dezembro 06, 2014

"Jacques Rancière: a democracia deles e a nossa", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Num livro atualíssimo, filósofo francês sugere: o que está em crise não é o governo da multidão, mas a farsa que procura inviabilizá-lo"

Jacques Rancière: a democracia deles e a nossa

Num livro atualíssimo, filósofo francês sugere: o que está em crise não é o governo da multidão, mas a farsa que procura inviabilizá-lo 
por Hugo Albuquerque 
 
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Recém-lançado no Brasil, O Ódio à Democracia, do filósofo francês Jacques Rancière, é um ensaio potente, pronto a ser lido de um fôlego só. Embora tenha sido publicado na França há quase dez anos, o livro nos é incrivelmente atual. Mais ainda: ele parece ter um tom quase profético quando olhamos para o Brasil de hoje.

Afinal de contas, estamos atolados em um pântano feito de manifestações fascistas que alentam a ideia de um novo golpe militar, de relatos incessantes de agressões físicas e intimidações nas redes sociais sobre quem não se alinha com essas pulsões (sobretudo eleitoralmente), de casos crescentes de crimes de ódio contra homossexuais, índios e outras minorias, da ideia cada vez mais consensual de que a política é ruim, temos mais é de nos contentar com o gerencialismo e assim por diante.


Rancière problematiza o que seria essa democracia sobre a qual tanto falamos, não raro perdida em meio a tantas confusões. Mas ele também fala sobre seus adversários: e eles não são apenas as manifestações de intolerância pontuais ou os projetos neo-autoritários, mas de um ponto quase sempre ignorado pelo pensamento político, que é o que há de autoritário no nosso próprio sistema político “normal”. O fascismo cotidiano e mascarado de cada dia. Na França, a máscara do poder na normalidade atende pelo nome de republicanismo.

E a obra acerta em cheio ao notar que a novidade da democracia, tal como ela nasceu em Atenas, não residia na instituição do voto ou do sufrágio, mas no fato dela ter tornado comum entre os cidadãos a participação política por meio de dois vetores essenciais: (1) a  distribuição dos eventuais cargos fixos por meio de sorteio; (2) a vinculação dos cidadãos pelos demos, divisões geográficas de Atenas, e não por vinculações hierárquicas.

O significado profundo do sorteio, que nos parece absurdamente chocante, é que se o eventual representante poderia ser escolhido assim, aleatoriamente, a democracia seria, pois, o governo do qualquer um. Se todas as outras formas efetivas de governo se fundavam em uma hierarquia determinada — de idade, de saber, de renda etc –, o advento democrático propunha que para “governar” não seria preciso ser o mais velho, o mais rico ou o (dito) mais sábio, mas sim fazer parte do corpo cidadão, na imanência de sua multiplicidade — isto é, em meio às suas diferenças, estranhamentos e até contradições.

A vinculação aos demos — e democracia, não custa lembrar, não signica “poder do povo”, mas sim o poder ou governo dos demos –, por outro lado, vinculou à territorialidade (de cada um na pólis) o índice organizacional da política, consistindo em uma suprema astúcia: a distribuição territorial, em si, não consistia em um índice hierarquizador: ao contrário, ele era perfeitamente horizontal naquele contexto.

Em contraponto à democracia, estaria, pois, a república. E segundo o autor, o republicanismo é, desde Platão, o inverso da democracia, o regime pelo qual a política volta a estar hierarquizada em um regime de competências. Isso perduraria até hoje na França. Ainda que tenha se oposto à monarquia e ao tradicionalismo da nobreza e da religião na França, ele foi uma forma de reintrodução do poder, só que de forma impessoal, anônima e sistemática.

É evidente que Rancière faria melhor caso se referisse a “positivismo” no lugar de republicanismo, ou reconhecesse que esse republicanismo “diferente do de Jules Ferry” — e sua ousadia emancipadora na pedagogia — é menos cria de Platão e mais de Auguste Comte — e que “República” em Platão é mais fruto de uma indecorosa tradução latina da famosa Politheia, a qual deu um caráter indevidamente conservador ao que foi tão potente e emancipador entre os romanos e mesmo para Maquiavel (embora Rancière comente ligeiramente isso).

De todo modo, a escolha do republicanismo como antagonista de democracia não se perde de um todo, pois (1) em seu uso nos círculos conservadores franceses é esse o texto da máscara do poder e do poder mascarado; (2) o positivismo, evidentemente, está situado no campo da filosofia tradicional e, entre ele e o platonismo, existe uma coincidência na ideia de que os comuns não devem governar, mas sim os aptos para mandar segundo um critério transcendental — e obviamente criado pelo próprio poder em sua auto-ordenação.

Enfatizar o caráter [estruturalmente] positivista do republicanismo francês, aliás, não é mero preciosismo: na verdade, isso ajuda a entender na proximidade entre o que o livro diz e a nossa realidade verde-amarela; a república brasileira nasce, por inspiração positivista, sem povo, calcada na ideia de um sistema impessoal, laico e destinado a ter uma igualdade abstrata como régua mestra.

Que problema teria tal ideia que nos  “ilumina” desde 1889? No nosso caso — no mesmo sentido do francês, só que de um jeito mais agressivo — essa igualdade de fundo sempre serviu para mascarar e manter as desigualdades de fato, pois ao exigir a plena igualdade jurídica [numa sociedade marcada pela concorrência e não pela colaboração] entre desiguais de fato, isso só poderia terminar na própria manutenção da desigualdade histórica, isto é, a diferença para pior.

No Brasil, pois, políticas sociais como as cotas causam escândalo público, pois invertem a matriz republicana-positivista na medida em que diferenciam a forma dos ingressos para gerar igualdade material. A igualdade quando deixa de ser ponto de partida para se tornar ponto de chegada implode o “republicanismo” e, por conseguinte, afirma a democracia. Isso é inadmissível por um costume conservador bem nosso.

Por tal razão, é comum em nosso meio que essas tentativas de democratização sejam desqualificadas, pois sempre expressam as intervenções políticas do qualquer um, ou em prol do qualquer um, no campo comum: por esse viés, não caberia a um metalúrgico querer ser presidente da república, um gari desejar feliz ano novo em rede nacional de televisão ou um casal homossexual se casar. É o juízo binário do é [a priori] igual\não-igual.

Isso pesa sobretudo em matéria de política, na qual trabalhadores, índios e pobres deveriam se deixar comandar pelos varões da república: eles não  seriam competentes formalmente. É claro, as condições históricas brasileiras, seu passado colonial e escravagista, tornam esse republicanismo pior, mas em termos conceituais não estamos falando de uma substância diferente da realidade na qual está o autor.

Dessa forma, para Rancière, tanto no Brasil quanto na França — bem como nisso que chamamos de “mundo livre” –, não temos um regime democrático. Porque a democracia estaria sempre além do Estado. Há um regime misto entre oligarquia e democracia, o qual é, contudo, fruto das próprias lutas que impedem o monopólio do mando pelo oligarcas — o que não é de um todo ruim: o que é mau, na verdade, seria se conformar com isso. Ainda assim, estamos diante do avanço do economicismo de mercado que, baseado no ilimitado poder da riqueza, o que abala hoje até mesmo essa construção precária da oligarquia matizada.

Assim, Rancière não faz concessão alguma para uma filosofia neo-niilista: no fim das contas, com razão, não é preciso discutir qualquer vazio que possa haver na dicotomia entre cidadania e os direitos humanos, pois um serve onde o outro não alcança; é o interesse prático, na luta, que determina a importância de qualquer um dos dois. Valorizemos a cidadania para os humanos excluídos dela e a humanidade dos cidadãos desumanizados!

E ainda que Rancière retome a democracia antiga quase como um ideal, ele não erra em última análise: mesmo que a democracia antiga seja menos avançada do que ele advoga, ao concebê-la como movimento, como tendência de ir além na busca de uma coexistência para melhor, encontramos, quem sabe, uma chave para entender melhor as sucessivas ressignificações do termo ao longo do tempo, incorporando mulheres, humanos, meio-ambiente etc etc.

Tudo isso faz de O Ódio à Democracia um pequeno grande livro. Enfim, um manifesto de amor incondicional à democracia, pois o autor a coloca como o que de melhor os humanos já produziram em matéria de política. E talvez  Rancière esteja mesmo certo a respeito disso.


 
Resenha de:
Rancière, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, 128 páginas


Hugo Albuquerque é advogado e autor do blog "O Descurvo".

Fonte: Carta Capital

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