PICICA: "Para nos adaptarmos à vida social é
necessário, por meio do reconhecimento habitual, distinguirmos objetos
que percebemos justapostos simultaneamente no espaço para agirmos sobre
eles, onde frequentemente nos servimos do número, da linguagem e do
raciocínio inteligente para superarmos resistências materiais por meio
da fabricação de instrumentos artificiais. Somos capazes de conhecer as
relações de causa e efeito entre certas coisas exteriores a nós, de
desenvolvermos o conhecimento científico, de dominarmos uma porção da
matéria inerte através da mecânica, em busca de bem-estar e prazer. Nos
agarramos a ideias gerais – e aos hábitos que caracterizam a moral
fechada – para nos conservarmos. Mas, diante de ideias consideradas
verdadeiras que sustentam a vida social de uma determinada época, surge,
de modo inesperado, alguém que ousa romper com o senso comum: o
filósofo. “Diante de ideias correntemente aceitas, de teses que
parecem evidentes, de afirmações que haviam passado até então por
científicas, assopra no ouvido do filósofo a palavra: Impossível. […]
Força singular, essa potência intuitiva da negação” (Bergson, O
Pensamento e o Movente). As ideias que o filósofo irá expor através da
sua obra virão, primeiramente, desta rejeição de ideias consideradas
socialmente como à prova de críticas. Em seguida, ele irá avançar no
desenvolvimento da sua doutrina servindo-se da filosofia e da ciência de
seu tempo e, sem dúvida, mergulhará nesta jornada que, embora o
resultado seja incerto, segue adiante e aceita riscos porque sente que
tocou em algo que o impulsiona à materialização da obra."
Bergson: o que é Filosofia?
- por Amauri Ferreira
Para nos adaptarmos à vida social é
necessário, por meio do reconhecimento habitual, distinguirmos objetos
que percebemos justapostos simultaneamente no espaço para agirmos sobre
eles, onde frequentemente nos servimos do número, da linguagem e do
raciocínio inteligente para superarmos resistências materiais por meio
da fabricação de instrumentos artificiais. Somos capazes de conhecer as
relações de causa e efeito entre certas coisas exteriores a nós, de
desenvolvermos o conhecimento científico, de dominarmos uma porção da
matéria inerte através da mecânica, em busca de bem-estar e prazer. Nos
agarramos a ideias gerais – e aos hábitos que caracterizam a moral
fechada – para nos conservarmos. Mas, diante de ideias consideradas
verdadeiras que sustentam a vida social de uma determinada época, surge,
de modo inesperado, alguém que ousa romper com o senso comum: o
filósofo. “Diante de ideias correntemente aceitas, de teses que
parecem evidentes, de afirmações que haviam passado até então por
científicas, assopra no ouvido do filósofo a palavra: Impossível. […]
Força singular, essa potência intuitiva da negação” (Bergson, O
Pensamento e o Movente). As ideias que o filósofo irá expor através da
sua obra virão, primeiramente, desta rejeição de ideias consideradas
socialmente como à prova de críticas. Em seguida, ele irá avançar no
desenvolvimento da sua doutrina servindo-se da filosofia e da ciência de
seu tempo e, sem dúvida, mergulhará nesta jornada que, embora o
resultado seja incerto, segue adiante e aceita riscos porque sente que
tocou em algo que o impulsiona à materialização da obra.
Para esse despertar filosófico, que é
necessariamente subversivo, é indispensável uma suspensão dos nossos
hábitos que correspondem às exigências da vida social. Para Bergson,
somos constituídos por uma zona de indeterminação que concerne ao
intervalo entre o estímulo recebido (sonoro, visual, olfativo…) e a
resposta efetuada através dos nossos mecanismos motores. Em razão da
suspensão das ações utilitárias, as nossas lembranças passam a desfilar
em nossa consciência com maior riqueza de detalhes, isto é, o nosso
passado coexiste com o presente ou, para falar de outro modo, quando
percebemos um objeto qualquer no mundo exterior, sentimos e nos
recordamos de algo. Porém, a vida social exige de nós ações utilitárias,
que implicam uma diminuição deste intervalo que caracteriza a zona de
indeterminação, recalcando uma atualização mais rica do nosso passado e,
sem dúvida, nos impedindo de experimentarmos o tempo real, onde cada
instante percebido por nós se compõe com todo o nosso passado, razão
pela qual mudamos sem cessar. Bergson denomina duração este tempo
constituído pela continuidade dos estados psicológicos. Portanto, a
duração se distingue do tempo espacializado que é representado
simbolicamente pelo número.
Em vez de se dirigir para a fixidez das
coisas exteriores que nos aparecem como descontínuas, o filósofo
volta-se para si mesmo, onde há continuidade de sensações e sentimentos,
mudanças qualitativas que o enriquecem gradualmente, pois somente a
partir dessa direção voltada para si mesmo que ele pode fazer com que
seja despertada a intuição da duração: “Nada mais de estados inertes, nada mais de coisas mortas”, afirma Bergson; “apenas
a mobilidade da qual é feita a estabilidade da vida. Uma visão desse
gênero, na qual a realidade aparece como contínua e como indivisível,
está no caminho que leva para a intuição filosófica” (Bergson, O
Pensamento e o Movente). Para acontecer esse despertar da intuição
filosófica, a experiência de uma consciência que se abstém de agir de
modo utilitário é plenamente estimulada pelo filósofo, que ocorre ao
mesmo tempo em que ele amplia a sua capacidade de sentir o que as
excitações materiais produzem no seu corpo e no seu espírito. Essa
experiência, que é possível a qualquer um de nós, é impedida quando nos
limitamos ao reconhecimento habitual, cuja atenção passa de um objeto
percebido a outro objeto: de uma notícia de jornal passamos rapidamente
para outra notícia, de um canal de televisão a outro canal, de um site
na internet a outro… O embotamento dos sentidos e o esmagamento da
experiência de que mudamos sem cessar são efeitos de um modo de existir
reduzido ao utilitarismo, à comunicação gregária, à necessidade de nos
adaptarmos ao meio para sobrevivermos.
Uma relação simpática com o objeto
percebido, por meio do reconhecimento atento, permite, enfim, sentirmos
que não estamos separados da continuidade material que nos afeta a todo
instante. A intuição surge dessa experiência que, da perspectiva da
conservação gregária, é inútil, porém, ela é essencial para que seja
desenvolvida uma atenção suplementar, que é a do espírito sobre ele
mesmo: “Ela [a intuição] representa a atenção que o espírito presta
em si mesmo, de sobejo, enquanto se fixa sobre a matéria, seu objeto.
Essa atenção suplementar pode ser metodicamente cultivada e desenvolvida”
(Bergson, O Pensamento e o Movente). Ora, Bergson sublinha que, apesar
da raridade da experiência dessa atenção suplementar, ela pode, no
entanto, ser cultivada e desenvolvida por meio de métodos que podemos
nos servir. Mas em qualquer método que nos leve à intuição da duração
estará implicada algumas noções essenciais do bergsonismo: suspensão do
mecanismo sensório-motor, ampliação da zona de indeterminação,
atualização crescente do passado no presente, atenção sobre o objeto
(que pode ser um livro, uma música, uma paisagem), estímulo da nossa
capacidade de sentir. Evidentemente, também são noções essenciais para
que alguém se torne filósofo.
Por partir de uma intuição original, ou
seja, do conhecimento da vida de dentro como impulso para criar, o
filósofo não imita, ou melhor, não pode imitar a filosofia de ninguém.
Essa ideia de “falta de originalidade” somente aparece ao leitor por
meio de uma leitura apressada e, por isso, superficial, pois, de fato,
diante da obra de um grande pensador, “ali mesmo, onde parece repetir coisas já ditas, [o filósofo] as pensa à sua maneira”
(Bergson, O Pensamento e o Movente). Certamente ele foi influenciado
pelas ideias de outros filósofos e cientistas, porém, como ele as
recebeu, como ele as submeteu à intuição e como ele soube comunicar por
meio das palavras a sua visão original da vida, é algo profundamente
verdadeiro e singular. Ao ser atingido por uma ideia original, o
filósofo extrai da vida o impulso para comunicar o seu pensamento – seus
conceitos, então, levam a sua assinatura. Apenas aparentemente, ou
seja, pela forma, sua obra pode ser considerada como uma “evolução na
história da filosofia”, mas, de fato, através de um exame mais profundo,
sua obra nos revelará sua novidade e simplicidade, e não uma
“evolução”: “O filósofo poderia ter vindo vários séculos antes;
teria lidado com uma outra filosofia e uma outra ciência; ter-se-ia
posto outros problemas; ter-se-ia expresso por outras fórmulas; nenhum
capítulo, talvez, dos livros que escreveu teria sido como é; e no
entanto ele teria dito a mesma coisa” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Bergson, que foi um grande leitor de Espinosa, considera o livro principal deste filósofo, a Ética,
como grande exemplo de contraste entre a forma e o fundo de uma obra
filosófica. É o fundo que sustenta a forma, é o pensamento vigoroso que
está por trás do desfile de proposições, demonstrações, escólios,
corolários. “É, por trás da pesada massa dos conceitos aparentados
ao cartesianismo e ao aristotelismo, a intuição que foi a de Espinosa,
intuição que nenhuma fórmula, por simples que seja, será suficientemente
simples para exprimir. […] Quanto mais remontamos para essa intuição
original, tanto melhor compreendemos que, caso Espinosa tivesse vivido
antes de Descartes, teria sem dúvida escrito algo diferente do que
escreveu, mas que, Espinosa vivendo e escrevendo, teríamos certeza de
ter apesar de tudo o espinosismo” (Bergson, O Pensamento e o Movente).
Em uma carta pouco conhecida (de 12 de
setembro de 1909), escrita em homenagem a Gabriel Tarde, Bergson
enfatiza a existência de dois gêneros de pensadores que a história da
filosofia nos ensina a distinguir. Existem os que “caminham metodicamente rumo ao seu objetivo, elevando-se de grau em grau até uma síntese querida e premeditada”
(Bergson, carta em homenagem a Gabriel Tarde). Esta busca pela
unificação do saber soa estranho aos ouvidos de Bergson, porque mantém o
filósofo condicionado a levar adiante os resultados que o cientista
alcançou através da experiência. Deste modo, o filósofo se limita a
induzir e a deduzir, sem aceitar riscos, seguindo a mesma direção da
ciência ao generalizar os mesmos fatos: “Há uma certa concepção da
filosofia que quer que todo esforço do filósofo tenda a abarcar numa
grande síntese os resultados das ciências particulares. […] Estranha
pretensão, na verdade! Como a profissão de filósofo poderia conferir
àquele que a exerce a capacidade de avançar mais longe do que a ciência
na mesma direção que ela?” (Bergson, O Pensamento e o Movente).
Mas existem aqueles pensadores que
assumem riscos, que têm consciência de que nem tudo que a filosofia nos
diz é verificado ou verificável, porque simplesmente sentem que estão
certos daquilo que querem nos comunicar. São os que vão, “sem metódo
aparente, aonde sua fantasia os conduz, mas cujo espírito é tão bem
afinado ao uníssono das coisas que todas as suas ideias se harmonizam
naturalmente entre elas. […] Eles são filósofos sem haver procurado
sê-lo, sem haver pensado nisso. Sua reflexão, partindo não importa onde e
engajando-se em não importa que caminho, arranja-se para conduzi-las
sempre ao mesmo ponto” (Bergson, carta em homenagem a Gabriel
Tarde). Para Bergson, a tarefa da filosofia não é fazer uma síntese mais
sofisticada da ciência. Sua tarefa é outra: se dirigir para a
experiência da duração. Ora, a experiência da duração implica
consciência, direção para o interior de nós mesmos, onde a intuição
filosófica pode ser, inclusive, intensificada pela emoção criadora.
Portanto, o filósofo deve seguir esse movimento da vida, que é a
criação, para colocar verdadeiros problemas, pois, alerta Bergson, a
história da filosofia errou durante muito tempo em se deter nos falsos
problemas, cujas questões são inerentes à estrutura da nossa
inteligência, tais como o Ser, o não-Ser, o Nada, o Fundamento –
problemas que nos mantém distantes do conhecimento da vida. Ao contrário
da ciência, que nos promete bem-estar e prazer, a filosofia pode nos
tornar alegres e, também, como ele sublinha na carta em homenagem a
Tarde, “nos tornar melhores e mais fortes”. Esta é a força subversiva da filosofia que não pode ser esquecida.
Fonte: Razão Inadequada
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