PICICA: "O risco de plastificar a História (torná-la mero instrumento de exposição da desumanidade) é muito grande, mas talvez voltar ao tema com o velho discurso de que as coisas ruins não podem ser esquecidas, mas devem ser lembradas para que não sejam repetidas, sirva como combustível para as produções que emerjam daí ano a ano."
Qual liberdade?
É bastante arriscado o percurso pelo qual Peter Weir escolheu se embrenhar nesse seu mais recente filme. O risco de plastificar a História (torná-la mero instrumento de exposição da desumanidade) é muito grande, mas talvez voltar ao tema com o velho discurso de que as coisas ruins não podem ser esquecidas, mas devem ser lembradas para que não sejam repetidas, sirva como combustível para as produções que emerjam daí ano a ano. A história do filme é situada na Segunda Guerra, conflito muito explorado pelo cinema moderno, portanto tema caro a diversos cinemas. O Caminho da Liberdade sai do nazismo de Auschwitz e vai para os gulags soviéticos, tão ou mais mortais que os campos de concentração coordenados por Hitler. O filme anuncia se tratar de uma homenagem a três homens (ironicamente se autointitula como uma homenagem apenas aos sobreviventes, não aos que morreram tentando escapar, buscando a tal liberdade) que sobreviveram ao frio, a fome e a degradação física proveniente destes após escaparem da prisão na Sibéria, em 1940.
Os principais objetos motores (personagens) nos filmes de Weir são sempre observados por algo que, consequentemente, os conduzem a certas coisas, os levam a determinadas ações – as câmeras que perseguem Truman em O Show de Truman; o ortodoxo sistema educacional universitário que monitora cada passo dos estudantes em Sociedade dos Poetas Mortos; os inimigos napoleônicos em Mestre dos Mares; o departamento de imigração estadunidense que investiga o compositor francês George Faure em Green Card; a corrupção assassina da polícia em A Testemunha. Na maioria dos casos, são rebeldes insaciáveis tomados por uma força que os impulsiona em busca dessa libertação. Mas que liberdade é essa? Weir dá ao filme um tom rigoroso, ríspido e intrínseco. Sua narrativa constitui-se, essencialmente, de jogar as luzes sobre outros monstros da guerra, e acaba olhando mesmo é para a história de fuga (rumo a tão almejada liberdade). O que interessa ao filme é a trajetória específica daqueles homens desamparados e solitários que caminham em direção ao sul (até a Índia) munidos apenas de coragem e bravura. O que fica bastante explícito em uma fala da personagem de Ed Harris, que diz que a melhor forma de protesto é a resistência, é continuar vivo. O filme todo carrega esse peso sufocante e claustrofóbico de uma vida que já não é mais vivida, esse drama legítimo da existência – legítimo no filme, pois o livro no qual ele se baseia livremente não teve até hoje sua veracidade comprovada. A luta daquele grupo de homens, não tão somente dos que sobreviveram, mas também dos que morreram tentando escapar, ficará na História com ou sem o filme de Peter Weir.
Para sublinhar as tortuosas desventuras que eles enfrentam, Weir recorre à repetição de seu argumento. Quase todas as cenas da fuga tendem a elucidar as mesmas questões, os mesmos dramas; são simbioses retumbantes que, antes de determinar e escancear certo estado momentâneo de sofrimento e de luta pela sobrevivência, visam prostrar o espectador numa posição de desconforto diante daquilo que vê, como se somente fosse possível registrar esse dramas muito particulares as personagens através da ordenação mais simplória e forte possível. Soa mais como uma tentativa de criar cenas-chave no intuito subsequente de marcar o filme para o público. Na reação em cadeia que se pronuncia em meio à natureza, os animais brigam pelo alimento, digladiam-se morosamente pela carne de outro animal. Numa cena de extrema força (num dos poucos momentos em que o filme atinge certa visceralidade e grandeza, para além da fotografia das paisagens desérticas que dominam o filme), um grupo de cães selvagens e o grupo de Homens (animais racionais) encaram-se na disputa por uma carcaça; num outro momento, a personagem de Colin Farrell (o patinho feio da rebelião) sugere ao líder do grupo (sempre há um líder, um comandante e ditador dos caminhos, mesmo que a busca seja pela liberdade) que alguém seja literalmente comido para garantir sua sobrevivência.
A longa caminhada logo vai deixando marcas nos corpos, traços sintomáticos, à sua maneira destruidora e implacável. O ato de sobreviver livremente ou morrer tentando (pois se trata apenas de uma escolha feita por eles) naquelas situações vem imbuído de transfigurações físicas e mentais. Os homens vão se dando como loucos, mas talvez seja a insanidade que lhes atravessa as veias a grande pulsão que doravante os contamina. Weir filma algumas dessas passagens com mão pesada, e daí que a cada nova descoberta (de uma nova fonte de água, de um alimento, de um lugar, de uma pessoa) regurgite numa forma de filmar até bastante primária e esquemática: chama o espectador para olhar embasbacado e satisfeito diante de mais algumas horas de fôlego das quais as personagens sorverão, com direito sempre ao mesmo movimento de câmera (no topo das montanhas e pelas costas dos homens, subindo e mostrando tudo em panorâmica, o que determina um formalismo fílmico infirmável da parte do realizador). Pois tudo nesse filme de Peter Weir gira em torno de criar, cercear e legitimar um espetáculo para olhos e não para o olhar.
(The Way Back, EUA, 2010)
De Peter Weir
Com Jim Sturgess, Ed Harris, Colin Farrell, Saoirse Ronan, Alexandru Potocean, Dragos Bucur, Gustaf Skarsgård, Sebastian Urzendowsky, Mark Strong
Fonte: TUDO [é] Crítica
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