A vinculação aos demos — e democracia, não custa lembrar, não signica “poder do povo”, mas sim o poder ou governo dos demos –, por outro lado, vinculou à territorialidade (de cada um na pólis) o índice organizacional da política, consistindo em uma suprema astúcia: a distribuição territorial, em si, não consistia em um índice hierarquizador: ao contrário, ele era perfeitamente horizontal naquele contexto.
Em contraponto à democracia, estaria, pois, a república. E segundo o autor, o republicanismo é, desde Platão, o inverso da democracia, o regime pelo qual a política volta a estar hierarquizada em um regime de competências. Isso perduraria até hoje na França. Ainda que tenha se oposto à monarquia e ao tradicionalismo da nobreza e da religião na França, ele foi uma forma de reintrodução do poder, só que de forma impessoal, anônima e sistemática.
É evidente que Rancière faria melhor caso se referisse a “positivismo” no lugar de republicanismo, ou reconhecesse que esse republicanismo “diferente do de Jules Ferry” — e sua ousadia emancipadora na pedagogia — é menos cria de Platão e mais de Auguste Comte — e que “República” em Platão é mais fruto de uma indecorosa tradução latina da famosa Politheia, a qual deu um caráter indevidamente conservador ao que foi tão potente e emancipador entre os romanos e mesmo para Maquiavel (embora Rancière comente ligeiramente isso).
De todo modo, a escolha do republicanismo como antagonista de democracia não se perde de um todo, pois (1) em seu uso nos círculos conservadores franceses é esse o texto da máscara do poder e do poder mascarado; (2) o positivismo, evidentemente, está situado no campo da filosofia tradicional e, entre ele e o platonismo, existe uma coincidência na ideia de que os comuns não devem governar, mas sim os aptos para mandar segundo um critério transcendental — e obviamente criado pelo próprio poder em sua auto-ordenação.
Enfatizar o caráter [estruturalmente] positivista do
republicanismo francês, aliás, não é mero preciosismo: na verdade, isso
ajuda a entender na proximidade entre o que o livro diz e a nossa
realidade verde-amarela; a república brasileira nasce, por inspiração
positivista, sem povo, calcada na ideia de um sistema impessoal, laico e
destinado a ter uma igualdade abstrata como régua mestra.
Que problema teria tal ideia que nos “ilumina” desde
1889? No nosso caso — no mesmo sentido do francês, só que de um jeito
mais agressivo — essa igualdade de fundo sempre serviu para mascarar e
manter as desigualdades de fato, pois ao exigir a plena igualdade
jurídica [numa sociedade marcada pela concorrência e não pela
colaboração] entre desiguais de fato, isso só poderia terminar na
própria manutenção da desigualdade histórica, isto é, a diferença para
pior.
No Brasil, pois, políticas sociais como as cotas
causam escândalo público, pois invertem a matriz republicana-positivista
na medida em que diferenciam a forma dos ingressos para gerar igualdade
material. A igualdade quando deixa de ser ponto de partida para se
tornar ponto de chegada implode o “republicanismo” e, por conseguinte,
afirma a democracia. Isso é inadmissível por um costume conservador bem
nosso.
Por tal razão, é comum em nosso meio que essas
tentativas de democratização sejam desqualificadas, pois sempre
expressam as intervenções políticas do qualquer um, ou em prol do
qualquer um, no campo comum: por esse viés, não caberia a um metalúrgico
querer ser presidente da república, um gari desejar feliz ano novo em
rede nacional de televisão ou um casal homossexual se casar. É o juízo
binário do é [a priori] igual\não-igual.
Isso pesa sobretudo em matéria de política, na qual
trabalhadores, índios e pobres deveriam se deixar comandar pelos varões
da república: eles não seriam competentes formalmente. É claro, as
condições históricas brasileiras, seu passado colonial e escravagista,
tornam esse republicanismo pior, mas em termos conceituais não estamos
falando de uma substância diferente da realidade na qual está o autor.
Dessa forma, para Rancière, tanto no Brasil quanto na
França — bem como nisso que chamamos de “mundo livre” –, não temos um
regime democrático. Porque a democracia estaria sempre além do Estado.
Há um regime misto entre oligarquia e democracia, o qual é, contudo,
fruto das próprias lutas que impedem o monopólio do mando pelo oligarcas
— o que não é de um todo ruim: o que é mau, na verdade, seria se
conformar com isso. Ainda assim, estamos diante do avanço do
economicismo de mercado que, baseado no ilimitado poder da riqueza, o
que abala hoje até mesmo essa construção precária da oligarquia
matizada.
Assim, Rancière não faz concessão alguma para uma
filosofia neo-niilista: no fim das contas, com razão, não é preciso
discutir qualquer vazio que possa haver na dicotomia entre cidadania e
os direitos humanos, pois um serve onde o outro não alcança; é o
interesse prático, na luta, que determina a importância de qualquer um
dos dois. Valorizemos a cidadania para os humanos excluídos dela e a
humanidade dos cidadãos desumanizados!
Tudo isso faz de O Ódio à Democracia um
pequeno grande livro. Enfim, um manifesto de amor incondicional à
democracia, pois o autor a coloca como o que de melhor os humanos já
produziram em matéria de política. E talvez Rancière esteja mesmo certo
a respeito disso.
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Resenha de:
Rancière, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, 128 páginas
Rancière, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, 128 páginas
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Hugo Albuquerque é advogado e autor do blog "O Descurvo".
Fonte: Carta Capital
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