[ Amálgama ] |
por Maurício Caleiro * – Vivenciamos a primeira eleição presidencial pós-ditadura sem Lula concorrendo, e a forma como a mídia e seus comentaristas amestrados têm abordado tal fato quer fazer crer que se trata da grande novidade do pleito de outubro. Nada poderia ser mais falso: até 2002, Lula era apenas um candidato a quem reiteradamente, eleição após eleição, em decorrência de manipulações sujas ou em pleitos honestos, negava-se o poder – não passava, portanto, de uma potencialidade, uma esperança sempre adiada. A situação agora é bem outra: o nome Luis Inácio Lula da Silva, de fato, não constará da cédula eleitoral, mas é em torno de seu legado, onipresente, que se travará a batalha eleitoral que definirá o(a) próximo(a) governante do país. É preciso, portanto, dimensioná-lo em seus méritos e defeitos, bem como examinar os rumos que os três principais candidatos presidenciais tenderiam a impor a tal legado. O novo cenário econômico Chaga social que aniquila o indivíduo e abala famílias, o desemprego, que no governo FHC bateu nos 20%, desce a 7,2%, o menor índice desde 1991, fruto dos 12 milhões de empregos criados desde 2002, em função da expansão da economia promovida pela gestão Lula. E isso durante um período em que o salário mínimo passou dos 64 dólares suados estabelecidos pelo governo tucano para 290 dólares – ou seja, um aumento de mais de 350%, que desmente a velha ladainha de que aumentos do salário mínimo causariam desemprego em cadeia. Na seara macroeconômica, o país não apenas deixou de recorrer regularmente, pires à mão, ao FMI, como passou a ser credor do órgão, com um déficit de 185 bilhões de dólares negativos dando lugar a um superávit de 239 bilhões de dólares (ao passo em que a taxa de juros, que um dia foi de 27%, hoje mal chega a dois dígitos). Enquanto o mundo patina, há quase dois anos, numa crise que tem provocado efeitos devastadores nos EUA e na Europa, o Brasil vive um dos melhores momentos econômicos de sua história, a despeito do discurso catastrófico sempre em voga na mídia (primeiro, a incapacidade do governo de fazer o país crescer, desmentida pelos fatos; depois a crise que se revelou marolinha, seguida por alertas de superaquecimento da economia, frustrado e prontamente substituído, com a cara-de-pau costumeira, pelo alarde de uma iminente recessão). Educação, esportes e cultura No setor de Educação, as universidades, sucateadas no governo tucano, esvaziadas de professores (atraídos pela isca da aposentadoria precoce, lançada pelo hoje canonizado Bresser Pereira) e com unidades nas quais chegou a faltar giz e verba para pagar a conta de energia elétrica, são hoje o dínamo de um sistema educacional que a adoção do sistema de cotas tornou ainda mais includente; o ensino técnico, que especialistas em educação afirmam de forma quase unânime ser essencial ao país, tinha apenas uma17, espalhadas pelo país. Na pouco observada mas fundamental área cultural, a concentração extrema de financiamentos oficiais no eixo Rio-São Paulo deu lugar a uma disseminação pulverizadada dos insumos, através de concursos e editais – e a contrariedade dos ex-lordes feudais da cultura afetados por esta nova realidade é a cerdadeira razão da chiadeira antilula de certos atores fluminenses e poetas maranhenses. No bojo desse processo, regiões antes virtualmente alijadas de patrocínio cultural – como Ceará e Paráno – são hoje centro irradiador, respectivamente, de relevantes ciclos cinematográficos e musicais. Ainda no âmbito do MinC, os pontos de cultura promovem, à revelia da mídia que finge que não sabe de sua existência, uma microrrevolução cultural atomizada em algumas das áreas mais pobres do país, estimulando, através do acesso a tecnologia digital, a produção musical e videográfica. Até os trabalhadores, historicamente excluídos das políticas culturais oficiais, se veem ora contemplados com o Vale-Cultura, para desgosto de jornalistas paulistas. Desnecessário sublinhar o quanto significam para o país, no âmbito do esporte, ter conquistado o direito, após duras disputas com outras nações, de hospedar não só a Copa do Mundo de 2014 mas – para júbilo emocionado do presidente, que se empenhou pessoalmente na candidatura brasileira – as Olimpíadas de 2016, na cidade do Rio de Janeiro. No exterior, um novo Brazil Em termos de política externa, a submissão resignada aos EUA deu lugar a uma orientação multilateral que não apenas privilegia o Mercosul, mas diversifica-se e expande-se na direção dos demais BRICs – Índia, Rússia e China, esta agora a primeira parceira comercial do país, além de incentivar, de maneira institucionalizada, as trocas comerciais com a África. E, acima de tudo, como tanto o establishment político como a mídia internacionais reconhecem e saúdam – que o digam Le Monde, El País, The New York Times e até The Economist –, as políticas de transferência de renda implementadas e/ou largamente expandidas no governo Lula tiraram, até agora, de acordo com números oficiais mundialmente aceitos, mais de 35 milhões de pessoas da miséria (contra meros 2 milhões nos 8 anos do governo FHC). Só a insensibilidade social profunda ou o dogmatismo político mais entranhado pode explicar – mas não justificar – o não-reconhecimento de tal conquista – uma das bandeiras históricas da esquerda brasileira. Por fim, falta registrar que, ao contrário do general Figueiredo, de Sarney e de FHC – que, como aponta o jornalista Leandro Fortes, “alterou a Constituição Federal, à custa de um escândalo de compra de votos no Congresso Nacional, para emendar um segundo mandato” –, Lula circunscreveu a duração de seu poder ao que determinara a Lei, sem mover uma pena em busca do terceiro mandato, hipótese esta martelada como um “eterno factóide” pela mídia corporativa, expressando um seu wishful thinking potencialmente incitador de golpismo. Desafios e perspectivas É evidente que tal cenário não está desprovido de aspectos problemáticos e áreas críticas, herança secular de uma das sociedades mais desiguais do planeta. A violência, rotineira e espraiada em virtualmente todo o território nacional, permanece como um cancro a distinguir negativamente o Brasil em relação aos países civilizados, a demandar uma ação conjunta e contínua das esferas federal, estaduais e municipais; as sucessivas derrotas da administração lulista em suas tíbias tentativas de democratizar as comunicações não nos pouparia – não fossem a internet e a blogosfera – de uma esfera pública engessada e praticamente monopolizada nessa área; as teles e os bancos seguem maltratando seus clientes, com um serviço caro e de má qualidade, como se fora da esfera das leis estivessem. Mas se em apenas oito anos o governo Lula foi capaz de promover as melhorias substanciais que ora se verificam, alterando o perfil socioeconômico da população brasileira e a inserção internacional do país, é de se esperar que, num período condizente de tempo, o combate efetivo a tais e outros males seja consubstanciado a contento. Por isso, mais do que qualquer outro candidato – seja o truculento e privatista José Serra, que vem de uma péssima gestão em São Paulo ou a inexperiente e misteriosa Marina Silva –, Dilma Rousseff, gerente do maior programa de aceleração de crescimento da história do país e representante da continuidade da atual gestão, faz por merecer o voto dos brasileiros na eleição que se aproxima, como legítima representante do legado de Lula. Balanço final Sobre tal legado, uma última observação: o jornalista Claudio Bojunga, na luminosa biografia que escreveu sobre Juscelino Kubitschek (JK, o artista do impossível. Objetiva, 2001), adota como um dos parâmetros para se definir um estadista a capacidade de legar um novo e melhor país após o seu mandato. A se adotar tal critério, Luis Inácio Lula da Silva, pelas razões acima elencadas e por apregoar uma cultura do diálogo e da negociação – mesmo tendo sido atacado de forma vil por jagunços da imprensa –, merece, com louvor, o epíteto de estadista, pois recebeu um país totalmente periférico na ordem mundial, com uma economia presa a crises ciclotômicas e uma população dominada por bolsões de pobreza e miséria – e está prestes a entregar a seu sucessor um novo player no cenário geopolítico mundial, um país economicamente sadio e uma nação socioeconomicamente mais justa, ainda que a mídia corporativa, a direita contrariada e mesmo muitos soi-disant esquerdistas insistam em não reconhecer tal fato. * Maurício Caleiro, Rio de Janeiro-RJ. Blog: cinemaeoutrasartes.blogspot.com. |
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