PICICA: Um filme sobre o abismo entre duas civilizações, abismo que separa duas culturas, duas realidades irreconciliáveis, subproduto do colonialismo cruel dos europeus.
Em algum lugar da África, numa província devastada pela guerra civil, Maria, uma feroz e corajosa mulher branca, se recusa a abandonar suas plantações de café ou a reconhecer o perigo que coloca sua família. Para Maria, partir é se render, um sinal de fraqueza, de covardia. Nessa plantação, que foi passada por três gerações de brancos, André -- seu ex-marido, e pai do seu filho adolescente -- teme pelo orgulho cego e resistente de Maria. Sem ela saber, ele planeja sair do país. Enquanto isso, um oficial rebelde está escondido nas redondezas. Com a vida se desintegrando em torno deles, cada um faz suas escolhas, nenhuma delas, previsível.
* * *
[ Amálgama ] |
por Bruno Cava – A diretora francesa Claire Denis filma na África colonial, onde viveu quando criança. Reminiscências de uma terra avermelhada de ferro e sangue, cindida racial, social e culturalmente em duas realidades inconciliáveis. A realidade do negro, pobre, oprimido, nativo, “selvagem”, cru(el) e pagão, originária de tantos imigrantes na França, da maioria dos jogadores de sua seleção de futebol, do ator costa-marfinense Isaac de Bankolé, que neste longa interpreta Boxeador. E a realidade do branco, proprietário, bem-educado, estrangeiro, “civilizado” e humanista, de Sarkozy, do ex-técnico Raymond Domenech, da atriz Isabelle Huppert, que faz a protagonista Maria. Maria é ruiva, sardenta, num tom de pele que se confunde com o alarajando terroso da paisagem. Administra um engenho de café, em que vive com a família de europeus colonizadores: o filho, o ex-marido, o sogro. Todos os empregados são negros. Esse microcosmo é fraturado por uma guerra civil genérica, anunciada logo no início pelo helicóptero-anjo. A barbárie iminente afugenta a população, esvazia a fazenda, mas Maria se obstina. Decide desafiar a ordem das coisas. Teima a ponto de acreditar que a África pode ser a sua terra, pode ter a sua cor. Mas não é e não tem. Rapidamente, o mundo em extinção abole a estrutura social: crianças empunham fuzis, vilas são saqueadas, cadáveres perfilam-se na beira das estradas. Os negros não respeitam mais os patrões brancos. Desmontados os instrumentos de dominação de classe/raça, isto é, o estado, nada refreia os negros colonizados de ofender os europeus colonizadores, enganá-los, extorqui-los, roubá-los, torturá-los, matá-los a golpes de machete, arrancar-lhes os escalpos loiros. Porém, Claire Denis não tem por foco a violência, e sim as bordas da violência: os seus interregnos, o antes e o seu depois, a sua tensa espera, o seu epílogo silencioso e estático. A narrativa descompassada vai e vem no tempo, a fim de cercar a brutalidade, sem penetrar no âmago. A câmera come pelas bordas. Daí Boxeador aparecer antes e depois do tiro que o mata, mas o momento fatal não aparece. Daí o pudor na chacina dos soldados mirins, que dormiam depois da orgia de drogas. Ou então a cena dos últimos funcionários da fazenda, no solo de bruços, após uma matança que tampouco é mostrada. Só o final do filme inverte essa lógica, numa intrigante seqüência que reservo à surpresa (estupefação) do espectador. Minha Terra, África fala do abismo que cisalha a África, a França, a Europa hodierna. O europeu branco e rico, ainda que humanista e bem-intencionado, não consegue se comunicar com o outro lado. É incapaz de ativar um devir-negro. Nisso, falha Maria, na tentativa de liderar humanamente os funcionários. E fracassa o seu filho, Manuel, quando raspa a cabeça e junta-se à cruzada delirante de crianças negras. Ambos os personagens chegam perto do abismo e terminam por ele sugados. Filme sem meias-verdades nem romantização, Minha Terra, África vai ao ponto da questão racial e social. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário