dezembro 26, 2014

"Bergson: o que é Filosofia?", por Amauri Ferreira

PICICA: "Para nos adaptarmos à vida social é necessário, por meio do reconhecimento habitual, distinguirmos objetos que percebemos justapostos simultaneamente no espaço para agirmos sobre eles, onde frequentemente nos servimos do número, da linguagem e do raciocínio inteligente para superarmos resistências materiais por meio da fabricação de instrumentos artificiais. Somos capazes de conhecer as relações de causa e efeito entre certas coisas exteriores a nós, de desenvolvermos o conhecimento científico, de dominarmos uma porção da matéria inerte através da mecânica, em busca de bem-estar e prazer. Nos agarramos a ideias gerais – e aos hábitos que caracterizam a moral fechada – para nos conservarmos. Mas, diante de ideias consideradas verdadeiras que sustentam a vida social de uma determinada época, surge, de modo inesperado, alguém que ousa romper com o senso comum: o filósofo. “Diante de ideias correntemente aceitas, de teses que parecem evidentes, de afirmações que haviam passado até então por científicas, assopra no ouvido do filósofo a palavra: Impossível. […] Força singular, essa potência intuitiva da negação” (Bergson, O Pensamento e o Movente). As ideias que o filósofo irá expor através da sua obra virão, primeiramente, desta rejeição de ideias consideradas socialmente como à prova de críticas. Em seguida, ele irá avançar no desenvolvimento da sua doutrina servindo-se da filosofia e da ciência de seu tempo e, sem dúvida, mergulhará nesta jornada que, embora o resultado seja incerto, segue adiante e aceita riscos porque sente que tocou em algo que o impulsiona à materialização da obra."

Bergson: o que é Filosofia?

 
bergson 


 Para nos adaptarmos à vida social é necessário, por meio do reconhecimento habitual, distinguirmos objetos que percebemos justapostos simultaneamente no espaço para agirmos sobre eles, onde frequentemente nos servimos do número, da linguagem e do raciocínio inteligente para superarmos resistências materiais por meio da fabricação de instrumentos artificiais. Somos capazes de conhecer as relações de causa e efeito entre certas coisas exteriores a nós, de desenvolvermos o conhecimento científico, de dominarmos uma porção da matéria inerte através da mecânica, em busca de bem-estar e prazer. Nos agarramos a ideias gerais – e aos hábitos que caracterizam a moral fechada – para nos conservarmos. Mas, diante de ideias consideradas verdadeiras que sustentam a vida social de uma determinada época, surge, de modo inesperado, alguém que ousa romper com o senso comum: o filósofo. “Diante de ideias correntemente aceitas, de teses que parecem evidentes, de afirmações que haviam passado até então por científicas, assopra no ouvido do filósofo a palavra: Impossível. […] Força singular, essa potência intuitiva da negação” (Bergson, O Pensamento e o Movente). As ideias que o filósofo irá expor através da sua obra virão, primeiramente, desta rejeição de ideias consideradas socialmente como à prova de críticas. Em seguida, ele irá avançar no desenvolvimento da sua doutrina servindo-se da filosofia e da ciência de seu tempo e, sem dúvida, mergulhará nesta jornada que, embora o resultado seja incerto, segue adiante e aceita riscos porque sente que tocou em algo que o impulsiona à materialização da obra.

Para esse despertar filosófico, que é necessariamente subversivo, é indispensável uma suspensão dos nossos hábitos que correspondem às exigências da vida social. Para Bergson, somos constituídos por uma zona de indeterminação que concerne ao intervalo entre o estímulo recebido (sonoro, visual, olfativo…) e a resposta efetuada através dos nossos mecanismos motores. Em razão da suspensão das ações utilitárias, as nossas lembranças passam a desfilar em nossa consciência com maior riqueza de detalhes, isto é, o nosso passado coexiste com o presente ou, para falar de outro modo, quando percebemos um objeto qualquer no mundo exterior, sentimos e nos recordamos de algo. Porém, a vida social exige de nós ações utilitárias, que implicam uma diminuição deste intervalo que caracteriza a zona de indeterminação, recalcando uma atualização mais rica do nosso passado e, sem dúvida, nos impedindo de experimentarmos o tempo real, onde cada instante percebido por nós se compõe com todo o nosso passado, razão pela qual mudamos sem cessar. Bergson denomina duração este tempo constituído pela continuidade dos estados psicológicos. Portanto, a duração se distingue do tempo espacializado que é representado simbolicamente pelo número.

Em vez de se dirigir para a fixidez das coisas exteriores que nos aparecem como descontínuas, o filósofo volta-se para si mesmo, onde há continuidade de sensações e sentimentos, mudanças qualitativas que o enriquecem gradualmente, pois somente a partir dessa direção voltada para si mesmo que ele pode fazer com que seja despertada a intuição da duração: “Nada mais de estados inertes, nada mais de coisas mortas”, afirma Bergson; “apenas a mobilidade da qual é feita a estabilidade da vida. Uma visão desse gênero, na qual a realidade aparece como contínua e como indivisível, está no caminho que leva para a intuição filosófica” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Para acontecer esse despertar da intuição filosófica, a experiência de uma consciência que se abstém de agir de modo utilitário é plenamente estimulada pelo filósofo, que ocorre ao mesmo tempo em que ele amplia a sua capacidade de sentir o que as excitações materiais produzem no seu corpo e no seu espírito. Essa experiência, que é possível a qualquer um de nós, é impedida quando nos limitamos ao reconhecimento habitual, cuja atenção passa de um objeto percebido a outro objeto: de uma notícia de jornal passamos rapidamente para outra notícia, de um canal de televisão a outro canal, de um site na internet a outro… O embotamento dos sentidos e o esmagamento da experiência de que mudamos sem cessar são efeitos de um modo de existir reduzido ao utilitarismo, à comunicação gregária, à necessidade de nos adaptarmos ao meio para sobrevivermos.

Uma relação simpática com o objeto percebido, por meio do reconhecimento atento, permite, enfim, sentirmos que não estamos separados da continuidade material que nos afeta a todo instante. A intuição surge dessa experiência que, da perspectiva da conservação gregária, é inútil, porém, ela é essencial para que seja desenvolvida uma atenção suplementar, que é a do espírito sobre ele mesmo: “Ela [a intuição] representa a atenção que o espírito presta em si mesmo, de sobejo, enquanto se fixa sobre a matéria, seu objeto. Essa atenção suplementar pode ser metodicamente cultivada e desenvolvida” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Ora, Bergson sublinha que, apesar da raridade da experiência dessa atenção suplementar, ela pode, no entanto, ser cultivada e desenvolvida por meio de métodos que podemos nos servir. Mas em qualquer método que nos leve à intuição da duração estará implicada algumas noções essenciais do bergsonismo: suspensão do mecanismo sensório-motor, ampliação da zona de indeterminação, atualização crescente do passado no presente, atenção sobre o objeto (que pode ser um livro, uma música, uma paisagem), estímulo da nossa capacidade de sentir. Evidentemente, também são noções essenciais para que alguém se torne filósofo.

Por partir de uma intuição original, ou seja, do conhecimento da vida de dentro como impulso para criar, o filósofo não imita, ou melhor, não pode imitar a filosofia de ninguém. Essa ideia de “falta de originalidade” somente aparece ao leitor por meio de uma leitura apressada e, por isso, superficial, pois, de fato, diante da obra de um grande pensador, “ali mesmo, onde parece repetir coisas já ditas, [o filósofo] as pensa à sua maneira” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Certamente ele foi influenciado pelas ideias de outros filósofos e cientistas, porém, como ele as recebeu, como ele as submeteu à intuição e como ele soube comunicar por meio das palavras a sua visão original da vida, é algo profundamente verdadeiro e singular. Ao ser atingido por uma ideia original, o filósofo extrai da vida o impulso para comunicar o seu pensamento – seus conceitos, então, levam a sua assinatura. Apenas aparentemente, ou seja, pela forma, sua obra pode ser considerada como uma “evolução na história da filosofia”, mas, de fato, através de um exame mais profundo, sua obra nos revelará sua novidade e simplicidade, e não uma “evolução”: “O filósofo poderia ter vindo vários séculos antes; teria lidado com uma outra filosofia e uma outra ciência; ter-se-ia posto outros problemas; ter-se-ia expresso por outras fórmulas; nenhum capítulo, talvez, dos livros que escreveu teria sido como é; e no entanto ele teria dito a mesma coisa” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Bergson, que foi um grande leitor de Espinosa, considera o livro principal deste filósofo, a Ética, como grande exemplo de contraste entre a forma e o fundo de uma obra filosófica. É o fundo que sustenta a forma, é o pensamento vigoroso que está por trás do desfile de proposições, demonstrações, escólios, corolários. “É, por trás da pesada massa dos conceitos aparentados ao cartesianismo e ao aristotelismo, a intuição que foi a de Espinosa, intuição que nenhuma fórmula, por simples que seja, será suficientemente simples para exprimir. […] Quanto mais remontamos para essa intuição original, tanto melhor compreendemos que, caso Espinosa tivesse vivido antes de Descartes, teria sem dúvida escrito algo diferente do que escreveu, mas que, Espinosa vivendo e escrevendo, teríamos certeza de ter apesar de tudo o espinosismo” (Bergson, O Pensamento e o Movente).

Em uma carta pouco conhecida (de 12 de setembro de 1909), escrita em homenagem a Gabriel Tarde, Bergson enfatiza a existência de dois gêneros de pensadores que a história da filosofia nos ensina a distinguir. Existem os que “caminham metodicamente rumo ao seu objetivo, elevando-se de grau em grau até uma síntese querida e premeditada” (Bergson, carta em homenagem a Gabriel Tarde). Esta busca pela unificação do saber soa estranho aos ouvidos de Bergson, porque mantém o filósofo condicionado a levar adiante os resultados que o cientista alcançou através da experiência. Deste modo, o filósofo se limita a induzir e a deduzir, sem aceitar riscos, seguindo a mesma direção da ciência ao generalizar os mesmos fatos: “Há uma certa concepção da filosofia que quer que todo esforço do filósofo tenda a abarcar numa grande síntese os resultados das ciências particulares. […] Estranha pretensão, na verdade! Como a profissão de filósofo poderia conferir àquele que a exerce a capacidade de avançar mais longe do que a ciência na mesma direção que ela?” (Bergson, O Pensamento e o Movente).

Mas existem aqueles pensadores que assumem riscos, que têm consciência de que nem tudo que a filosofia nos diz é verificado ou verificável, porque simplesmente sentem que estão certos daquilo que querem nos comunicar. São os que vão, “sem metódo aparente, aonde sua fantasia os conduz, mas cujo espírito é tão bem afinado ao uníssono das coisas que todas as suas ideias se harmonizam naturalmente entre elas. […] Eles são filósofos sem haver procurado sê-lo, sem haver pensado nisso. Sua reflexão, partindo não importa onde e engajando-se em não importa que caminho, arranja-se para conduzi-las sempre ao mesmo ponto” (Bergson, carta em homenagem a Gabriel Tarde). Para Bergson, a tarefa da filosofia não é fazer uma síntese mais sofisticada da ciência. Sua tarefa é outra: se dirigir para a experiência da duração. Ora, a experiência da duração implica consciência, direção para o interior de nós mesmos, onde a intuição filosófica pode ser, inclusive, intensificada pela emoção criadora. Portanto, o filósofo deve seguir esse movimento da vida, que é a criação, para colocar verdadeiros problemas, pois, alerta Bergson, a história da filosofia errou durante muito tempo em se deter nos falsos problemas, cujas questões são inerentes à estrutura da nossa inteligência, tais como o Ser, o não-Ser, o Nada, o Fundamento – problemas que nos mantém distantes do conhecimento da vida. Ao contrário da ciência, que nos promete bem-estar e prazer, a filosofia pode nos tornar alegres e, também, como ele sublinha na carta em homenagem a Tarde, “nos tornar melhores e mais fortes”. Esta é a força subversiva da filosofia que não pode ser esquecida.

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