PICICA: "Não se adjetiva o ser humano antes de dar-lhe direitos. Isso foi feito no nazismo e no Apartheid. (...). Quem adjetiva as pessoas antes de reconhecer-lhes a humanidade deveria sentir o peso da vergonha da História." Leia, também, "Três propostas para o "caos" do Rio de Janeiro", de Bruno Cava. E mais: "A posição do Observatório das Favelas".
Bandido bom é bandido morto? Reflexão sobre o Rio e o Brasil
Brasil - Repressom e direitos humanos |
Sábado, 27 Novembro 2010 01:00 |
Bule Voador - [Asa Heuser, Eli Vieira e Pedro Almeida] Conta a anedota que Philip Sheridan, o Little Phil, general do exército dos Estados Unidos durante a guerra civil, travava uma campanha militar contra os índios, quando o Chefe Tosawi, conhecido como Faca de Prata, teria dito: “Mim Tosawi. Mim índio bom”. Little Phil teria replicado: “Os únicos índios bons que já vi estavam mortos”. A fofoca transformou a frase em “O único índio bom é um índio morto”, e na forma mais lacônica “índio bom: índio morto”. O general mais tarde negou que tinha feito essa afirmação, mas a frase entrou para a história. A campanha expansionista estadunidense varreu do mapa a maior parte dos índios, e, como a história é escrita pelos vencedores, esses índios nem tiveram a chance de protestar contra algo simples: receberem o nome de “índios”, para começar. “Índio” não é um termo que expresse de forma justa a miríade de culturas e povos que perderam milhões com a ocupação das Américas. São muitas as manchetes desta semana comentando como os “bandidos” estão morrendo nas mãos das forças armadas no Rio de Janeiro, na ocupação de pontos de tráfico de drogas em comunidades de menor poder aquisitivo. As centenas de histórias de vida que culminaram na “bandidagem” estão recebendo tratamento justo com o termo? “Bandido” é a causa ou o agente da violência? As manchetes mostram diversos veículos incendiados, o Exército cercando o Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro, uma idosa baleada, uma criança de dois anos baleada, e dezenas de mortos que já se empilham em poucos dias. “Bandido bom é bandido morto”, e quase ninguém quer se dar ao trabalho de pensar melhor o que significa ser bandido, por que alguém vira bandido, e se a única forma de se tratar esta patologia social seria o extermínio dos “bandidos”. Copiamos os americanos não só na forma preguiçosa como viam o conceito de “índio”, mas também na irracionalidade de uma política antidrogas que criou Al Capone. Também copiamos as declarações pueris da direita americana contra os ativistas dos direitos humanos: são amantes de “bandido”, e, como disse Robinson Pereira num artigo publicado antes aqui no Bule Voador, os ativistas não entendem de “estresse de combate”. O que podemos concluir é que Robinson e outras pessoas não entenderam o filme Tropa de Elite 2. A amizade que nasce entre um ativista e um chefe do BOPE neste filme tem uma mensagem valiosa, que é a da cooperação entre pessoas que desejam o fim do horror de ver vidas ceifadas por fatores evitáveis. Que o Exército e a Marinha precisem ser invocados é motivo de lamentação. Nossos soldados, treinados para a guerra (e mais ainda para a paz), altamente qualificados – vários deles com experiência no Haiti, não devem se sentir bem tendo de combater compatriotas – ainda mais quando a ideia da pátria sempre foi a flor da caserna. O que há com a polícia do Rio para que este tipo de intervenção seja necessária? Deveríamos começar a acreditar que os filmes de Padilha não são obras de ficção? Usar soldados do exército é usar pessoas altamente qualificadas para fazer o serviço errado – o serviço da polícia. Colocar a maior máquina de guerra da América Latina nas ruas do Rio é um atestado de falência da polícia e do governo. E não só desses. Muito se comenta como o tal do “bandido” quer ganhar dinheiro e poder. Mas quem está promovendo dinheiro e poder como metas máximas na vida não são os bandidos. “Bandidagem” é também a falta de perspectiva, e bandidos são órfãos do governo. Como o governo não cumpre o seu papel, e não dá condições dignas de vida, como ensino de qualidade, atendimento de saúde, garantia de emprego e outros direitos constitucionais, as pessoas se sentem sem chão e sem nenhum compromisso com o resto da sociedade. Daí vem o vandalismo, e a criminalidade, e os ditos “bandidos” se sentem com razão ao cometer crimes. Na base de uma sociedade doente estão coisas simples como a falta de acesso a métodos eficientes de limitação de filhos (e a influência de certas instituições sociais que desaprovam o planejamento familiar – precisamos dizer quais?), falta de acesso a um estudo realmente qualificante (elevar as profissões e não os diplomas!), professores bem preparados, bem pagos e motivados – não é segredo para ninguém a relação entre falta de recursos sociais e chance de recorrer à violência. Sem a garantia de uma vida e um futuro seguros, as pessoas se comportam como em uma guerra, num carpe diem dos caídos: “aproveite hoje, porque não se sabe se vai estar vivo amanhã”. Neste momento de crise é necessária uma intervenção, mas nunca dentro do espírito de que os bandidos não são gente e não merecem viver. Quem diz o contrário joga no lixo nossa Constituição e as declarações de direitos que nosso país soberano assinou. Crises servem para detectar onde erramos e que precauções devemos tomar para evitar a repetição do erro. Direitos humanos apenas para humanos direitos? E por acaso podemos chamar de “humanos direitos” aqueles que permitem que seus iguais caiam no desespero do crime por estarem em condições piores que os horrores das obras de Albert Camus? Não se adjetiva o ser humano antes de dar-lhe direitos. Isso foi feito no nazismo e no Apartheid. Não é “direitos humanos para humanos direitos”, assim como não é “direitos humanos para humanos arianos” e muito menos “direitos humanos para humanos brancos”. Quem adjetiva as pessoas antes de reconhecer-lhes a humanidade deveria sentir o peso da vergonha da História. Está TUDO errado, desde o sistema penitenciário, polícia mal paga, etc. Mais errado ainda é que pessoas estejam morrendo não porque aumentou a preocupação com a venda de drogas, mas porque grandes interesses econômicos estão de olho na Copa de 2014 e nas Olimpíadas de 2016, um rolo compressor que não se importa em esmagar seres humanos para pavimentar o Rio em direção ao deleite lucrativo de poucos. Que a cidade maravilhosa um dia possa dizer que é maravilhosa porque garante a todos a maravilha de uma vida digna. Foto: Hayez (1867) - A destruição do templo de Jerusalém Fonte: Diário Liberdade |
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