PICICA: "Teste de hipótese: não ouvir arcebispos na próxima vez que o STF decidir algo sobre, digamos, fetos anencéfalos — não por ranhetice anticlerical, mas pelos mesmos motivos pelos quais ninguém ouve monges budistas nos debates sobre direitos dos animais: a opinião pode até ser interessante, mas não tem legitimidade num Estado laico e ninguém liga para ela, exceto uma minoria –, não ouvir arcebispos, dizia eu, e contar o número de cartas reclamando da omissão. Minha previsão é de que serão extensas, furiosas e malcriadas… Mas muito, muito poucas."
Ora, direis, ouvir arcebispos…
por Carlos Orsi
Há muito o que celebrar na decisão histórica do STF sobre a união estável de pares homossexuais, mas aqui eu gostaria de fazer um comentário sobre uma questão paralela, relacionada à cobertura do julgamento pela imprensa: por que, sempre que o Supremo tem que decidir algo sobre direito dos homossexuais ou alguma questão de ética médico-científica (como no caso das células-tronco), os jornalistas correm para entrevistar arcebispos católicos?
Em parte pode ser o cacoete do “outro lado”, o princípio de que todo fato importante ou opinião momentosa deve vir acompanhado por uma avaliação negativa, um contraponto. Eu já critiquei a busca irracional pelo “outro lado”, que muitas vezes leva a imprensa a abrir espaço para criacionistas ou maníacos antivacinação, mas reconheço a importância do princípio: em casos como a decisão do STF, ele pode ajudar a pôr os fatos em perspectiva e a evitar o jingoísmo — a celebração unânime de uma decisão que, tendo sido tomada por seres humanos, sempre corre o risco de estar errada. Não posso deixar de notar, no entanto, que o saudável uso do “outro lado” como antídoto para o jingoísmo não parece ter aplicação universal. Não se viu sinal dessa medida preventiva, por exemplo, no noticiário da grande imprensa sobre a beatificação de João Paulo II.
Enfim: mesmo reconhecendo que o contraponto é importante, fica a pergunta: por que arcebispos e não, digamos, especialistas conservadores em direito da família, ou psicólogos? “Porque a maior parte da população brasileira é católica”, responderá o vulgo. Ah, sim? Bem, claro, se olharmos os números do censo e a proporção de brasileiros batizados… Ei, mas até eu fui batizado. E quando o censo passou em casa, meu pai, que é quem estava por aqui na hora, disse que éramos todos católicos. Perdi a oportunidade de me declarar um Cavaleiro Jedi.
“E a opinião da hierarquia católica é levada a sério, pela população em geral, em questões de moral e família”, prosseguirá nosso comentarista. Ah, sim? É por isso, suponho, que camisinhas e pílulas anticoncepcionais mofam nas estantes das farmácias; que a família brasileira média tem sete filhos; que as mulheres que praticam sexo antes do casamento são alvo de escárnio e escândalo e acabam virando freiras ou prostitutas.
Imagino que até o ouvido mais duro para ironia de todo o Universo foi capaz de notar que o parágrafo acima não descreve o Brasil. Então, exatamente da onde vem a ideia de que as pessoas se importam com o que os arcebispos pensam?
Submeto a hipótese de que isso se trata de um mito, que se sustenta em três fatores.
Primeiro, a inércia da própria imprensa. A “opinião da CNBB” parece importante porque sempre é divulgada, e sempre é divulgada porque parece importante.
Segundo, comodidade: quando o jornalista precisa de uma opinião reacionária para arredondar um texto, um velhinho sorridente de vestido preto e barrete roxo fica melhor na fita do que o Bolsonaro espumando pelos cantos da boca.
Terceiro, o que eu chamaria de efeito Magico de Oz — lembra-se?, o mágico parecia ser um gigante dotado de poderes fantásticos, mas na verdade era apenas um velhote manipulando marionetes. No caso, o monstro terrível que não passa de um velhote fraquinho com um talento para efeitos especiais inócuos é o tão propalado “poder de mobilização e capilaridade” da igreja católica.
A teoria é mais ou menos assim: há igrejas por toda parte, em todo o país, até mesmo em grotões onde nem a Rede Globo chega. Se, de repente, os padres começarem a fazer sermões contra mim, meu partido, minha empresa, meu jornal… tô ferrado. Ergo, melhor não irritar esses caras.
Trata-se de um tigre de papel especialmente eficaz, muito bom para assustar políticos, principalmente prefeitos provincianos e deputados eleitos por Fiofó do Judas (SP). Mas nem por isso deixa de ser um tigre de papel. Se não fosse, camisinhas e pílulas estariam mofando… etc, etc.
Teste de hipótese: não ouvir arcebispos na próxima vez que o STF decidir algo sobre, digamos, fetos anencéfalos — não por ranhetice anticlerical, mas pelos mesmos motivos pelos quais ninguém ouve monges budistas nos debates sobre direitos dos animais: a opinião pode até ser interessante, mas não tem legitimidade num Estado laico e ninguém liga para ela, exceto uma minoria –, não ouvir arcebispos, dizia eu, e contar o número de cartas reclamando da omissão. Minha previsão é de que serão extensas, furiosas e malcriadas… Mas muito, muito poucas.
Jornalista e escritor. De 2005 a 2010, foi editor de Ciência do site do Estadão. É autor de contos e romances de ficção científica, dentre eles Guerra Justa (Draco, 2010).
Fonte: Amálgama
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