novembro 12, 2010

"Minha Terra, África", de Cleire Denis

PICICA: Um filme sobre o abismo entre duas civilizações, abismo que separa duas culturas, duas realidades irreconciliáveis, subproduto do colonialismo cruel dos europeus.
imovision | 20 de outubro de 2010

Em algum lugar da África, numa província devastada pela guerra civil, Maria, uma feroz e corajosa mulher branca, se recusa a abandonar suas plantações de café ou a reconhecer o perigo que coloca sua família. Para Maria, partir é se render, um sinal de fraqueza, de covardia. Nessa plantação, que foi passada por três gerações de brancos, André -- seu ex-marido, e pai do seu filho adolescente -- teme pelo orgulho cego e resistente de Maria. Sem ela saber, ele planeja sair do país. Enquanto isso, um oficial rebelde está escondido nas redondezas. Com a vida se desintegrando em torno deles, cada um faz suas escolhas, nenhuma delas, previsível.

* * *

[ Amálgama ]




-- Isabelle Huppert em "Minha Terra, África" (em cartaz) --

por Bruno Cava – A diretora francesa Claire Denis filma na África colonial, onde viveu quando criança. Reminiscências de uma terra avermelhada de ferro e sangue, cindida racial, social e culturalmente em duas realidades inconciliáveis. A realidade do negro, pobre, oprimido, nativo, “selvagem”, cru(el) e pagão, originária de tantos imigrantes na França, da maioria dos jogadores de sua seleção de futebol, do ator costa-marfinense Isaac de Bankolé, que neste longa interpreta Boxeador. E a realidade do branco, proprietário, bem-educado, estrangeiro, “civilizado” e humanista, de Sarkozy, do ex-técnico Raymond Domenech, da atriz Isabelle Huppert, que faz a protagonista Maria.

Maria é ruiva, sardenta, num tom de pele que se confunde com o alarajando terroso da paisagem. Administra um engenho de café, em que vive com a família de europeus colonizadores: o filho, o ex-marido, o sogro. Todos os empregados são negros. Esse microcosmo é fraturado por uma guerra civil genérica, anunciada logo no início pelo helicóptero-anjo. A barbárie iminente afugenta a população, esvazia a fazenda, mas Maria se obstina. Decide desafiar a ordem das coisas. Teima a ponto de acreditar que a África pode ser a sua terra, pode ter a sua cor. Mas não é e não tem.

Rapidamente, o mundo em extinção abole a estrutura social: crianças empunham fuzis, vilas são saqueadas, cadáveres perfilam-se na beira das estradas. Os negros não respeitam mais os patrões brancos. Desmontados os instrumentos de dominação de classe/raça, isto é, o estado, nada refreia os negros colonizados de ofender os europeus colonizadores, enganá-los, extorqui-los, roubá-los, torturá-los, matá-los a golpes de machete, arrancar-lhes os escalpos loiros.

Porém, Claire Denis não tem por foco a violência, e sim as bordas da violência: os seus interregnos, o antes e o seu depois, a sua tensa espera, o seu epílogo silencioso e estático. A narrativa descompassada vai e vem no tempo, a fim de cercar a brutalidade, sem penetrar no âmago. A câmera come pelas bordas. Daí Boxeador aparecer antes e depois do tiro que o mata, mas o momento fatal não aparece. Daí o pudor na chacina dos soldados mirins, que dormiam depois da orgia de drogas. Ou então a cena dos últimos funcionários da fazenda, no solo de bruços, após uma matança que tampouco é mostrada. Só o final do filme inverte essa lógica, numa intrigante seqüência que reservo à surpresa (estupefação) do espectador.

Minha Terra, África fala do abismo que cisalha a África, a França, a Europa hodierna. O europeu branco e rico, ainda que humanista e bem-intencionado, não consegue se comunicar com o outro lado. É incapaz de ativar um devir-negro. Nisso, falha Maria, na tentativa de liderar humanamente os funcionários. E fracassa o seu filho, Manuel, quando raspa a cabeça e junta-se à cruzada delirante de crianças negras. Ambos os personagens chegam perto do abismo e terminam por ele sugados.

Filme sem meias-verdades nem romantização, Minha Terra, África vai ao ponto da questão racial e social.

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