PICICA: "Eles ousaram nos anos 60 e hoje reinventam sua irreverência, ampliam fronteiras da vida e inovam para as próximas gerações"
Outra velhice é possível?
– 29 de junho de 2015
Por Lilian Primi, na Caros Amigos | Imagem: Sidnei Martins
– Então, você continua usando drogas?
– Hã, como? O que você está pensando? – Sem saber se ficava bravo ou se ria, o velho chacoalhava as mãos ao lado das orelhas, como se pudesse desfazer a pergunta no ar.
O velho é o poeta Claudio Willer, hoje com 74 anos, precursor do movimento beat no Brasil, o terror da São Paulo dos anos 60, amigo e parceiro intelectual de Roberto Piva – outro poeta ainda mais maldito. E na cabeça da repórter, interessada em vasculhar sua velhice, passavam as histórias que tinha lido e ouvido sobre aquela turma desde muito tempo.
O pretexto da entrevista era buscar experiências reais do que os estudos demográficos vêm mostrando a partir de meados da primeira década deste século. Os velhos de hoje, que em parte são os hippies de ontem, não se comportam nem são exatamente o que se espera de um vovô. “É a geração que fez uma grande revolução de comportamento, principalmente entre as mulheres, e que agora está chegando aos 60 até 70 anos”, diz a economista Ana Amélia Camarano, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso.
Ana é autora do livro Os Novos Idosos Brasileiros – Muito Além dos 60?, em que detalha esse novo perfil, e também coordenadora do estudo Novo Regime Demográfico, e afirma que vivemos um momento de contração da população, associada a um superenvelhecimento. Movimentos em certa medida provocados pela vitória de parte dos ideais da geração Paz e Amor. “Tivemos a pílula, na questão reprodutiva, que desvinculou o sexo da maternidade; e a legalização do divórcio. Hoje ninguém mais casa virgem e há uma tolerância muito maior com a homossexualidade”, explica. A pesquisadora diz que ainda resta muito do antigo conservadorismo, mas liberdades que estavam na pauta da militância dos anos 60 hoje estão disseminadas por toda a sociedade, incluindo a classe média, sempre preocupada em preservar os costumes. “Porque depende de aceitação social”, explica Ana.
O superenvelhecimento da população se dá porque essas mudanças nos arranjos sociais acontecem ao mesmo tempo em que cresce a expectativa de vida, graças aos avanços da medicina. “Hoje há uma supervalorização da carreira profissional da mulher associada à desvalorização da maternidade. Isso veio depois, com forte ajuda da mídia, e está nos levando a um grande desequilíbrio. Somos uma sociedade que não se reproduz. Está difícil nascer e (por conta dos avanços da medicina) está difícil morrer também”, avalia Ana Amélia. “Se você for ver as novelas, revistas femininas, tudo mudou”, continua. “A mídia valorizou demais certos aspectos da revolução social”.
Por exemplo, se antes a família feliz das novelas era aquela em que havia um casal com muitos filhos, em que a mãe sempre aparece de avental; depois da revolução de costumes, essa mesma família feliz da ficção tem poucos ou nenhum filho e a mulher é uma profissional invariavelmente bem colocada e independente. “Também não há mais um padrão como antes, em que havia um casal com filhos onde o homem é o provedor e a mulher, a cuidadora doméstica. Hoje se aceita todo tipo de arranjo, incluindo famílias de casais homossexuais, mesmo idosos, como nesta última novela da Globo”, aponta Ana. As projeções, não apenas no Brasil, indicam que a população irá começar a diminuir em, no máximo, 20 anos.
Velhos Pioneiros
Neste novo cenário, as pessoas com mais de 60 anos estão inovando também na forma como encaram os problemas e limites da velhice. “Costumamos ver a adolescência como a idade que inventa novas formas de vida, mas quero crer que desta vez teremos uma geração de velhinhos pioneiros. A clínica vem mostrando isso de forma radical e inquestionável”, diz o psicólogo Christian Dunker, professor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, graças aos recursos virtuais, hoje só permanece viúvo ou viúva quem quer. “Ou quem resiste às novidades. Só fica limitado sexualmente na terceira idade quem tem preconceito contra Viagras e Cialis, por exemplo”, argumenta.
Sentado na mesa do café, com um copo de soda italiana nas mãos, Willer parece como tantos outros da mesma idade. A transgressão está nas escolhas que fez, expressas na sua poesia. Nos anos de 1960 morava sozinho numa quitinete vizinha ao apartamento de seus pais, na esquina da Nove de Julho com a Major Quedinho, no centro da cidade; transformado em sede da contracultura paulistana. Apesar das farras e bebedeiras, fazia duas faculdades (psicologia e sociologia e política), lia e escrevia freneticamente e era um agitador cultural conhecido pelos saraus de poesia marginal, eventos que frequentemente provocavam escândalos, mas sempre de alta qualidade literária.
Sua rotina hoje não é muito diferente, com exceção dos escândalos. Mantém o mesmo roteiro de estudo-arte-balada. “As ações mais diretas, não me arrependo delas, mas numa certa altura ficaria redundante. Saio para dançar ou alguma programação”, diz. Vive de dar aulas, oficinas e workshops e continua escrevendo. O poeta mantém um blog na rede, com um público médio de 900 pessoas por dia, que considera muito bom, já que não é exatamente um artista de massa. É verdade também que hoje é bem mais difícil provocar escândalos, graças justamente à ação de pessoas como ele. Ainda mora sozinho, embora não mais na quitinete do centro, pois não se casou nem teve filhos por opção ideológica. “Nem me passa pela cabeça ter família. Sou um anarco-individualista. Afinal, ou se é contra a instituição ou não!”, afirma.
Questionado a respeito do medo da solidão, um temor característico da idade, reage surpreso. “Que solidão? Não tem solidão. Apenas não me casei. Tive companheiras, mas nunca tive vontade de ter filhos. Sei lá por que. Gosto de ser eternamente freelancer”, justifica. Ele reafirma as escolhas que fez no passado. “Aprontar, insultar literatos, fazer manifesto, agitar, fazer farras, eu absolutamente não me arrependo e faria muito mais se pudesse”. Limitações? Apenas financeiras. “Hoje, se fosse manter o mesmo ritmo e padrão de consumo da minha juventude, ia à falência. E naquela época eu vivia de mesada”, diz. Tem ótima saúde.
Sobre o que seriam “ações mais diretas”, ele sugere a leitura de Dentes da Memória, um relato franco sobre os tempos da quitinete, feito por ele, Roberto Piva, Antonio Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli, companheiros mais próximos, com participação de Massao Ohno, o editor que revelou todos eles, e também Jorge Mautner, Sergio Cohn, Antonio Bivar, entre outros nomes de peso da cultura de vanguarda. Parte dos escândalos vinha das opções pessoais de Piva, que além de poeta genial e absolutamente anárquico, era um homossexual assumido numa sociedade que achava normal espancar gays, prostitutas e hippies. No relato de Dentes da Memória, há o caso de dois rapazes que foram internados em um manicômio simplesmente por andarem com o Piva. A turma decidiu, uma noite, invadir o hospital e sequestrar os dois.
Coerência ou falta de noção?
Christian Dunker ressalta que a atual geração de idosos tem a seu favor a experiência, uma vez que é pioneira pela segunda vez. “São os herdeiros da contracultura dos anos 60, da geração que fez a revolução sexual criando, ao mesmo tempo, outro modelo do que viria ser uma vida bem realizada”, explica. Não foram atingidos pela imagem de vida feliz que Ana cita dos roteiros das novelas, que iria prosperar depois, nos anos de 1980. “Não são dominados pela narrativa do trabalho-consumo que marcou os babies boomers do pós-guerra. Os nossos velhinhos flowers-power são também, por aqui, os que fizeram e sofreram a ditadura. Quem tinha 20 anos em 1964 e hoje está com 70 anos, está desprovido de uma referência para o que vem a ser envelhecer”, explica o psicólogo.
A atriz Maria Alice Vergueiro tornou-se um ícone desse grupo de velhinhos por manter profunda coerência com as escolhas que fez ao longo da vida. Aos 71 anos, virou um fenômeno da comunicação virtual com um bem humorado vídeo, batizado de Tapa na Pantera, termo que designa “fumar um baseado”, sobre sua relação de 30 anos com a maconha. Lançado em agosto de 2006, foi visto até o momento por mais de 6 milhões de pessoas e levantou um grande debate: Maria Alice seria ou não usuária real de maconha? Afinal, ela fuma ou não fuma todos os dias há 30 anos, como diz no vídeo, formalmente classificado como uma peça de ficção? “Sim, fumo, meu neurologista diz que é ótimo para controlar o Parkinson e é mesmo”, garante hoje, oito anos e várias reedições de Tapas na Pantera depois, incluindo uma versão mais completa em livro.
A atriz recebeu a reportagem no apartamento que herdou do pai, no bairro de Higienópolis, com Luciano Chirolli, também ator, 50 anos, com quem vive há 23 anos. “Tivemos um encontro de alma, de arte, de tudo”, diz ele, que conta o tempo ao lado da amada pelo número de peças que montaram juntos. “Estamos juntos há oito espetáculos”, informa. No último, a peça Why the horse?, Maria Alice encena sua morte. Era para ser uma comédia, na linha do Tapa na Pantera, mas as pessoas se emocionam. “Existe uma turma que chora na plateia. Levei um susto! A pessoa chorar e me esperar lá embaixo chorando. Juro que eu não entendi….”, diz a atriz.
“É um público fiel dela, que fica muito tocado ao vê-la entrar sem a cadeira de rodas. Encaram como uma superação”, explica Luciano, que além de ajudar no dia a dia e na arte, é o seu cuidador. Ultimamente também ajuda “dando” (dizendo, no jargão do ator) o texto quando o Parkinson a faz tropeçar nas palavras. Foi assim na entrevista e é assim em cena. Hoje com 80 anos, os cabelos já todos brancos e dificuldade de movimento por causa de complicações ocorridas depois de uma queda – uma bactéria se alojou na prótese que tem no joelho –, a atriz se prepara para uma cirurgia. “Até lá, estamos controlando com antibióticos, para evitar que essa bactéria se espalhe pelo corpo”, explica o parceiro.
A rainha do underground, a tetaraneta do Conde Vergueiro, professora da USP que deu as costas para sua classe e fugiu com o circo – ela tinha então 16 anos de magistério; a atriz famosa e mãe que foi na TV dizer que gosta de namorar com meninos e meninas, que viveu uma relação afetiva com 20 pessoas ao mesmo tempo, não ia ficar sentada esperando a hora chegar. Enquanto espera a cirurgia, Maria Alice segue com apresentações de Why the Horse? e negocia a venda de uma turnê para o Sesc. E faz planos. “A gente não poderia… pensei nisso agora, vender o meu velório? Hoje em dia tem funerárias que compram. Pode até ter música”.
Filhos na loucura
“Sabe, quem me faz entrevistas, geralmente não entra nessa parte. Porque é tão fora de propósito que ninguém acredita que seja eu mesma. Não acham que sou eu, os meus vizinhos, por exemplo. Acham que aquilo é um personagem. Então eu fico com essas duas possibilidades”. A pergunta era como ela lida com a questão do consumo de drogas com seus dois filhos, com o motorista do táxi ou o português da padaria. Nos anos de 1970, no entanto, quando decidiu se juntar definitivamente ao Teatro Oficina – ou fugir com o circo, como ela diz –, esse jogo de personagens que usa hoje para contracenar com o social do cotidiano não era possível. E com os filhos, em momento nenhum. “Nunca escondi deles”, diz.
Quando decidiu ir morar no teatro, os dois filhos de Maria Alice eram adolescentes, nascidos de um casamento recém desfeito com um promotor público. Além da vida realmente coletiva – dormiam todos juntos –, havia a repressão política. “As crianças ficaram com a minha mãe. É a velha história. Até tentei levá-los para lá, mas era impossível”, diz. “Ir morar no Oficina tinha uma lógica política. Éramos um coletivo de resistência, com a participação de pessoas de fora do teatro também”, conta. O teatro foi invadido várias vezes pela polícia, as montagens começaram a ser proibidas até que o diretor, José Celso Martinez Correia, foi preso. Nesse momento houve uma batida no teatro, que obviamente estava bem abastecido de aditivos. Todos os que estavam no local foram presos como traficantes. “Tudo que a gente colocava a mão estava subvertendo. Era sempre uma ação política, mas na verdade era uma política enrolada, né? Eles queriam nos pegar pela droga e a gente dizia que fazer droga, tomar droga era também ato político. Na verdade a gente segurava uma barra política”, conta. Maria Alice não foi presa. “Eles deviam me achar louca demais”, pondera, e solta o riso.
A experiência de Helena Ignez, atriz e diretora de cinema, ex-mulher de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, foi mais dura nesse sentido. Casou-se com Glauber quando tinha 19 anos e vivia o auge da revolução hippie na ultraconservadora Salvador, Bahia, no final dos anos 1950. Foram cinco anos de intensa relação afetiva e profissional, segundo ela, que gerou uma filha, Paloma, hoje diretora de TV. Na época, o divórcio não era legal. Havia apenas o desquite e a mulher ficava “marcada”, como se dizia.
“Eu me casei e me separei e tinha essa vida libertária que hoje ficou normal. As chances de uma mulher divorciada criar os filhos eram praticamente inexistentes. Era impossível. Perdi a guarda da minha filha só porque descasei. A Paloma foi criada pela avó, mãe do Glauber. Esse esquema existe até hoje em algumas partes do mundo. Em certos países asiáticos, por exemplo, em comunidades ciganas, quando a mulher se separa, a primeira coisa que fazem é tomar a criança, para que a mãe volte. Esse comportamento medieval com a mulher era normal no começo dos anos 60. Não me lembro de ninguém que tenha achado uma injustiça o que aconteceu comigo e com a Paloma”, conta a atriz. Ela diz que felizmente, não perdeu a relação e o afeto e apesar de não poder morar com a filha, a acompanhou a vida toda.
Helena é, como seus colegas, completamente ativa aos 73 anos, segue uma evolução natural em sua carreira, como se a velhice não existisse, quanto mais aposentadoria. Quando achou que tinha experimentado o suficiente como atriz, partiu para direção. Aos 60 anos, estreou com o curta Alice Dinossauro e hoje, 13 anos depois, assina 40 filmes. “O que aconteceu naquele tempo foi radical. A vivência disso é intransferível. Você encontrava com uma pessoa em um mês de um jeito e alguns meses depois, estava fisicamente diferente. O cabelo grande, as roupas. Entraram as drogas psicodélicas e o mundo ficou moderno”, conta.
Depois de Paloma, teve outras duas filhas e as três lhe deram três netas, que por sua vez, lhe deram três bisnetas. “Um verdadeiro matriarcado”, define. Não acha que a maconha possa ser considerada droga. “Abandonei completamente as drogas e também não gosto das poligamias. Agora, maconha não é droga. Droga é álcool e tabaco. A minha moeda de destruição foi álcool e tabaco”, diz.
Veteranos bem sucedidos
O médico alemão Rolf Weyel, um dos pioneiros no uso de acupuntura no Brasil, companheiro de Eliezer Cerqueira Mendes nos estudos sobre somatização e no desenvolvimento de terapias chamadas de psicotranse, vive no Brasil o sonho hippie há 40 anos, em duas comunidades que montou na capital de São Paulo e em Planaltina, no Distrito Federal. As duas foram durante um tempo comunidades terapêuticas, mas sempre funcionaram dentro dos preceitos de amor, harmonia e liberdade defendidos pela sua geração. “O meu ponto de partida, a minha base de vida nos últimos 40 anos foram os preceitos do ‘faça a paz, não faça a guerra’. A gente se sente como veteranos bem sucedidos daquele movimento”, afirma.
Formado em medicina na Alemanha, Rolf emigrou com a esposa e a primeira filha ainda bebê, em 1976, e aqui aprofundou os seus estudos a respeito da origem espiritual das doenças. Nesse caminho, criou e montou comunidades residenciais terapêuticas e participou da luta antimanicomial. Para aplicar suas propostas de cura, levava seus pacientes para casa, que era a comunidade, que se tornava assim, uma comunidade terapêutica. “Experimentei todo tipo de droga, induzido por meus pacientes. Para saber com quem estava lidando e também com que tipo de substância estava lidando”, explica.
Com esse espírito fraterno, Rolf teve cinco filhas de quatro mães diferentes. Diz reconhecer três casamentos, incluindo o que vive agora, há cerca de dez anos. “Pode ser que seja o quarto, o quinto, não sei. Essas coisas não se definem tão marcantemente”, explica. Maria Alice teve a mesma dificuldade para definir a sua relação com Luciano, o Lucci, marcada por muito companheirismo, afeto e amor, com alguma intimidade, mas sem sexo. “Não sei o que somos. Sei que é bom”, afirma a atriz.
Rolf continua seu relato: “O que quero destacar é que a relação de harmonia com todas essas pessoas (mães e filhas) se mantém até hoje. Tenho ótima relação com minhas filhas, já tenho oito netos! Todo mundo formado, bem de vida. E em contraposição à vida que levei – por que eu nunca tive uma família de verdade, a minha família tinha mais essa índole espiritual esse tempo todo”, conta.
Segundo o terapeuta, todas as suas filhas, criadas nessa “família de índole espiritual”, procuraram relações estáveis e são muito bem sucedidas nisso. “Elas me entendem, percebo que me amam e é muito bom isso. Só tenho a agradecer”, avalia. Ele enxerga uma evolução na forma como suas meninas construíram as suas vidas afetivas com conceitos opostos aos seus. “Tive uma abertura muito grande no conceito, para muitas pessoas, principalmente as de minha vida mais íntima, mas isso não quer dizer que as ideias foram herdadas. Elas foram incorporadas e passaram por uma evolução. Agradeço e respeito esse fenômeno de que o que sai da semente nem sempre é a árvore que a gente espera”, afirma.
Hoje, com 68 anos, preserva apenas o hábito de fumar maconha para meditação e se “alimenta da força da natureza”. As duas comunidades continuam, porém com outra finalidade e sem nenhuma atividade terapêutica. Rolf é o único entre os entrevistados nessa reportagem que escolheu descansar na velhice. “Do que sinto sede e real satisfação é de sossego, do contato com a natureza, que tenho aqui na chácara de Planaltina”, diz. A garantia desse sossego vem em parte de sua atual companheira, que cuida das despesas de manutenção da chácara. “Vivemos felizes eu e ela, com ela entrando e saindo de outros relacionamentos, mas sempre juntos, numa relação fundada”, diz. E financiada pela herança que ele recebeu ainda jovem do pai. “Se não tivesse tido independência financeira, não teria conseguido nada disso”, avalia.
Confusão de papéis
A pesquisadora Ana Amélia, do Ipea, concorda com a vitória dos ideais da Paz e Amor, mas diz que, no momento, as sociedades vivem uma fase de transição em que a principal característica é uma confusão de papéis. A variedade gigantesca de arranjos familiares é uma expressão prática dessa confusão. “O papel social do homem foi tomado pelas mulheres, que continuam avançando sobre esses campos. Não sabemos onde isso vai dar”, diz. Uma das possibilidades é o crescimento de homens adultos “nem, nem”, ou seja, nem trabalham, nem estudam. “No Japão esse grupo aparece nas estatísticas. Eles assumem os cuidados domésticos e são sustentados pelas esposas”, conta Ana. Uma situação que, embora seja crescente também no Brasil, gera muito preconceito.
O cartunista Laerte Coutinho pode ser um exemplo limite da confusão de papéis. Não é um “nem, nem”, mas um transgênero: pessoa que se sente bem com roupas e aparência do sexo oposto. Pai de três filhos de casamentos absolutamente convencionais, resolveu assumir sua homossexualidade quando o terceiro deles chegou ao fim. “Sufoquei minha homossexualidade porque a achava uma espécie de maldição. Tive experiências homossexuais antes, mas isso só me dava mais medo, do preconceito”, conta.
Quando resolveu encarar esse medo, terminou como transgênero: hoje se veste e se apresenta como mulher. “Continuo com minha genitália, por que não tenho problemas com ela. Pensei em mudar de nome, para Sônia, mas já desisti. Me sinto bem com Laerte”, explica. “As pessoas se espantaram tanto quanto eu quando abri essa história, mas foi bom. Não quero outra vida”, afirma. Garante que não tem conflitos com sua família por isso. “Por que minha família é ótima. Todo mundo fala, opina, mas ninguém agride, ou manda pastar”, diz. Uma harmonia que Ana Amélia explica com a proximidade maior entre as gerações, também um legado da luta dos jovens dos anos de 1960. “Principalmente entre os filhos e netos dos hippies. Há muito mais proximidade, de valores e desejos”, afirma. Em alguns casos, como no de Laerte e Rolf, os filhos são até mais conservadores do que os pais. “É que a geração anterior quebrou grande parte dos tabus. Não há mais rupturas a serem feitas e isso pode ser um problema também, porque adolescentes precisam dessa experiência para amadurecer. Muitos estudos apontam o aumento do banditismo entre jovens da classe média como resultado dessa falta de tabus”, diz.
Christian argumenta que esta geração chega ao período derradeiro da vida com muito tempo sobrando e uma indefinição sobre como sobreviver a esse tempo. “Serão os primeiros a montar uma infraestrutura mais ‘comunitária’ para seus últimos dias”, explica, o que é mais ou menos o que fazem Maria Alice e Rolf. “A questão crucial é subjetiva. É uma questão leninista que se deslocou dos anos 1960 para os 2015: o que fazer?”, conclui Christian.
Alguns dados
87,1% dos idosos do sexo masculino chefiam famílias, 72,6% trabalham 40 ou mais horas por semana e apenas 12,7% percebem um rendimento inferior a um salário mínimo mensal.
Quase 20% das mulheres idosas vivem em casa de parentes
18,5% não têm renda,
17,1% não têm autonomia
8,3% não enxergam
Entre os homens, 13,3% não têm autonomia e 7,4% não enxergam
Fonte: OUTRAS MÍDIAS